Observações sobre o plano “Nova Indústria Brasil”, por Roberto Bitencourt da Silva

O maior mérito da proposta do governo Lula é de natureza cultural e epistemológica: um plano para revigoramento do debate público nacional.

Agência Brasil

Observações sobre o plano “Nova Indústria Brasil”

por Roberto Bitencourt da Silva

O governo federal anunciou na semana passada um plano que almeja reindustrializar a economia brasileira, plano chamado “Nova Indústria Brasil”. Trata-se de um conjunto de diretrizes que visa estimular a criação de um ambiente econômico, creditício e normativo favorável ao desenvolvimento tecnológico e à inovação, em certos nichos produtivos.

Link para acesso ao documento: https://www.gov.br/mdic/pt-br/composicao/se/cndi/plano-de-acao/nova-industria-brasil-plano-de-acao.pdf

Em linhas gerais, a motivação do plano é bastante legítima. O processo de reprimarização da economia brasileira intensificou-se bastante nas últimas três décadas, fazendo com que a indústria tenha uma acentuada perda de importância na produção da riqueza nacional (PIB), caindo de cerca de 25% nos anos 1980 para algo próximo a 10% hoje.

Observando o noticiário da imprensa tradicional, oligopolizada e conservadora, percebe-se que o documento oficial foi submetido a críticas, sob o crivo das habituais alegações liberais e abertamente entreguistas de sempre, que preconizam posição sobremodo subalterna da economia brasileira na divisão internacional do trabalho. Uma verborragia que, de um lado, assinala a velha cantilena da “vocação agrária” do país e, de outro, põe em destaque preocupações do sistema financeiro, com pretensa “gastança” pública orçamentária.

Talvez o maior mérito da proposta do governo Lula é de natureza cultural e epistemológica: um plano dotado de plausível revigoramento do debate público nacional. Décadas a fio vivendo especialmente sob o influxo do curtoprazismo, do atendimento a problemas imediatos e à saciação da ganância dos bancos e dos portadores de títulos financeiros, privados e do governo, sem perspectiva de futuro, a agenda pública brasileira tem muito a ganhar com a própria noção de um plano governamental de investimentos portador de metas de longo prazo. Ele tem o poder de suscitar a reflexão coletiva sobre os desafios nacionais, nossos dilemas e problemas, apontando diagnósticos e caminhos renovadores a percorrer.

A indicação de um planejamento oficial direcionado a gestar mudanças relevantes no cenário econômico e social é obra consideravelmente esquecida por décadas no debate público. Diriam os liberais tupiniquins avassalados aos interesses das finanças, do agronegócio e das megacorporações multinacionais, que o plano do governo representa um suposto “populismo dirigista e interventor” de um “passado superado”. Para não poucos destes liberais, a própria noção de planejamento estatal tenderia a ser incompatível com o capitalismo…

Uma bobagem típica do histriônico dogmatismo semirreligioso liberal, o “neoliberalismo neofascistizado”, como o chama o sociólogo boliviano Álvaro García Linera (“Izquierdas y neofascismo”, ed. Pehuén, 2023). No contexto da Guerra Fria, o economista estadunidense John Kenneth Galbraith (“O novo estado industrial”, ed. Nova Cultural, 1997) já havia demonstrado que as economias ocidentais se apoiavam no “sistema de planejamento”, programando custos e consumo. O mercado – formado por donos de pequenos negócios – teria sido subjugado ao planejamento, já que os elevados recursos mobilizados na produção capitalista contemporânea (pesquisa e desenvolvimento, produção e consumo em grande escala e internacionalizados), exigiriam previsibilidade e forte interação com o Estado, por meio de parcerias técnicas, oferta de crédito, protecionismo e compras públicas.

Em avaliação confluente, a economista italiana Mariana Mazzucato, que colaborou na preparação do programa “Nova Indústria Brasil”, argumenta em seus recentes trabalhos que o capitalismo dos nossos dias tem no Poder Público um agente central para canalizar volumosos investimentos em inovação e progresso tecnológico, com impactos na criação de mercados e empresas, assumindo riscos que as companhias privadas não possuem interesse, nem ousadia. Socializar não somente os riscos, como principalmente os frutos dos investimentos públicos na transformação das economias, deve ser uma das “missões” da interação capitalista entre Estado, universidades e empresas privadas, segundo a autora. Ela propõe a edificação de um “capitalismo diferente”, que priorize o interesse público, em vez dos lucros (Mariana Mazzucato, “O estado empreendedor”, ed. Portfolio-Penguin, 2014. Mariana Mazzucato, “Missão economia”, ed. Portfolio-Penguin, 2022).

