Duas Ucrânias: o neonazismo de uma Guerra que não começou hoje

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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O nazismo alemão na Ucrânia na 2ª GM perpetrou-se nas forças militares e políticas neofascistas, dividindo o país

O teor ostensivo das forças militares russas na guerra na Ucrânia não deflagrou o rompimento de um Estado “quase europeu” aparentemente pacífico, até então sem conflitos. Chocando hoje o noticiário ocidental, o território é zona de conflitos históricos, que remontam à 2ª Guerra Mundial e, na configuração mais similar à atualidade, constantes desde 2014. Foi quando a divisão na Ucrânia – entre nacionalistas extremistas e apoiadores da Rússia – pavimentou o caminho para a fatalidade dos confrontos atuais. 

Naquele ano, o Leste da Ucrânia – a região que faz a fronteira com a Rússia – foi palco de um intenso confronto armado, que se perpetuou ao longo dos anos e que se estima ter gerado a morte de 14 mil pessoas. De um lado, a população de separatistas favoráveis à Moscou, de outro, aqueles que almejam ser parte da União Europeia e das respectivas alianças econômicas e militares dos países europeus, independente da influência russa.

As duas Ucrânias

Historiadores registram que essas diferentes posições foram demarcadas nas regiões em todos os seus aspectos, desde a cultura, a música, a educação, o idioma, configurando o país em dois grandes grupos identitários: o centro-oeste adepto à aproximação com a Europa, e o sul e leste que apoiam a influência russa, defendendo as separações com autonomia dessas regiões, ou ainda a incorporação à Federação Russa. 

O retrato dessa divisão se apresenta nos dados populacionais. De modo geral, a Ucrânia conta com 17,3% de população de origem russa. Mas as regiões do leste do país, Donetsk e Lugansk, detinham cerca de 39% de russos étnicos. Ainda, 75% da população dessas localidades do Leste falava o idioma russo, segundo os últimos dados registrados, contribuindo para essa percepção de pertencimento.

Em 2013, após uma campanha política que se apresentava como adepto de um diálogo com a Europa, o então presidente ucraniano Viktor Yanukovych atendeu à petição de Moscou e desistiu de assinar um acordo da Ucrânia com a União Europeia, arrojando protestos, principalmente, entre as populações do centro-oeste, incluindo Kiev, a capital do país. Os maiores atos ocorreram na Praça Maidan, na capital, em 2014, episódio que ficou conhecido como Euromaidan, reunindo cerca de 100 mil de ucranianos favoráveis à essa integração. Ameaçado, o presidente fugiu para a Rússia e, pouco tempo depois, acabou sendo deposto do cargo.

Os atos tiveram como liderança grupos nacionalistas, com a propagação de milícias de extrema direita que faziam apologia direta ao nazifascismo ucraniano, em bandeiras que remontam à Alemanha nazista da 2ª Guerra Mundial, em nome de uma suposta “independência” da Ucrânia contra o domínio de Stalin na União Soviética (Leia mais abaixo).

Reportagem da BBC News de 2014 relatava que os grupos neonazistas conformavam minoria, mas eram os mais “organizados”, “efetivos” e “violentos” nos confrontos de Odessa. À época, um jovem combatente entrevistado falava da “ideia de uma única nação limpa”, “não como sob [o domínio de] Hitler, mas nos nossos próprios termos, um pouco parecido com isso”.

Em resposta à perseguição dessas milícias aos grupos separatistas e a deposição de Yanukovych, além de outros contextos históricos e geopolíticos, a Rússia interveio na Criméia, assumindo o controle e declarando-a parte da Federação Russa, naquele mesmo ano. A medida amplificou as rebeliões entre separatistas pró-Putin e o Exército ucraniano com o apoio das milícias nacionalistas, em um confronto civil que foi chamado de Guerra em Donbass, como é conhecida as áreas do leste ucraniano.

A Alemanha nazista

O sentimento nacionalista de parte da população do centro-oeste, da capital Kiev e também das milícias paramilitares, remete a uma das figuras de maior destaque e polêmicas do nacionalismo ucraniano dos anos 40, ainda na 2ª Guerra Mundial, Stepan Bandera.

