
A crise de legitimidade da ONU: reformar ou abolir
por Ruben Rosenthal
Talvez seja necessário formar uma nova organização de Estados-nações, sem os vícios da atual, o que possivelmente só seria concebível a partir de uma nova ordem internacional.
Atualmente, os conflitos no Oriente Médio e na Ucrânia têm o potencial de escalar ao ponto da deflagração de uma nova guerra mundial, em que alguns atores poderiam recorrer ao uso de armas atômicas. Esta situação ocorre em um cenário em que a Organização das Nações Unidas não consegue alcançar o seu objetivo primordial, de manutenção da paz e segurança internacionais.
Esta incapacidade se deve, em grande parte, às limitações do poder da Assembleia Geral e à inação do Conselho de Segurança (CS), devido ao direito de veto garantido aos cinco membros permanentes do Conselho, a saber, EUA, Rússia, República Popular da China, França e Reino Unido, o chamado P5.
Com a intenção de superar este impasse, nos últimos anos vem sendo debatida em diversos setores a necessidade de reforma da Carta da ONU, com foco principalmente na abolição ou restrição ao direito de veto, como também na ampliação no número de membros permanentes do Conselho, de modo a incluir representantes da África, América Latina e Ásia. Estender o direito de veto a mais países, principalmente do Sul Global, com certeza tornará o CS mais representativo dos atuais 193 estados-membros da ONU, mas provavelmente não deverá contribuir para uma maior operacionalidade e eficácia do Conselho.
Embora seja necessária uma reforma da Carta da ONU, que vigora desde 1945, a mesma já dispõe de alguns mecanismos capazes de limitar o uso do direito de veto pelo P5, bem como garantir que, no caso de inoperância do CS, a Assembleia Geral possa “recomendar” aos membros, a adoção de medidas que possibilitem a superação do impasse.
A efetiva implementação de mecanismos já existentes na Carta da ONU representaria um grande avanço no sentido aumentar a operacionalidade do Conselho de Segurança. Para tanto, seria necessária a intervenção da CIJ, a Corte de Internacional de Justiça, principal órgão jurídico da ONU.
Limitação ao poder de veto pelo P5
Recentemente, vimos os EUA fazerem uso, mais de uma vez, de seu poder de veto para bloquear a obtenção de um cessar-fogo entre Israel e o Hamas, na Faixa de Gaza. Como também, anteriormente, a Rússia vetara uma resolução que condenava a anexação da península da Crimeia. Desnecessário recorrer a mais exemplos, de como os países do P5 fazem uso do direito de veto nas votações no CS, quando seus interesses ou de seus aliados estão em jogo.
No entanto, o artigo 27 (3) da Carta da ONU estabelece que haja abstenção compulsória do membro permanente, em votações nas quais o mesmo seja parte da disputa em questão. Assim como a Rússia já era então parte de uma disputa com a Ucrânia, também os Estados Unidos são atualmente partes da disputa entre Israel e os palestinos. De fato, não se pode refutar o argumento que os EUA, por serem um importante aliado militar de Israel e estarem alimentando a continuação do conflito com o envio de armamento pesado, se tornaram parte da disputa.
Entretanto, embora a Carta da ONU seja clara em relação à obrigatoriedade de abstenção dos membros que façam parte de uma disputa, ela não regulamenta quais sejam estes membros. A interpretação atual é que apenas os países envolvidos diretamente em um conflito bélico, sejam considerados como sendo as partes que estão em disputa. Mesmo assim, a aplicação do artigo 27 (3) tem sido, por vezes, evitada. Parece haver um acordo tácito entre os membros do P5 de não tentarem impor uns aos outros tal limitação. Na prática, a renúncia ao uso do veto tem sido voluntária.
Um artifício que vem sendo usado para burlar o artigo 27 (3), é o próprio CS estabelecer que um determinado conflito não se trata de uma “disputa”, mas sim de uma “situação”; assim, o artigo não se aplicaria. E para completar o artifício, não existe uma clara distinção entre “disputa” e “situação”. Caberia a CIJ, legislar no sentido de regulamentar os casos não bem determinados, e garantir que a Carta da ONU seja cumprida.
Um destes casos que requer urgente definição é estabelecer com clareza, quais são as partes em disputa em uma confrontação bélica. Por exemplo, os EUA, pelo amplo e contínuo apoio militar a Israel, antes e durante o conflito em Gaza, deveriam ou não serem considerados partes da disputa? Uma questão semelhante já havia sido levantada em 1974, em relação ao apoio de alguns membros do P5 ao regime racista da África do Sul.