Cumpre frisar a diferença deste programa de Lula em face à visão do governo Temer, que teve em sua “Ponte para o Futuro” (2016) um alinhavado de ideias norteadoras do projeto ultraentreguista, privatista e liberal, que implementou. Diferença igualmente notável em relação ao governo de Bolsonaro e a uma pretensiosa e reacionária proposta, divulgada por oficiais da cúpula militar que designavam as diretrizes programáticas a serem assumidas pelo ex-capitão, tão entreguistas e passíveis de regressão primária da economia, quanto as diretrizes do governo Temer (“Projeto de nação – o Brasil em 2035”, 2022).

Isso posto, o documento “Nova Indústria Brasil” possui alguns alvos claros, tais como:

  • Estimular a inovação tecnológica e a produção de bens ecologicamente sustentáveis, menos carbonizados.
  • Incrementar a produção de equipamentos, máquinas, vacinas, insumos médicos e farmacêuticos, bem como desenvolver a promoção de técnicas de diagnósticos na saúde pública. Diga-se, essa “missão” guarda estreita relação com a proposição feita no ano de 2020, por relatório conjunto da Organização Pan-americana de Saúde e a Comissão Econômica para América Latina e o Caribe. O relatório esposava a tese de empurrão reindustrializante no nosso subcontinente por meio da formação de um parque produtivo e tecnológico na área da saúde pública.
  • Incentivar o domínio internalizado na fabricação de semicondutores e desenvolver softwares particularmente voltados para as necessidades das instituições públicas.
  • Adensar a cadeia produtiva nacional, reduzir o peso dos bens primários na pauta comercial e introduzir maior valor agregado às exportações brasileiras.

O documento parte da premissa, correta, que um esforço de (re)industrialização só pode ocorrer no país por meio da indução promovida pelo Estado, de modo a criar mercados e empresas e satisfazer ao interesse público. O plano “Nova Indústria Brasil” menciona a oferta de crédito pelo BNDES, isenções fiscais e a realização de compras públicas, enquanto alguns dos instrumentos de suporte financeiro para lograr os propósitos assinalados. Algumas ideias e intenções ventiladas no programa do governo são realmente dignas de nota, ainda que dúvidas e limitações não deixam de envolver a potencial execução do plano.

A política macroeconômica que joga com juros altíssimos e o dócil cabresto autoimposto pelo governo Lula no desenho do orçamento da União – o “Novo arcabouço fiscal” – são fatores que podem constranger, e muito, o atendimento das metas do plano; metas que abrangem um período de 10 anos. Um processo de industrialização não faz bom casamento com o rentismo deslavado, que se adona de quase metade do orçamento do governo federal. Para este ano, está previsto 0% de aumento nos investimentos em Saúde e Educação, assim como 7 pontos percentuais negativos em Transportes e 11% negativos na rubrica Cidades. Algo que transforma em letra morta algumas aspirações do “Nova Indústria Brasil” em 2024.

Processos de industrialização, assim como a correlata inovação e domínio autóctone de tecnologia, também não fazem boa parceria com normas de sabor liberal que integram o ordenamento jurídico brasileiro. Elas precisam ser submetidas a uma rigorosa revisão.

O fim da distinção entre empresa nacional e estrangeira, sob o influxo da reforma constitucional levada a cabo por Fernando Henrique, nos anos 1990, tem a capacidade de diluir as virtualidades do incentivo ao controle e ao saber tecnológico nacional, já que empresas que atuam no território nacional (independentemente da sede do capital) possuem iguais garantias e tratamento jurídico.

De sorte que, nessas condições, um programa industrializante pode acabar servindo como fonte de financiamento do capital efetivamente estrangeiro, por meio de compras públicas e aquisição de serviços pelo Estado, por exemplo. A prática da desoneração fiscal que favorece as multinacionais de diferentes setores é sobejamente conhecida pela sociedade, e levada a cabo por todos os sucessivos governos federais, estaduais e municipais nos últimos 30 anos, imprimindo uma grave descapitalização da economia e do Estado brasileiro.

Igualmente, alguns pressupostos da nova lei de licitações e compras públicas, lei celebrada pelo programa “Nova Indústria Brasil”, não permitem prever base jurídica satisfatória para impulsionar ações públicas de criação tecnológica. A título de ilustração, o artigo 26 desta lei (no. 14.133, abr. 2021), estabelece prioridade nas aquisições públicas para “os bens manufaturados nacionais e serviços nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica no País”, dando-lhes “a margem de preferência” que pode chegar até 20% sobre o preço de concorrente que não tenha operações produtivas e laboratoriais no Brasil.

