O Supremo Tribunal Federal e o Julgamento de Páris, por Rodrigo Carelli

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
[email protected]

do Blog do Rodrigo Carelli

O Supremo Tribunal Federal e o Julgamento de Páris: o embate entre a Constitução, o Direito do Trabalho e a Ideologia em relação à prevalência do negociado sobre o legislado

por Rodrigo Carelli

INTRODUÇÃO

O Supremo Tribunal Federal está no centro da vida política brasileira, havendo quem chame o momento de “Supremocracia”.[1] As consequências da supremacia da cúpula do Poder Judiciário sobre os demais poderes tem sido preocupação constante de estudiosos da Ciência Política, pelos possíveis efeitos perniciosos à vida democrática.[2]

Pretende-se no presente texto demonstrar que o Supremo Tribunal Federal está imbuído na missão de realizar reforma trabalhista pela via judicial, na qual os princípios constitucionais estão sendo deixados de lado, tendo por norte valor metajurídico: a ideologia da flexibilização, baseada em visão unifocal do princípio da livre iniciativa, sob o mantra da “flexibilização das relações de trabalho”, sem realizar o devido diálogo com a doutrina de Direito do Trabalho, e com todos os demais princípios constitucionais condicionantes da livre iniciativa. Também se pretende demonstrar que para a realização da reforma pretendida, a Corte Suprema tem renegado seus próprios precedentes sobre a questão.

Para demonstrar as hipóteses lançadas, passemos à análise de três julgados recentes, observando os argumentos utilizados para identificar os princípios constitucionais ou extrajurídicos utilizados e inter-relacionando os casos.

 

2 – O ATUAL CONTEXTO – O DEBATE ACERCA DA REFORMA TRABALHISTA

Logo após assumir a interinidade da presidência da República, em decorrência do processo de Impeachment da presidenta eleita, o governo de Michel Temer já anunciava a realização de reforma trabalhista, indicando como peça central a prevalência do “acordado sobre o legislado”.[3]

As notícias começaram a se avolumar no mesmo sentido, a fim de “prestigiar convenções coletivas”.[4] Foi divulgada a informação de que o governo pretenderia que “tudo o que estiver na CLT poderá ser alvo de negociação. (…) Outros casos que poderiam ser acordados dizem respeito a situações em que o funcionário fica à disposição do patrão, fora do expediente sem ser acionado e o tempo gasto em deslocamentos quando a empresa busca os trabalhadores – considerados hoje como hora extra.”[5]

O governo, então, passou a anunciar que pretenderia fazer a reforma trabalhista baseada no seguinte “tripé”: terceirização, flexibilização da jornada e prevalência de acordos coletivos sobre a legislação.[6]

Mesmo na época da interinidade, a terceirização já estava no centro da reforma pretendida, tendo o Ministro da Casa Civil dito que “o país precisa caminhar no rumo da terceirização”, e que o projeto de lei que retira limites da terceirização, que se encontra atualmente em discussão no Senado Federal, “deve ser votado com alguma rapidez”.[7]

Já consumada a deposição da presidenta eleita, o governo Michel Temer, por meio de seu Ministro do Trabalho, deu declarações atabalhoadas no sentido de que poderiam ser aceitas jornadas de trabalho de até 12 (doze) horas por dia.[8] A repercussão extremamente negativa da proposta fez com que o próprio presidente telefonasse, “muito irritado”, para o Ministro do Trabalho para que este se retratasse: “O presidente me ligou, me orientou a reafirmar que o governo não vai elevar a jornada de 8 horas nem tirar direitos dos trabalhadores”.[9] O governo lançou até vídeo nas redes sociais para “esclarecer fala de ministro”, afirmando que a retirada de direitos trabalhistas são somente “boatos”.[10]

O presidente Michel Temer veio pessoalmente afirmar que “é muito desagradável imaginar que um governo seja tão estupidificado, tão idiota, que chega ao poder para restringir o direito de trabalhadores.”[11]

As Centrais Sindicais, em uníssono, repudiaram as propostas do governo, planejando inclusive atos nacionais e paralisação em protesto contra a reforma trabalhista.[12]

Assim, em resumo, o contexto é de início de debate da plataforma política do novo governo que, por não ter sido democraticamente aprovada, ainda está em plena discussão na sociedade brasileira.

