A judicialização da política na reorganização do ensino paulista, por Frederico de Almeida

Do Justificando

O ovo e a galinha da judicialização da política

Frederico de Almeida

Na semana anterior escrevi aqui no Justificando sobre a opção do Judiciário paulista em não judicializar a política no caso da reorganização da rede estadual de ensino contra a qual estudantes protestavam ocupando escolas. Naquele artigo, enfatizei a insistência dos juízes que sucessivamente negaram reintegração de posse das escolas ocupadas, ao afirmarem que a questão era política, de política pública, e assim deveria ser tratada, por meio de um diálogo democrático do governo com os estudantes.

Na última semana, contudo, o Judiciário foi instado a se manifestar sobre o mérito da política pública, por provocação conjunta da Defensoria Pública e do Ministério Público de São Paulo, que por meio de Ação Civil Pública (ACP) pretendem impedir a reorganização proposta pelo governador Geraldo Alckmin. Ao contrário das decisões judiciais que analisei em meu artigo anterior – sobre questão possessória, já que o governo solicitava a reintegração de posse das escolas ocupadas –, desta vez o Judiciário deverá se manifestar sobre o próprio mérito da proposta pretendida por Alckmin.

Nas decisões anteriores, o Judiciário paulista disse que a questão não era possessória, mas sim de política pública, e que por isso deveria ser tratada pelo governo e pelos interessados, diretamente; na ação proposta pelo MP e pela Defensoria, porém, está em julgamento o próprio mérito da política pública, de maneira pela qual o Judiciário não poderá se recusar a interferir. Entre uma coisa e outra, houve o vazamento de um áudio de reunião do chefe de gabinete da Secretaria de Educação com dirigentes da rede estadual, na qual ele afirmava que se tratava de uma “guerra”, e propunha medidas de construção artificiosa de narrativas a favor da reorganização, desmoralização do “inimigo” (os estudantes) e construção de uma falsa disposição do governo para o diálogo – o que incluía a convocação de uma audiência pública com o objetivo, declarado pelo chefe de gabinete da Secretaria, de dar ao MP e à Defensoria a impressão de que o governo estaria disposto a dialogar, e que os intransigentes eram os estudantes.

Nesse meio tempo, além da aplicação da estratégia de “guerra” proposta pela Secretaria – uma guerra não apenas informacional, como sugeriram alguns veículos de imprensa, mas também militar, viabilizada pela forte repressão da PM aos estudantes na última semana – houve também a divulgação de uma análise conduzida pela Universidade Federal do ABC, que desmontava os argumentos “técnicos” do governo estadual, apontando erros metodológicos e substantivos no “estudo” da Secretaria de Educação que fundamentava a proposta de reorganização (estudo esse, aliás, mantido em segredo pelo governo até que este se viu obrigado a divulgá-lo por força da Lei de Acesso à Informação).

Chama a atenção uma declaração de Daniela Skromov, defensora pública responsável pela ACP, na entrevista coletiva que anunciou a medida conjunta com o MP: “O Judiciário é a última saída, mas não tivemos opção”. O lamento da defensora pública parte do recado dado nas primeiras decisões do TJSP (o de que a questão deveria ser tratada no âmbito do Executivo, como política pública que é), mas incorpora a constatação de que o próprio Executivo, responsável pela política pública, não acatou o recado do Judiciário e, ao invés de diálogo, optou pela violenta repressão dos estudantes pela PM, por uma estratégia de combate midiático e informacional por parte dos dirigentes da Secretaria de Educação e pela falta de transparência sobre a formulação da proposta.

No meu artigo anterior afirmei que a chamada judicialização da política é muitas vezes criticada como uma usurpação do protagonismo dos cidadãos por tribunais que interferem em questões políticas. A declaração da defensora pública responsável pela ACP demonstra preocupação com essa possibilidade. Por outro lado, ao tratar do Judiciário como “última saída”, ela aponta para uma característica da judicialização da política aceita até pelos seus críticos mais contundentes: o uso do Judiciário como recurso de minorias contra decisões tomadas pelas maiorias políticas que compõem Executivo e Legislativo. Embora o conceito de “minoria” e “maioria” seja problemático e não possa ser confundido com “oposição” e “governo”, respectivamente, esse aspecto da judicialização da política, que parece evidente no caso da oposição dos estudantes à proposta do governo, está associado ao que os estudos mais clássicos chamam de caráter contramajoritário do Judiciário.

Porém, isso por si só não resolve o problema do protagonismo político. O fato de que as minorias sejam protegidas por órgãos judiciais, que as demandas dessa minoria sejam necessariamente traduzidas em ritos e discursos essencialmente jurídicos, pode ser por si só um problema. Há estudos que mostram voluntarismo e até certo autoritarismo de juristas e órgãos judiciais na defesa da “sociedade” ou dos “hipossuficientes”, além da exclusão imposta pela linguagem e pela expertise dos juristas. Por outro lado, há estudos que mostram intensa interação entre grupos e movimentos sociais, de um lado, e órgãos judiciais, de outro, na construção de demandas judiciais, na construção social e material do direito, e na apropriação dos recursos políticos e jurídicos de uma luta social que não necessariamente respeita as fornteiras – mais teóricas do que reais – da separação de poderes e entre direito e política. O MP paulista, um dos autores da ACP, não raro é alvo das críticas de voluntarismo e autoritarismo em sua relação com a sociedade; a Defensoria, por sua vez, ao menos em São Paulo, é reconhecida por sua abertura aos movimentos sociais, embora isso seja um foco de fortes conflitos internos e também possa ser alvo da crítica ao voluntarismo.

No caso do conflito entre estudantes e governo, some-se o fato de que Alckmin, ao final, recuou e suspendeu a reorganização, um dia após o anúncio da ACP. Um dos efeitos da judicialização da política é justamente o de forçar decisões políticas, sob a ameaça de uma intervenção judicial, mesmo quando essa intervenção não ocorre. Seria, porém, injusto com a força demonstrada pelos estudantes ao longo de mais de 20 dias atribuir o recuo do governo apenas à ameaça de uma derrota judicial. Devemos considerar também a queda da popularidade de Alckmin, em pesquisa divulgada na manhã do mesmo dia do recuo do governador – essa queda de popularidade, por sua vez, não decorreria ela mesma da repercussão do movimento dos estudantes e das suas críticas à reorganização, recusada por 61% dos paulistas, de acordo com a mesma pesquisa? Independentemente do resultado da ACP (que será mantida, segundo a Defensoria, que pediu ainda que os estudantes mantenham a mobilização mesmo após o recuo do governo) e da própria política de reorganização no futuro, é bastante difícil afirmar a predominância ou a antecedência do jurídico ou do político, dos órgãos judiciais ou do movimento dos estudantes, na construção de uma estratégia política complexa e definida em um contexto de interações imprevisíveis e tensas, ora conflitivas, ora cooperativas. Afinal, quem veio primeiro: o ovo ou a galinha?

Frederico de Almeida é bacharel em Direito, mestre e doutor em Ciência Política pela USP, e professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.
Redação

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