Observações sobre o Propag, por Roberto Bitencourt da Silva

Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados almeja substituir o regime de recuperação fiscal delineado pelo governo Michel Temer.

Ricardo Stuckert – PR

Observações sobre o Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag)

por Roberto Bitencourt da Silva

No recente dia 14 de abril foi editado em Diário Oficial da União o decreto que regulamenta a lei complementar que versa sobre os termos do refinanciamento das dívidas dos estados com o governo federal. A lei e o respectivo decreto dão materialidade legal ao Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (conhecido como Propag), que, em tese, almeja substituir o regime de recuperação fiscal delineado pelo governo Michel Temer.

Estes instrumentos jurídicos possuem latitude suficiente para moldar, nos próximos anos, aspectos significativos dos comportamentos e das escolhas dos governos estaduais em relação à provisão de serviços para a população, bem como o modo de encarar os servidores públicos estaduais e do Distrito Federal. Em linhas gerais, parcas são as diferenças em face do que vigora desde o governo golpista, neocolonial e ultraliberal de Temer.

O padrão de relacionamento prescrito nos dispositivos legais assinalados persiste demonstrando semelhanças claras com o antigo perfil da relação estabelecida entre o Fundo Monetário Internacional (FMI) e os governos da periferia capitalista latino-americana, nos anos 1980 e 1990. Não são poucas as condicionalidades exigidas pelo Propag. A alienação de patrimônio, ativos e empresas públicas estaduais, além de receitas e créditos de direito dos governos estaduais, representa um conjunto de meios definidos como espécies de “caução” para garantir o pagamento de juros e amortizações para o governo federal, para eventualmente saldar os compromissos das dívidas estaduais com a União (ver capítulo III do decreto, relacionado ao final).

Seguramente, trata-se de um mecanismo jurídico de força, que potencialmente expropriará (já tem expropriado há muitos anos) os estados de importantes instrumentos de exercício de políticas públicas. Os encargos financeiros giram em torno de 0 a 2% de juros – conforme o atendimento de certos requisitos de saldo anual da dívida – mais o índice inflacionário do IPCA anual. Valores inferiores aos praticados pelo regime de recuperação fiscal, contudo ainda bastante lesivos aos estados.

O Propag corresponde a mais uma peça do ordenamento jurídico brasileiro que reitera o ajuste fiscal permanente, consolidado na década de 1990 e preponderante até hoje, passando por sucessivos governos. O objetivo estratégico é avassalar o fundo público orçamentário aos interesses do rentismo e dos seus agentes financeiros domésticos e estrangeiros – fundos de pensão e de investimentos, bancos, seguradoras etc. Em outras palavras, conter as “despesas primárias”, constitucionalmente reservadas à oferta e aos investimentos em serviços e servidores públicos, para ampliar a fatia dos orçamentos dedicadas a pagar os juros de títulos da dívida pública.

O Propag institui obstáculos evidentes à realização de investimentos em diferentes serviços públicos, concedendo o crescimento das despesas primárias dos governos estaduais somente na razão do índice inflacionário do IPCA/IBGE anual. Um ajuste fiscal perene associado a um arrocho semipérpetuo dos salários dos servidores. Uma vez mais, a União impõe um cabresto aos estados.

No início das conversações oficiais sobre a formulação do Propag, no ano passado, muito foi debatido em torno do estabelecimento de eventuais contrapartidas para a redução dos juros no pagamento ou na rolagem dos serviços das dívidas, alcançando então maior repercussão o financiamento do ensino médio técnico profissionalizante. 

Foram realmente definidas contrapartidas na lei e no decreto. Elas são atinentes tanto a investimentos no ensino médio técnico, como nas universidades estaduais, na educação em tempo integral, em ações voltadas à expansão da coleta e do tratamento de esgoto etc. (ver decreto, capítulo VII; lei complementar, art. 5º). Os textos legais trocam juros de 1% a 2% das parcelas anuais do saldo devedor dos governos estaduais por investimentos nas áreas assinaladas.

Um exemplo prático: o montante da dívida do estado do Rio de Janeiro está em torno de 174 bilhões de reais (ver O Globo, 14 abr. 2025). Se o governo do Rio conseguir atender a certas exigências da União, poderá reservar do saldo devedor da sua dívida entre 1,74 bilhões de reais a 3,48 bilhões de reais por ano para investir em educação, saneamento, obras de infraestrutura etc. Como não há uma definição explícita a respeito da repartição desta potencial verba entre os diferentes tipos de serviços e necessidades públicas, em princípio, está prevista a dotação de 60% para a educação de nível médio técnico-profissionalizante.

Considerando que o orçamento do estado do Rio estimado para este ano é de cerca de 107 bilhões de reais, os valores colocados em evidência são muito baixos e muito aquém de proporcionar melhorias expressivas nos serviços públicos. Notadamente levando em conta o congelamento das despesas primárias do orçamento, enclausuradas ao crescimento somente da inflação anual.

Por fim, cumpre destacar que o decreto estabelece a possibilidade de parcerias com instituições e  empresas privadas, atuantes em diferentes áreas do setor produtivo e de serviços, como forma descentralizada de investimentos na educação e em outras áreas (ver decreto, capítulo VII). Claro está, isso conforma uma determinação legal que pretende canalizar recursos das dívidas públicas estaduais para o financiamento da reprodução e da acumulação de capital, em detrimento dos serviços e dos interesses públicos, prática habitual de todos os governos das diferentes unidades da federação.

Roberto Bitencourt da Silva – Historiador e cientista político, presidente da Associação dos Docentes do Ensino Superior da Faetec (Ades Faetec).

Fontes de consulta:

Roberto Bitencourt da Silva – cientista político e historiador

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