O STJ autoriza homem com ansiedade a cultivar cannabis sativa, por Rômulo Moreira

Quem atua no sistema jurídico precisa enxergar para além do direito.

O STJ autoriza homem com ansiedade a cultivar cannabis sativa

por Rômulo de Andrade Moreira[1]

O ministro do Superior Tribunal de Justiça, Rogerio Schietti Cruz, no julgamento do recurso em habeas corpus nº. 178057, concedeu um salvo-conduto para que um homem possa plantar pés de maconha sem que lhe seja imposto qualquer constrangimento repressivo penal.

No pedido feito ao Superior Tribunal de Justiça, a defesa alegou que o homem sofria ameaça ao seu direito de locomoção em decorrência de decisão tomada pelo Tribunal de Justiça do Paraná, solicitando, em síntese, a concessão de salvo-conduto para que pudesse plantar, cultivar, transportar e extrair artesanalmente o óleo da cannabis, a fim de viabilizar o seu tratamento médico.

A defesa afirmou que ele, desde criança, foi diagnosticado com ansiedade generalizada e sempre conviveu com graves dores de estômago e distúrbios do sono dela decorrentes. No ano de 2020, iniciou tratamento com cannabis medicinal, prescrito e acompanhado por médico.

Segundo a defesa, mesmo prescrevendo o óleo de origem caseira, seu médico também manteve a prescrição de flores de cannabis in natura e extratos de THC e estes últimos sequer estão disponíveis no mercado nacional ou internacional, e apenas podem ser obtidos através do cultivo caseiro.

Ao final, pediu que fosse determinado às autoridades que se abstivessem de proceder à sua prisão, repreendê-lo, apreender e destruir as respectivas sementes ou plantas, bem como demais insumos oriundos e conexos à sua produção, autorizando-o a plantar, cultivar, transportar e extrair artesanalmente o óleo da cannabis, remeter para análise, bem como demais atos relacionados ao seu tratamento, com o fim exclusivamente medicinal, inclusive determinando o número de plantas em estágio vegetativo e florativo que pudesse cultivar, uma vez que estavam devidamente comprovados os requisitos legais e jurisprudenciais para tanto, em especial a prescrição médica e relatório médico comprovando a melhora do seu quadro de saúde, bem como a urgência e a necessidade do tratamento em razão da inexistência de outros meios de obtenção do tratamento.

No seu pedido, a defesa esclareceu o número de plantas que pretendia cultivar, juntando, inclusive, laudo subscrito por um engenheiro agrônomo.

Já no Superior Tribunal de Justiça, o ministro Schietti – após citar algumas decisões do próprio tribunal superior reconhecendo a possibilidade de concessão de habeas corpus preventivo (salvo-conduto), a fim de obstar a repressão criminal do cultivo de cannabis sativa para fins medicinais – afirmou que o pedido estava acompanhado de prescrição médica, de uma autorização da Anvisa para importação do canabidiol (a própria agência de vigilância sanitária reconheceu a necessidade do paciente fazer uso do produto) e em laudo de engenheiro agrônomo atestando que, conforme a prescrição médica para a produção de óleo e uso vaporizado, seria necessário a produção de 96 a 57 por ciclo a cada 3 meses, totalizando de 354 a 238 plantas por ano, adicionados as 10 plantas clonais.

Assim, o ministro concluiu a sua decisão favoravelmente à defesa, concedendo um salvo-conduto para autorizar o plantio e o cultivo, para extração das propriedades medicinais voltadas ao uso terapêutico próprio, de 96 a 57 plantas por ciclo a cada 3 meses, totalizando de 354 a 238 plantas por ano, adicionados as 10 plantas clonais, proibindo qualquer medida de repressão criminal decorrente das condutas, estando, evidentemente, vedada a comercialização, doação ou transferência a terceiros da matéria-prima ou dos compostos derivados da erva, ressaltando, ainda, que o benefício não impedia o controle administrativo do processo de plantio, cultura e transporte da substância, fora dos termos especificados.

Esta decisão monocrática do ministro Schietti, datada do último dia 19 de maio, mostra, com rara sensibilidade jurídica, e sem ativismo judicial, como deve ser tratada a questão das drogas pelos nossos juízes e tribunais, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, em cuja pauta está o recurso extraordinário nº. 635659, que trata exatamente da descriminalização do porte de maconha para consumo próprio.

Aliás, este debate em relação às drogas deveria fugir do lugar-comum – criminalização versus descriminalização – e avançar, no sentido de que se discuta a própria legalização das drogas, de toda e qualquer droga, e não somente do porte e do consumo, mas da produção e do comércio.