Antes do Exército nazista alemão ocupar o território ucraniano, em 1941, Bandera usou o período que ficou conhecido como Holodomor ou Grande Fome, entre os anos de 1931 e 1933, quando milhões de ucranianos morreram de fome, diante do controle da produção de cereais dos países da União Soviética por Stalin. Bandera alimentou o sentimento antissoviético, ajudando os nazistas a entrarem na Ucrânia, como uma suposta “independência” do país da influência de Stalin.

Assim, parte da população ucraniana colaborou com os alemães nazistas, que permaneceram na Ucrânia até 1944, auxiliando no instaurado governo civil alemão Reichskommissariat Ukraine (RKU), tornando-se parte da polícia nazista e até guardas em campos de concentração.

Por outro lado, calcula-se que mais de 5 milhões de ucranianos morreram combatendo os nazistas, que mataram a maior parte dos 1,5 milhões de judeus ucranianos. É nesse histórico que se apega o atual presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, que teve tios-avós e outros familiares judeus assassinados no Holocausto.

“Dizem a vocês [russos] que somos nazistas. Mas pode um povo que deu mais de oito milhões de vidas pela vitória sobre o nazismo apoiar os nazistas? Como posso ser nazista? Explique isso ao meu avô, que passou por toda a guerra na infantaria do exército soviético e morreu como coronel na Ucrânia independente”, disse Zelensky em russo, em um dos seus primeiros pronunciamentos sobre o confronto atual, dirigido à população russa, no dia 23 de fevereiro.

A contradição levantada sobre a atual liderança ucraniana ocorre porque Zelensky também referencia o conceito de “independência” da Ucrânia e o sentimento antissoviético dos anos 40. O presidente já participou, inclusive, de eventos oficiais que homenagearam os tais “herois nacionais”, ligados ao ultranacionalismo (leia mais abaixo). Também representa a parte da população favorável a integrar a União Europeia e explicita o desejo de formar, com estes países, uma força militar capaz de enfrentar a Rússia, em um futuro.

As milícias

Na ponta desses grupos nacionalistas, estão aqueles que não escondem a simpatia e defesa escancarada do nazismo, que na atualidade se configuram no neonazismo. Entre as mais destacadas, as milícias Pravy Sektor e Azov Battalion empunham bandeiras ligadas ao RKU e Stepan Bandera, e seus líderes chegaram a figurar como o “herói nacional ucraniano”.

Azov Battalion

O Departamento de Operações Especiais Azov, ou Batalhão de Azov como ficou conhecido, nasceu como uma milícia voluntária nos protestos de 2014, em Odessa, mas hoje integra as forças oficiais, sendo um departamento da Guarda Nacional da Ucrânia.

O logotipo do Batalhão Azov traz emblemas neonazistas, com as imagens Wolfsangel e o Sol Negro, que são usados por grupos supremacistas em todo o mundo. Depois da Guerra em Donbass, os integrantes da milícia foram usados para a capacidade militar estatal, nas forças oficiais do governo ucraniano.

Em fevereiro deste ano, a conta do Twitter da Guarda Nacional da Ucrânia publicou um vídeo mostrando combatentes do Batalhão de Azov da Guarda Nacional colocando banha de porco em balas para serem usadas contra chechênios russos que lutavam na fronteira. A maioria da população dessa região da Rússia é muçulmana, religião que proíbe comer ou tocar em suínos.

https://twitter.com/ng_ukraine/status/1497924614865002497

Pelo mundo

Ramificações das milícias e grupos extremistas ucranianos, presentes na política até as Forças Armadas, também se fazem presentes nos países fronteiriços da Ucrânia e no leste europeu. Mas da Ucrânia partem coordenações de recrutamento internacional direto para as forças paramilitares e da Guarda Nacional, oficiais, de combatentes com aspirações neonazistas.

Antes dos confrontos deste ano, autoridades e órgãos de investigação de diversos países anunciavam os esforços contra essa coordenação neonazista. Trata-se de um grupo chamado Divisão Misantrópica dentro do Batalhão Azov, que foi denunciado por diversos jornais pelo mundo pelo papel de recrutar jovens no Reino Unido, França, Alemanha, Escandinávia, Estados Unidos e também no Brasil. A própria militante bolsonarista Sara Winter diz ter sido recrutada e treinada pela Ucrânia.