 

 

2 – APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS CASOS

 

2.1 – O CASO DA QUITAÇÃO AMPLA EM PLANO DE DISPENSA INCENTIVADA ESTABELECIDA POR ACORDO COLETIVO DE TRABALHO

O Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 590.415, pelo seu plenário, decidiu pela validade de quitação ampla concedida por trabalhadores a partir de plano de dispensa incentivada estabelecida por acordo coletivo de trabalho. No caso, conforme a ementa do julgado, não haveria a limitação do art. 477, § 2º, da CLT, que restringe a quitação quanto às parcelas e valores pagos, porque houve condições econômicas mais vantajosas concedidas aos trabalhadores por meio da negociação coletiva.

Chegou-se a ser salientado no relatório do acórdão que a indenização do autor da ação que gerou o precedente foi de 78 vezes o valor de sua maior remuneração mensal. O voto afirma que as convenções e acordos coletivos de trabalho são a consagração da autonomia coletiva da vontade, a qual equiparam os sindicatos às empresas, não havendo a disparidade presente nas relações individuais do trabalho:

“No âmbito do direito coletivo do trabalho não se verifica a mesma situação de assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Como consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual.”

O voto traz como princípios da negociação coletiva a lealdade e também o princípio da adequação setorial negociada, em que podem ser transacionadas setorialmente parcelas justrabalhistas que não sejam de indisponibilidade absoluta, como “a anotação da CTPS, o pagamento do salário mínimo, o repouso semanal remunerado, as normas de saúde e segurança do trabalho, dispositivos antidiscriminatórios, a liberdade de trabalho etc.”[13].

Entendeu o acórdão que realmente não vigora no Brasil a liberdade sindical plena, mas que, no caso em concreto, os trabalhadores participaram efetivamente das negociações.

Ao final, o Supremo Tribunal Federal decidiu a seguinte tese, com repercussão geral: “A transação extrajudicial que importa rescisão do contrato de trabalho, em razão de adesão voluntária do empregado a plano de dispensa incentivada, enseja quitação ampla e irrestrita de todas as parcelas objeto do contrato de emprego, caso essa condição tenha constado expressamente do acordo coletivo que aprovou o plano, bem como dos demais instrumentos celebrados com o empregado”.

Interessante também ressaltar que em decisão de Embargos de Declaração dessa decisão, o Ministro relator, Luís Roberto Barroso, afirmou que “um acordo em demissão coletiva firmado por sindicatos, que inclusive relutaram. Os sindicatos firmaram o acordo, porque pressionados pelos trabalhadores. (…) Em assembleia; quer dizer, era um caso inequívoco de manifestação de vontade.”[14] Assim, fica claro que foi decidida tese com repercussão geral baseada em características bastante específicas do caso concreto. A pergunta que resta: como dar repercussão geral a um caso que continha tão específica situação, como admite o relator? Qual a razão da especificidade do caso, que era, nas palavras do relator, essencial para a controvérsia, não constou do enunciado da repercussão geral?

 

2.2 – O CASO DAS HORAS IN ITINERE

Tomando como precedente a tese acolhida com repercussão geral, o Ministro Teori Zavascki, em decisão monocrática no Recurso Extraordinário 895.759, decidiu ampliar o alcance da decisão anterior, afirmando que poderia haver a supressão de horas in itinere por negociação coletiva caso fosse compensada a perda com outras vantagens concedidas no acordo. Assim, afastou monocraticamente julgado do Tribunal Superior do Trabalho que reconhecia a autonomia coletiva, mas que resguardava “os preceitos legais de caráter cogente”, alegando ofensa a ratio da repercussão geral do Recurso Extraordinário nº 590.415. Ao final determinou que fosse oficiada à “Vice-Presidência do Tribunal Superior do Trabalho, encaminhando-lhe cópia desta decisão para as devidas providências, tendo em conta a indicação do presente apelo como representativo de controvérsia”.