Em primeiro lugar, é preciso atentar que a partir do instante em que a produção e o comércio de drogas passem a ser regulamentados, controlados e fiscalizados pelo estado, a tendência será a eliminação gradativa do mercado ilegal do tráfico (seja a produção, seja o comércio). Transferindo-se este rendoso mercado de bilhões de dólares para o estado e retirando-o das mãos do crime organizado, ficará este órfão, forçando-o a deixar este tipo de ilícito, extremamente violento. O estado passaria, então, a regular o mercado, controlando as vendas, a produção, a propaganda, os locais de consumo, etc.

Com a eliminação do tráfico ilícito, ainda que a médio prazo, haveria induvidosamente uma diminuição vertiginosa da prática de outros delitos conexos, pois muitos usuários ou dependentes (é preciso fazer esta distinção) furtam, roubam e até matam para conseguir a droga ilícita, vendida a preços mais caros no mercado clandestino.

Ademais, sendo enorme a procura por drogas ilícitas e o mercado sem nenhuma regulação estatal, a tendência é que o valor da droga (nem sempre de boa qualidade) seja alto, o que leva o consumidor a praticar crimes para conseguir dinheiro, a fim de sustentar o seu vício (no caso dos dependentes químicos). É possível que a regulação do comércio, além de garantir produtos sem impurezas e, portanto, menos nocivos à saúde, estabelecesse preços mais baixos para as drogas em geral. É o que ocorre, por exemplo, com o tabaco e o álcool, cujos usuários (dependentes químicos ou não) não precisam recorrer ao furto ou ao roubo para consumirem a droga lícita.

Ao assumir esta responsabilidade, o estado passaria, consequentemente, a se comprometer em prestar todos os esclarecimentos à população acerca dos efeitos do uso de drogas, como hoje é feito com as referidas drogas lícitas. Ao contrário, com a atual política proibicionista, dificulta-se enormemente que adolescentes e jovens tenham acesso a informações corretas e científicas sobre o assunto. Ignorantes, o risco para estas pessoas é muito maior. Para eles, a aflição é terrível, e o sofrimento para a família, devastador. Nesta questão, a informação séria e a boa educação são fundamentais.

O sociólogo argentino Alberto Calabrese observa que “a proibição tem apenas 55 anos e decorre de uma resolução das Nações Unidas de 1961. Ou seja, cocaína, morfina, heroína e outros tipos de substâncias psicoativas não foram proibidas desde que Adão e Eva deixaram o paraíso, ainda que possamos fazer uma comparação entre a saída do paraíso e o consumir a única coisa que não podia ser consumida. Isso demonstra que as drogas cumpriram outras funções: controle populacional e um grande negócio. Um negócio que movimenta dois bilhões de dólares por ano. Ou seja, uma estrutura difícil de desativar porque supõe e envolve muitos interesses. Formalmente, todos dizem que a questão deve ser encerrada, mas a realidade é que esta questão hoje tem tal importância na produção econômica, que favorece a muitos para que a produção permaneça em termos de negócios.”[2]

O neurocientista americano, da Universidade de Columbia, Carl Hart, crítico veemente da política antidrogas de seu país, adverte que “nossas políticas para drogas se baseiam, em grande parte, em ficção e desconhecimento. A farmacologia – ou, em outras palavras, os reais efeitos das drogas – já não desempenha papel tão relevante quando se estabelecem essas políticas.[3]

               Também não se pode negar que o proibicionismo leva à marginalização e à estigmatização do usuário ou dependente, dificultando (e até impedindo) que o sistema público de saúde chegue até ele, facilitando a proliferação de doenças, especialmente entre os usuários de drogas injetáveis. Aqui, muito mais eficaz, é uma política realmente séria de redução de danos. A propósito, “os chamados Programas de Redução de Riscos são, e têm sido, o marco das diversas abordagens e programas de atuação que nestas últimas décadas têm procurado dar uma resposta às diferentes problemáticas associadas às formas de consumo de determinadas drogas, às patologias concomitantes e às condutas de risco. A redução de danos converteu-se numa alternativa às abordagens baseadas na abstinência e focadas em um modelo punitivo, seja por meio do paternalismo médico, seja pela aplicação da lei."[4]  

É preciso também refletir exatamente a quem interessa efetivamente a proibição das drogas. O mercado de drogas ilegais envolve bilhões de dólares por ano. Será que esta política de combate às drogas não serve para que alguns países continuem a estabelecer uma relação de domínio absoluto sobre outros, especialmente aqueles ditos periféricos, produtores da droga? Com a legalização, o dinheiro que hoje vai para aqueles países consumidores (que vendem armas e tecnologia bélica e de inteligência a propósito de combater o narcotráfico) ficaria no país produtor, a partir da cobrança de impostos, por exemplo.

