As lições da Alemanha na prisão de proxenetas golpistas: acorda, Brasil!
A teoria constitucional e política alemã atual desenvolveu o conceito de wehrhafte Demokratie, ou a democracia que deve defender a si mesma; a democracia que se defende. Ou “democracia bem fortificada”!
O exemplo não poderia ser melhor para o Brasil. Assim começa o belo texto do professor Martonio Barreto Lima publicado no jornal O Povo, de Fortaleza. Martonio é daqueles professores que orgulham a academia. E o direito constitucional de um país periférico como o Brasil. Um “scholar”; ou, já que Martonio mostra que não precisamos de qualquer viralatismo, um doutrinador. Que cumpre seu papel. Valorizemos o que é nosso. Leiamo-nos a nós mesmos.
Há, porém, algumas coisas nas quais o Brasil faz questão de ficar atrás. Talvez, se lêssemos mais o que nossos bons doutrinadores como Martonio têm a dizer…
Muito bem. Ao trabalho.
O texto de Martonio fala de um contraste que mostra o pior do Brasil. O recente episódio da prisão de 25 golpistas alemães. Sim, foram presos porque planejavam a derrubada da democracia… em nome da democracia e da, pasmem, liberdade de expressão.
Igualzinho ao que que ocorre no Brasil, onde
a) proxenetas do golpismo usam a democracia para tentar derrubá-la.
b) Tascam fogo em veículos.
c) Bloqueiam estradas.
d) Acampam na frente dos quartéis.
e) Rezam, pateticamente, ao pai fálico do golpe.
f) Falam em rádios e TVs. Tem gente que mora nos EUA e discursa de lá.
g) Tem um jornalista desses golpistas — que é neto de um presidente da ditadura militar — que dia sim e o outro também prega abertamente golpe de Estado. Assim, na cara dura. Em veículo de concessão pública. Incrível. Ou crível. Assim como jornalistas e jornaleiros de rádios e TVs brasileiras. O Rio Grande do Sul é pródigo nisso.
h) Em nome da liberdade pregam o fim da liberdade! Bingo!
i) Querem um general para levar para casa. Se não tiver general, vai outro militar, mesmo. Incrível como eles gostam disso.
j) Trata-se de um problema nitidamente psiquiátrico (com seus desdobramentos). “Viva a democracia, ‘novo AI-5’ [sic] já”!
Brasília agora é o palco. Eu mesmo presenciei. Agora já invadem até churrascarias. Tudo para pedir democracia por meio do golpe… Idade mental de 7 anos. Aparato conceitual que só trabalha com paradoxos. Muitos não conjugam verbos. Esquecem o “s”. E, é claro, rezam. (Esquecem, talvez, que Deus está vendo; esqueceram a Bíblia, conforme texto que escrevi).
No fundo, o que ocorre aqui é semelhante ao que ocorreu com os — agora encarcerados — “Cidadãos do Reich”. Infelizmente, diz Martonio, a resposta da institucionalidade alemã ainda não serviu de inspiração para brasileiros. Deveria!
Ou a democracia se defende por meio de sua legalidade ou perecerá. Ninguém está acima da lei. E a democracia não é um pacto suicida. O direito não é um pacto suicida. A democracia constitucional, quando aceita que joguem no lixo a constituição, torna-se o quê? Bem, talvez se torne mesmo a “democracia do paradoxo”, que aceita o golpismo em seu nome.
Quantos neurônios são necessários para que se compreenda que as manifestações de hoje na frente dos quartéis são mais do que arruaça?
Cito de novo o texto de Martonio: “A clara intenção é de completa destruição da democracia que parte de setores da classe média, que transformou sua avareza econômica e intelectual em covarde e falsa indignação moral porque não suporta a perspectiva de ampliação de direitos para todos. Seus porta-vozes não passam de charlatões da democracia, como na Alemanha: por meio de mentiras querem mobilizar partes da sociedade para sua aventura criminosa. Não há nenhuma relação neste conjunto de atividades com democracia e pluralismo“.
Vamos estudar e apreender: o conceito é wehrhafte Demokratie, ou a democracia que deve defender a si mesma. Deve defender a si mesma por uma questão óbvia: como sobreviveria, do contrário?
Como a democracia deve se defender, a resposta alemã merece ser observada e praticada no Brasil. Antes que o golpismo tupiniquim vença a democracia. Em nome dela e sob os olhares coniventes de comandantes militares, alguns governadores, o próprio presidente derrotado, empresários que amam golpe, enfim, uma multidão de antidemocratas que se jactam da própria ignorância e obtusidade.
Ou a democracia joga pesado defendendo-se a si mesma ou o próprio enunciado pode perecer, criando um paradoxo: se em nome da democracia prego a sua extinção e sou vencedor, a própria frase fica sem sentido. O paradoxo da democracia antidemocrática.
Bem, aprendamos com o que o Brasil tem de melhor. A boa doutrina tem oferecido meios. Não precisamos buscar em Tushnet ou Levitsky ou sei lá quem. Temos autores que mostram isso. É só ler. Está aí. O texto de Martonio não precisa nem de tradutor.
E aprendamos com o que o Brasil tem de pior também. Em democracias consolidadas, golpistas são responsabilizados duramente. Porque democracias consolidadas sabem que não podem se des-consolidar. Depois não adianta falar que as instituições no Brasil não funcionam. Para funcionarem, elas têm de… funcionar. Perdoem a obviedade. Mas que a democracia precisa defender a si mesma também é uma obviedade.
Prefiro a obviedade do que a contradição em termos. A democracia precisa ser democrática. Sintomático que há quem ache ruim que se diga isso.
Vamos estudar e ler mais. Para que nem precisemos recorrer ao acertado conselho alemão. Para que a defesa da democracia não precise ser importada.
Wehrhafte demokratie: democracia bem fortificada. Que sabe se defender. Simples assim.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor em direito, autor de “Hermenêutica Jurídica E(m) Crise e Verdade e Consenso”.
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