Consta dos anais do Conselho de Segurança, que Cuba, Argélia, Maricius e Madagascar pleitearam que os países que davam apoio diplomático, político e militar ao regime de Apartheid da África do Sul, deveriam ser considerados como “parte da disputa”, e com isso, sujeitos ao artigo 27, o que os impediriam de exercer o poder de veto nas votações.
A questão da abstenção compulsória levantada há cinco décadas permanece atual, seja no caso da confrontação Rússia-Ucrânia, como também do conflito em Gaza. Se em 2014, quando da anexação da Crimeia pela Rússia, apenas este Estado deveria ter abdicado do direito de veto na votação no CS, atualmente, também os países membros da OTAN não poderiam fazer uso do direito de veto em votações no CS sobre a guerra na Ucrânia.
No caso de Gaza, é flagrante que o fornecimento de armamento a Israel pelos EUA, Reino Unido e França alimenta o cometimento de crimes por Israel, que violam o Estatuto de Roma. Embora em outubro deste ano, o presidente francês Emanuel Macron tenha defendido a interrupção do fornecimento de armas a Israel, os três países deveriam ser considerados partes da disputa, até porque estão sendo cúmplices no genocídio de palestinos.
A competência para definir esta questão cabe a Corte Internacional de Justiça, que deveria legislar no sentido de regulamentar os pontos omissos na Carta da ONU, e impor seu cumprimento. Mesmo com a atual indefinição e omissão da CIJ, a Assembleia Geral dispõe de um mecanismo que lhe permite assumir um papel relevante, quando o Conselho de Segurança estiver inoperante na resolução de crises devido ao uso do veto por países do P5.
O poder da Assembleia Geral
Em 3 de novembro de 1950, em face da crise na península da Coréia, a Assembleia Geral adotou a Resolução 377A, denominada Unindo pela Paz (Uniting for Peace). Poucos meses antes, em agosto do mesmo ano, a então União Soviética fizera uso de seu direito de veto no CS, para impedir uma resolução que condenava a Coréia do Norte. Em resposta, os EUA mobilizaram a Assembleia Geral, o que levou à aprovação da Resolução 377.
A parte mais importante da resolução é a seção A, ao afirmar que, quando o Conselho de Segurança, devido à falta de unanimidade dos membros permanentes, não exercer a sua responsabilidade primária pela manutenção da paz e segurança internacionais, a Assembleia Geral tomará para si o assunto. Em sessão convocada, a AG poderá fazer as “recomendações” apropriadas para adoção de “medidas coletivas…incluindo o uso da força armada quando necessário”.
Uma decisão que recomende aos países membros alguma forma de intervenção ou apoio militar, mesmo que possa levar à solução de um conflito, pode não ser de fácil implementação. No entanto, uma recomendação de boicote econômico a nações que estejam em flagrante e grave violação de normas internacionais, pode ter um efeito mobilizador e propagador para a adesão de países ao boicote. O Estado de Israel seria um forte candidato a ser alvo de um amplo boicote econômico, a partir da mobilização de países do Sul Global na Assembleia Geral, invocando a Resolução 377A.
Mesmo tais decisões não sendo mandatórias, Christian Tomuschat, professor emérito da Humboldt University de Berlim, acredita que a Resolução 377A tenha um potencial que poderia subverter o equilíbrio de poder dentro das Nações Unidas, um potencial que não fica evidenciado na descrição do papel e autoridade da Assembleia Geral.
Assim como a Liga das Nações, criada em 1919 após a Primeira Guerra Mundial com o objetivo de assegurar a paz, falhou em seu objetivo, a ONU corre também o risco de fracassar nesse intento. No momento, fica difícil crer que os países do P5 aceitem alterações na Carta da ONU que afetem seu predomínio no Conselho de Segurança.
Talvez seja necessário formar uma nova organização de Estados-nações, sem os vícios da atual, o que possivelmente só seria concebível a partir de uma nova ordem internacional. Resta esperar que uma Terceira Guerra Mundial não ocorra antes.
Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, responsável pelo blogue Chacoalhando e pelo programa deentrevistas Agenda Mundo, veiculado no canal da TV GGN e da TV Chacoalhando.
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