               A atual política criminal de drogas, liderada estrategicamente pelos Estados Unidos, comprova o seu próprio fracasso, com a superpopulação carcerária e um processo crescente de criminalização da pobreza. Este país, sem dúvidas, foi o “gerador e promotor do movimento antidrogas e do respectivo discurso, e porque se colocou sempre na vanguarda ´da luta contra os demónios do tráfico internacional de drogas.`”[5]

Um outro aspecto relevante sobre o tema é o jurídico. Definitivamente, quem consome drogas não afeta a saúde de outrem, mas a sua própria (quando afeta…). Ora, em um Estado Democrático de Direito não é possível punir uma conduta que não atinja terceiros, razão pela qual não se pune, por exemplo, a autolesão ou a tentativa de suicídio, estando tais condutas inseridas dentro da esfera de privacidade e de autonomia do sujeito, sendo, portanto, ilegítima a intervenção do direito, seja para criminalizar, seja para tornar ilegal a produção, o consumo e o comércio das drogas.   

Quem atua no sistema jurídico precisa enxergar para além do direito. A pessoa, ao longo da vida, depara-se com graves questões existenciais e adversidades próprias da existência humana, levando-a a tentar suprir a sua incapacidade de enfrentar tais questões com o uso de drogas, que é um dos meios para se chegar à “felicidade plena”. Ora, como pode o estado punir esta busca, ainda que possa ser uma procura vã e nociva, do ponto de vista individual? É preciso que se respeite a opção e as escolhas de cada um, desde que tais opções e escolhas não venham a atingir outrem.

Como escreveu Freud, “existem muitos caminhos que podem levar à felicidade, tal como é acessível ao ser humano, mas nenhum que a ela conduza seguramente.” Um deles é a droga: “Mas os métodos mais interessantes para prevenir o sofrimento são aqueles que tentam influir no próprio organismo. Pois todo sofrimento é apenas sensação, existe somente na medida em que o sentimos, e nós o sentimos em virtude de certos arranjos de nosso organismo. O método mais cru, mas também mais eficaz de exercer tal influência é o químico, a intoxicação. Não creio que alguém penetre inteiramente no seu mecanismo, mas é fato que há substâncias de fora do corpo que, uma vez presentes no sangue e nos tecidos, produzem em nós sensações imediatas de prazer, e também mudam de tal forma as condições de nossa sensibilidade, que nos sentimos incapazes de acolher impulsos desprazerosos. Os dois efeitos não só acontecem ao mesmo tempo, como parecem intimamente ligados.[6]

               Alberto Calabrese nota que em relação ao usuário das drogas, o “primeiro contato tem a ver com o prazer. Ele não consome pensando que vai consumir para que isso lhe faça mal. Ele decide consumir aquilo porque acha que vai te fazer bem ou vai te dar prazer. Que depois ele se equivoque porque tem uma relação distorcida com aquele objeto ou substância, é outra história. Mas a primeira coisa que você vai procurar é sustentar o prazer.”[7]

Por que não se proíbe o uso de bebida alcoólica ou do tabaco, drogas comprovadamente danosas para a saúde quando usadas de maneira exagerada? A propósito, e como se sabe, quando os Estados Unidos proibiram o consumo do álcool (período conhecido como o da Lei Seca), o aumento da criminalidade urbana foi assustador, especialmente com o surgimento das grandes organizações criminosas.[8]

É preciso que fiquemos atentos para os chamados “empresários da moral, uma espécie de mediador entre os sentimentos públicos e a criação da lei, e, principalmente, para os empresários da repressão, exemplificados nas forças de segurança que se ocupam de implementar a política criminal.[9]

O proibicionismo só atrai ainda mais as pessoas (principalmente as mais jovens) para o consumo que, por sua vez, sendo ilegal, leva os usuários a uma situação de marginalização e de estigmatização, inserindo-os no sistema prisional que, como é notório, longe de ressocializar, criminaliza e violenta ainda mais. É um verdadeiro círculo vicioso. A questão das drogas não pode ser resolvida pelo sistema de justiça criminal e pelas agências punitivas: polícia, Ministério Público, Poder Judiciário. Outros atores devem ser chamados: assistentes sociais, pedagogos, médicos, psicólogos, família, igrejas, escolas, etc. A legalização, enfim, teria este outro efeito positivo: a descarcerização.