Em se tratando de bens com potencial tecnologicamente inovador, não raro produzidos por meio de tentativas típicas de erros e acertos, que encarecem produtos e fabricações ao longo do tempo de maturação em laboratórios e chão de fábrica, convenhamos, uma margem de apenas 20% sobre eventual preço oferecido por concorrente no exterior (já talhado há décadas na criação e elaboração de determinados bens e serviços de vanguarda), consiste em conferir nenhuma preferência à tecnologia nacional.

Ademais, a referida lei de licitações e compras públicas incorpora a prerrogativa defendida pela Organização Mundial do Comércio, da não discriminação às empresas de capital estrangeiro, nos seguintes termos (art. 9º): é “vedado ao agente público … na área de licitações e contratos” estabelecer “preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou do domicílio dos licitantes”. Um preceito normativo que procura satisfazer os geointeresses das megacorporações multinacionais e dos países centrais do capitalismo.

Importa ainda ponderar que o programa ressalta constantemente o objetivo de intensificar a transição energética e a “descarbonização” dos veículos de transporte público. Uma fonte de receita óbvia para lograr essa intenção seria a integral estatização da Petrobras. Não é admissível falar em transição energética mais “verde”, enquanto o abundante petróleo brasileiro tem servido mais para oferecer dividendos enormes a acionistas privados e estrangeiros. A Petrobras 100% estatal representaria fonte consistente de capitalização da nossa economia para financiar tal propósito ambientalmente necessário.

Esses são certos embaraços jurídico-administrativos imediatos à efetivação do plano industrializante. Algumas leis que precisam ser revistas. Adicionalmente, considerando, de um lado, a força dos megaconglomerados multinacionais estrangeiros e, de outro, as debilidades, vulnerabilidades e o baixo nível de comprometimento das faixas empresariais brasileiras com os interesses nacionais, importa chamar a atenção para o fato de que os contratos firmados pelo Estado, com vistas à inovação tecnológica, demandam a titularidade da propriedade intelectual ao Estado, suas empresas ou agências públicas. Gastos públicos requerem retorno público, de modo a contribuir para a acumulação da economia brasileira e o bem-estar social.

O aludido documento oficial é dotado de uma razoável veia desenvolvimentista, que se choca com a agenda ultraliberal esposada pelo mainstream midiático. Diga-se, ele não sugere, de modo algum, mudança significativa no caráter dependente e subordinado da economia brasileira na cadeia produtiva global. Existem muitas compatibilizações perceptíveis com as multinacionais no programa. Em todo caso, guarda o potencial de gerar atritos com as frações hegemônicas das classes dominantes, associadas às finanças e aos bancos. Sugere adensar a capacidade produtiva nacional e, em menor medida, a educação e o perfil dos empregos.

Nesse sentido, é imperioso que se leia e debata esta marcante proposta do governo Lula. Para que ela possa ter alguma viabilidade é forçoso ampliar a politização de amplas frações da sociedade brasileira, mormente as classes trabalhadoras e intermediárias. Elevar o debate público. Desde Maquiavel e Espinoza, passando por Marx e Lenin, uma questão sempre surge em todo projeto de mudança política, social, cultural e econômica: quais são os agentes sociais que possuem a potência transformadora para perseguir a realização de um projeto de reformas ou de revolução?

No caso específico das intenções reindustrializantes do governo federal: qual fração ou quais frações de classe poderiam dar suporte social a esse plano? Todos os segmentos da classe trabalhadora, com a promessa de mais e melhores empregos? Mas, haverá politização e mobilização? Segmentos industriais burgueses domésticos em estado de extinção entre as classes dominantes no Brasil apoiarão de fato, ou somente irão acenar, como fizeram nestes dias, favoravelmente, sem maiores compromissos? E os donos de micros e pequenos negócios, igualmente acalentados pelo programa “Nova Indústria Brasil”, serão objeto de esclarecimento e educação política sobre possíveis interesses seus que venham a ser contemplados?

Essa dimensão político-educativa não pode ser dispensada, caso se queira realmente introduzir mudanças na sociedade e na economia brasileira, permitindo dar-lhes configuração menos rudimentar, que se cristalizou nestes anos de padrão de reprodução e acumulação neoliberal, financeiro, primário-exportador. Limitações à parte, o “Nova Indústria Brasil” deveria ser submetido a um debate público sério e rigoroso. Para enfrentar as direitas tradicionais. Para servir de mote ao refinamento da capacidade de proposição das esquerdas, especialmente pequeninas e antissistêmicas. O plano, com as suas metas reindustrializantes, é muito importante e pode representar alguma inflexão ainda obscura no horizonte.

Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador