Brumadinho e a justiça dos carrascos de Melos

Essa é uma história bem conhecida. Em 416 aC, os atenienses invadiram a ilha de Melos. Ao contrário dos habitantes das outras ilhas, aquela colônia espartana não havia se sujeitado à Liga de Delos e se rebelara contra Atenas quando a Guerra do Peloponeso começou.

Durante a invasão, representações das duas partes em conflito teriam se encontrado. Tucídides narra esse encontro em que os habitantes de Melos se recusaram a manter a neutralidade ou a se aliar aos seus inimigos, dizendo que se fossem atacados Esparta correria em seu auxílio. Em razão disso os representantes de Atenas teriam dito que:

“O justo, nas discussões entre os homens, só prevalece quando os interesses de ambos os lados são compatíveis, e que os fortes exercem o poder e os fracos se submetem.” 

A ilha de Melos foi devastada. Todos os homens em idade militar foram mortos. As crianças e mulheres de Melos foram reduzidas à condição de escravas.

Esse episódio terrível, ocorrido num passado distante, ilustra como as relações entre pessoas desiguais (fortes e fracos) podem dar origem a genocídios se não forem mediadas por uma Justiça que reequilibre as diferenças. O exercício ilimitado do poder nunca é capaz de produzir soluções justas. Abandonados à própria sorte, os fracos podem ser esmagados pelos fortes.

Os homens são todos iguais perante a Lei sem distinção de qualquer natureza (art. 5º, da CF/88), mas o poder econômico dos ricos é muito maior que o dos pobres. Os cidadãos comuns e as empresas multinacionais não podem ser tratados como se fossem iguais. Cabe ao Estado proteger os interesses daqueles que são incapazes de se defender diante do poder avassalador de agentes econômicos que tem a capacidade de financiar campanhas políticas, subornar agentes públicos e até de matar involuntariamente centenas de pessoas como se isso fosse algo banal.

A tragédia de Brumadinho ilustra a relevância e a atualidade da obra de Tucídides. O neoliberalismo está transformando os brasileiros pobres em vítimas da guerra econômica movida pelos ricos (e pelas multinacionais) com o auxílio do Estado. Se a Justiça brasileira fosse efetiva e eficaz, a hecatombe de Mariana não teria se repetido 3 anos depois em circunstâncias muito parecidas. Quantas barragens terão que estourar para que o Poder Judiciário comece a cumprir sua missão de reequilibrar as relações desiguais entre a Vale e as suas vítimas reais e em potencial?

Em Osasco SP, cidade onde resido desde meados de 1974, ocorreram duas tragédias. Em junho de 1996 um Shopping explodiu causando 23 mortes e ferindo 467 pessoas https://zonaderisco.blogspot.com/2010/06/lembranca-explosao-em-shopping-de.html. Em setembro de 1998 ocorreu a explosão do Shopping Plaza https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc06099813.htm. Esse incidente provocou 42 mortes e feriu 160 pessoas. Eu poderia ter sido uma das vítimas, pois costumava tomar café no local onde ocorreu a explosão, mas naquele dia fiquei entretido lendo a Folha de São Paulo no restaurante que frequentava há algumas quadras do Shopping. Quando fui ao local o estrago já estava feito.

O Shopping foi imediatamente reconstruído. Em pouco tempo a Universal levantou um templo ainda maior na cidade. Antes dos responsáveis serem punidos e das indenizações serem pagas o comércio da fé e de bens e serviços estava funcionando como se nada tivesse ocorrido. Em razão disso, nos dois casos a Justiça foi acusada de ser lenta e extremamente tolerante. Hoje diríamos que ela foi pró-mercado, exatamente como ocorreu no caso da tragédia de Mariana.

O brutal genocídio dos melianos não foi esquecido. Ele certamente produzia ecos na consciência de Lisandro quando ele comandou a vitória dos espartanos em 404 aC, obrigando Atenas a destruir sua frota naval e a demolir suas muralhas. Uma humilhação adicional foi imposta aos atenienses: o regime dos Trinta Tiranos escolhidos para governar a cidade derrotada.

Se uma reviravolta política ocorrer (e nós devemos lutar para que ela ocorra), o massacre de brasileiros pobres em Mariana e em Brumadinho não pode ser esquecido. Também não devemos esquecer o excesso de bondade com que o MPF e o Poder Judiciário trataram a Vale e sua diretoria após a primeira tragédia. Durante uma nova constituinte, sem a participação de procuradores, juízes e empresários, o povo deve discutir e aprovar um novo formato para o Sistema de Justiça e penas rígidas para aquele que julgam que obter lucro é mais importante do que garantir as vidas dos seus empregados e da população em geral.

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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