STF deixa direitos sociais de lado quando julga questões importantes para o grande capital

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Na Alemanha, o Judiciário faz interpretação conforme a Constituição para ampliar os direitos humanos. Aqui se faz o contrário

Luis Roberto Barroso, ministro do STF
O ministro Luis Roberto Barroso, relator no STF da ADI 5766, que pede a declaração de inconstitucionalidade de artigos da reforma trabalhista que dificultam o acesso à Justiça gratuita

É inquestionável que, diante do vácuo gerado pela omissão do Congresso Nacional em alguns temas, o Supremo Tribunal Federal tem sido firme na defesa dos direitos humanos no Brasil. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando da criminalização da homofobia e do racismo, e do reconhecimento do casamento homoafetivo, entre outras conquistas civilizatórias.

Mas quando as questões que interessam ao grande capital entram na pauta do STF, direitos sociais prestigiados na Constituição de 1988 acabam esquecidos. Um deles, aparentemente, é a gratuidade do acesso à justiça do trabalho. Quem chama atenção para a postura vacilante da Corte é o professor universitário, juiz do trabalho e doutor em Filosofia Jurídica pela Universidade de Barcelona, Reginaldo Melhado, autor do livro “Metamorfose do capital e do trabalho”.

Melhado participou do programa TVGGN Jurídico [assista abaixo] na última sexta (15), ao lado dos jornalistas Luis Nassif e Marcelo Auler, e do professor de Direito Eduardo Appio. Eles discutiram o acesso gratuito dos trabalhadores à justiça, à luz da ADI 5766, que voltou a tramitar no STF após ter sofrido pedido de vistas em 2018.

Seguindo o voto do relator da ADI, ministro Luís Roberto Barroso, a Suprema Corte caminha para formar maioria para manter os dispositivos da lei 13.467 e modulá-los com o intuito de “desincentivar a litigância abusiva”. Atuasse emulando os tribunais na Europa, de onde emprestou o princípio da “interpretação conforme a Constituição” para modular leis que são, em alguma medida, inconstitucionais, o STF seria o responsável pela “derrocada” da reforma trabalhista de Temer, diz Melhado. Mas não é o cenário que se forma no horizonte.

O ACESSO GRATUITO À JUSTIÇA

“O acesso à Justiça é o mais fundamental dos direitos. É mais relevante do que o direito de ter direitos. Foi um direito negado, por exemplo, aos judeus no nazismo. É um direito que se nega hoje, paradoxalmente, no Estado de Israel, aos palestinos. E é esse direito que é limitado por essa questão vital sendo julgada pelo STF”, apontou Melhado.

“O voto do relator é no sentido de manter [cobranças que desestimulam que trabalhadores levem suas causas ao Judiciário]. O Barroso vota pela constitucionalidade com esse blá-blá-blá de que é preciso limitar o número de ações trabalhistas, que no Brasil seria muito alto. Isso é falso. O número de ações trabalhistas não é tão absurdo. E, se fosse muito, a gente precisaria entender por que há tantas lesões aos direitos trabalhistas.”

INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO

A chave para entender para onde caminha o STF nesta questão trabalhista está no princípio da “interpretação conforme a Constituição”, que Appio trouxe ao debate.

“O voto do relator é a arma mais poderosa no STF, ainda mais com a chamada interpretação conforme a Constituição. Essa arma surgiu na reforma do Judiciário em 2004 e alterou várias leis que tratam do controle constitucional das leis. Ainda que o STF considere inconstitucional uma determinada lei, ele poderá se utilizar da chamada interpretação conforme à Constituição para adaptar essa lei. O que significa isso na prática? O Supremo passa a legislar e acaba alterando, conforme o sabor dos acontecimentos e da sua interpretação, o sentido originário que deram àquela lei. É uma atividade legislativa. O STF acaba tendo esse super poder legislador, muito superior ao do Congresso Nacional.”

Em tese, portanto, o STF tem poder, sim, para modular dispositivos da reforma trabalhista. Porém, o curioso nesta história é que outros tribunais pelo mundo recorrem a esta arma para firmar os direitos sociais de seus povos. Já em terras tupiniquins, o STF tende a preservar o mérito de uma reforma trabalhista que só interessa ao grande capital. Nem mesmo os empresários que dependem do mercado interno estão lucrando alto com a herança do governo Temer.

O VOTO DO RELATOR

Em seu site, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – contrária à reforma trabalhista – explicou que, a valer a interpretação do relator sobre a ADI, “os honorários sucumbenciais do hipossuficiente podem incidir sobre verbas não alimentares, a exemplo de indenizações por danos morais, em sua integralidade; e sobre o percentual de até 30% do valor que exceder ao teto do Regime Geral de Previdência Social, mesmo quando pertinente a verbas remuneratórias. Os ministros também defendem a legitimidade da cobrança de custas judiciais, em razão da ausência do reclamante à audiência, mediante prévia intimação pessoal para que tenha a oportunidade de justificar o não comparecimento.”

Em outras palavras, “o ministro Barroso sugere que se dê a interpretação conforme a Constituição, partindo do pressuposto que a lei é inconstitucional mas podemos salvá-la, desde que os honorários a serem suportados incidam somente sobre aquela parcela que exceda 30% do teto da Previdência hoje, ou seja, algo como 5.744,00 reais. O que exceder isso, você pode fazer a cobrança de honorários, custas, etc, sobre esse montante excedente. Essa é a interpretação conforme a Constituição que eles fizeram. Isso é delicado porque, na prática, vamos ter a limitação do acesso do cidadão ao Judiciário.”

AQUI SE FAZ O CONTRÁRIO

“O que a gente tem hoje é uma discricionariedade tamanha que parece que eles [ministros do STF] sentam ali e resolvem o que eles bem entenderem. Quando o STF vai decidir questões que dizem respeito aos interesses do grande capital, parece que a exacerbação se pronuncia ainda mais. Ao contrário do que aconteceu na Alemanha, de buscar uma interpretação da Constituição para ampliar os direitos humanos, aqui se faz o contrário”, acrescentou Melharo.

Na visão de Appio, o STF “passa para a população o perfil de politicamente correto de um lado, mas nas grandes questões que impactam na sobrevivência do trabalhador, busca uma interpretação conforme a Constituição” incompatível com a Carta Magna.

“A livre economia da Inglaterra e Estados Unidos não é a nossa tradição. Essa nossa Constituição de 1988 não se traduziu nesse imperialismo desse laissez-faire, no imperialismo desenfreado da economia, e na participação do Estado somente para suportar o empresariado. Não é essa Constituição de 1988.”

DESTRUIÇÃO DE DIREITOS

Para Melharo, a reforma trabalhista de 2017 é “um vendaval, uma destruição de direitos sem precedentes na história. Os efeitos ainda vamos sentir ao longo do tempo, embora já dê para perceber o potencial destrutivo da reforma. E um deles é a limitação à justiça do trabalho, além dos efeitos para a economia. Com certeza grande parte do desemprego crescente hoje devemos à reforma trabalhista e à precarização do trabalho.”

Confira a live completa no vídeo abaixo:

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

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