Em 2017, polícias de diversos países deflagraram operações para impedir o recrutamento de neonazistas para a Ucrânia. No Reino Unido, o então chefe da seção antiterrorista britânico Mark Rowley afirmou que quatro planos terroristas de extrema direita, sob coordenação da Divisão Misantrópica do Batalhão Azov, haviam sido frustrados naquele ano. No Brasil, até 2017, operações preventivas da polícia, principalmente no Rio Grande do Sul, foram realizadas para monitorar grupos neonazistas e, em uma delas chamada de Operação Azov, identificou-se a atuação direta da milícia ucraniana.

Na política

Quando foi criado o Batalhão de Azov, o líder Andriy Biletsky -que anteriormente já havia participado de atos radicais de extrema direita e depois do comando do Batalhão tornou-se político- chegou a afirmar que a missão era “liderar as raças brancas do mundo em uma cruzada final por sua sobrevivência contra o Untermenschen [termo nazista que significa ‘povos inferiores’] liderado pelos semitas.”

Biletsky não somente criou o grupo ultranacionalista que referencia o nazismo, como junto com outros paramilitares de Azov formaram o Nacional Corps (Partido do Corpo Nacional), em 2016, levando os ideais antissemitas e de extrema-direita para a política. Em 2019, a coalizão obteve 2,15% dos votos dos eleitores ucranianos, mas não garantiu nenhum assento no Parlamento. Mas ele próprio disputou um cargo no Verkhovna Rada, o Parlamento ucraniano, como candidato independente, ou seja, sem partido, e conseguiu ser eleito com 33,75% dos votos do distrito de Kiev, ainda em 2014.

Andriy Biletsky também fundou a organização Patriota da Ucrânia, em 2005 e extinto em 2014, que empregou atos terroristas, e a Assembleia Social-Nacional (SNA), um partido político que reúne todas as organizações e movimentos ultranacionalistas e neonazistas da Ucrânia, ainda em 2008, e ligado a outros partidos políticos ultranacionalistas, como o anticomunista Svoboda (União de Toda a Ucrânia “Liberdade”), que elegeram deputados ao longo dos anos, e que inspirou posteriormente o Pravy Sektor.

No final dos anos 90 e início de 2000, o Svoboda foi considerado neonazista e houve uma tentativa de suas lideranças, nos anos seguintes, de moderar a imagem neofascista, assim como o Pravy Sektor, que tenta até hoje derrubar a imagem de que a milícia nacionalista seja extremista. O Pravy Sektor é uma coalizão, assim como a SNA, que reúne organizações e partidos políticos extremistas, criado em 2013, tendo entre seus membros desde integrantes das forças da Guarda Nacional e do Exército ucraniano a políticos de partidos de extrema direita do Parlamento.

Ainda na linha de exaltar os combatentes radicais como “heróis nacionais”, antes do início do confronto russo no território, o presidente Volodymyr Zelensky homenageou o líder do Pravy Sektor, Dmytro Kotsyubaylo, em dezembro do ano passado, elogiando a sua atuação pela “independência da Ucrânia”.

Pouco antes, em abril de 2021, Zelensky ressaltava que, como presidente, era “Comandante Supremo” das Forças Armadas e chegou a ir, pessoalmente, às trincheiras da fronteira com a Rússia para apoiar os militares e paramilitares ucranianos contra os russos. “Como Comandante Supremo, quero estar com nossos soldados nos tempos difíceis em #Donbas“, havia escrito, em suas redes.

“A Ucrânia está brincando com fósforos”, havia alertado o vice-chefe do presidente russo Dmitry Kozak sobre o ato do político ucraniano na fronteira. No dia 17 de fevereiro, Zelensky voltou ao front, na região de Donetsk.

Presidente da Ucrânia visitou as trincheiras militares na região de Donetsk – Foto: Gabinete Presidencial da Ucrânia – 17/02/22
Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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