Bem a propósito, a afirmação de Maria Lúcia Karam: “Talvez o caminho seja mais árduo. A fantasia é sempre mais fácil e mais cômoda. Com certeza é mais simples para os pais de um menino drogado culpar o fantasma do traficante, que supostamente induziu seu filho ao vício, do que perceber e tratar dos conflitos familiares latentes que, mais provavelmente, motivaram o vício. Como, certamente, é mais simples para a sociedade permitir a desapropriação do conflito e transferi-lo para o Estado, esperando a enganosamente salvadora intervenção do sistema penal.[10]

Para concluir, uma pergunta primeira: a proibição tem surtido algum efeito positivo, sob algum aspecto? E tem gerado efeitos negativos? Vamos, então, refletir sobre tais consequências e avaliar se não é chegada a hora de procurarmos uma política alternativa, uma terceira via, ao menos mais democrática, mais racional, mais humana e mais eficaz.

Depois, valho-me da palavra de Freud, ainda que em outro contexto: “Em nosso país existe, desde sempre, um verdadeiro furor prohibendi (mania de proibição), uma inclinação a tutelar, intervir e proibir que, como sabemos, não trouxe exatamente bons frutos. Pode-se observar isto: onde há poucas proibições, elas são cuidadosamente respeitadas; onde o indivíduo depara-se com proibições a todo momento, sente praticamente a tentação de ignorá-las. E não é preciso ser um anarquista para ver que leis e regulamentos não podem, por sua origem, ter um caráter de santidade e inviolabilidade, que muitas vezes são deficientes no conteúdo e ofensivos ao nosso sentimento de justiça, ou assim se tornam após algum tempo, e que, dada a vagareza das pessoas que dirigem a sociedade, frequentemente não há outro meio de corrigir tais leis inadequadas senão infringi-las resolutamente. Também é aconselhável, quando se quer que seja mantido o respeito às leis e regulamentos, não promulgar nenhuma cuja obediência ou inobservância seja difícil de controlar.[11]


[1] Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS. Pós-graduado pela Universidade de Salamanca.

[2] CALABRESE, Alberto. Disponível em: https://www.revistaajo.com.ar/notas/4232-el-unicornio-azul-no-nos-salvara-de-las-drogas.html. Acesso em 06 de junho de 2023.

[3] HART, Carl, Um preço muito alto, Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 310.

[4] MARKEZ, Iñaki, PÓO, Mónica e ETXEGOIEN, Rebeca, “Nuevos tiempos, nuevas políticas, nuevos modelos de intervención: disminución de riesgos”, capítulo do livro Drogas: cambios sociales y legales ante el tercer milenio, Madrid: Dykinson, 2000, p. 273.

[5] OLMO, Rosa del, “Las drogas e sus discursos”, Direito Criminal, Vol. 05, Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 121.

[6] FREUD, Sigmund, Obras Completas, Volume 18, O Mal-Estar na Civilização, Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise e Outros Textos, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, páginas 32, 33 e 42.

[7] CALABRESE, Alberto. Disponível em: https://www.revistaajo.com.ar/notas/4232-el-unicornio-azul-no-nos-salvara-de-las-drogas.html. Acesso em 06 de junho de 2023.

[8] A Lei Seca vigorou nos Estados Unidos entre os anos 1920 a 1933. Neste período, mais exatamente no ano de 1927, Sigmund Freud escreveu um texto intitulado “O Futuro de uma Ilusão”, abordando a questão religiosa. Em determinado trecho, afirmou que “o efeito das consolações religiosas pode ser igualado ao de um narcótico”, ilustrando exatamente com o que então ocorria nos Estados Unidos, a Lei Seca. Escreveu ele: “Lá se procura – sob clara influência do domínio das mulheres – privar os indivíduos de toda substância que produz embriaguez, estímulo ou prazer, e saturá-los do temor a Deus, como compensação. Não precisamos perguntar como também terminará esse experimento.” (Obras Completas, Volume 17, “Inibição, Sintoma e Angústia, o Futuro de uma Ilusão e Outros Textos, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 291).

[9] OLMO, Rosa del, “Las drogas e sus discursos”, Direito Criminal, Vol. 05, Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 121.

[10] Maria Lúcia Karam, De Crimes, Penas e Fantasias, Rio de Janeiro: LUAM, 1991, p. 67.

[11]A Questão da Análise Leiga: Diálogo com um Interlocutor Imparcial (1926)”, Obras Completas, Volume 17, São Paulo, Companhia das Letras, 2014, 1ª. edição, 1ª. reimpressão, páginas197/198.

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