Esta decisão afastou-se das premissas dadas no acórdão com repercussão geral: não se tratava de plano de dispensa incentivada, não houve prova de participação efetiva dos interessados e houve lesão a norma cogente ou de ordem pública. Note-se que o cerne da decisão do RE 590.415 foi o plano de dispensa incentivada, e a decisão pela legalidade de suas disposições foi a existência da negociação coletiva, tendo sido tal fato expresso na tese aprovada com repercussão geral.

O governo comemorou a decisão, afirmando que “decisões judiciais recentes que permitem flexibilizar leis trabalhistas a partir de acordos coletivos abrem espaço para mudanças definitivas na legislação e devem “encorajar” o governo e o Congresso a levar adiante propostas nesse sentido”.[15]

Não houve no acórdão do Ministro Teori Zavascki nenhuma das preocupações lançadas no precedente do plano de demissão voluntária, como a ausência de liberdade sindical no Brasil e o princípio da adequação setorial negociada. Seu argumento básico é “Ainda que o acordo coletivo de trabalho tenha afastado direito assegurado aos trabalhadores pela CLT, concedeu-lhe outras vantagens com vistas a compensar essa supressão.”[16]

 

2.3 – O CASO DA JORNADA DE 12 HORAS DE TRABALHO POR 36 DE DESCANSO

Na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.842, proposta pelo Procurador-Geral da República, questionava-se a constitucionalidade de dispositivo da Lei nº 11.901/2009 que previa a jornada de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso para os bombeiros civis. O argumento da ação pela inconstitucionalidade seria a violação do direito fundamental à saúde e à redução dos riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, inciso XXII, Constituição da República), tendo em vista que o elastecimento da jornada aumenta a incidência de acidentes do trabalho, bem como que a compensação de jornada deve ser prevista em acordo ou convenção coletiva de trabalho, conforme prevê a Constituição da República no art. 7º, inciso XIII.

O ministro Edson Fachin observou que a norma estabelece regime de trabalho compatível com as atividades desempenhadas pelos bombeiros civis, também chamados de brigadistas, pois garante a eles um período de descanso superior ao habitual em razão de sua jornada de trabalho de 12 horas. O ministro afirmou que a jornada prevista na lei está respaldada na Constituição Federal (artigo 7º, inciso XIII) pela possibilidade de compensação de horas trabalhadas mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.”[17] Aduz ainda que não há prejuízo à saúde, por falta de estudos científicos e que a jornada de 12 horas não é prejudicial pois seguida de 36 horas de descanso.

O relator afirma em seu voto que: “embora não haja a previsão de reserva legal expressa na Constituição, a previsão de negociação coletiva permite inferir que a exceção estabelecida para os bombeiros civis garante, em proporção razoável, descanso de 36 horas para cada 12 horas trabalhadas, além de assegurar a jornada máxima de 36 horas semanais.”

Cita como precedente o Recurso Extraordinário n. 425975, de relatoria do Ministro Carlos Velloso.

Aqui chegamos a um ponto quase inacreditável: o acórdão citado como precedente julga no sentido totalmente contrário à tese do voto do Ministro Facchin. De fato, a ementa do RE 425975 assim está redigida: “A majoração da jornada de trabalho semanal para além do limite previsto no art. 7º, XIII, somente pode ocorrer em situações excepcionais.”

Tratava-se de Recurso Extraordinário interposto pelo Estado de Pernambuco para tentar reverter decisão do Tribunal de Justiça que tinha julgado a inconstitucionalidade de portaria que preveria a escala de 24 horas por 72 horas de descanso, supostamente lastreada por lei estadual. O acórdão estadual havia declarado a inconstitucionalidade da lei que previa a duração semanal de 48 horas, bem como anulou a portaria, afirmando que a Constituição facultava a compensação de jornada caso houvesse convenção ou acordo coletivo de trabalho, o que não existia no caso. O Ministro Carlos Velloso manteve a decisão ˜por seus próprios fundamentos.[18] Ou seja, a decisão acabou por afirmar que não poderia lei ou portaria fazer a compensação dos limites constitucionais, somente podendo isso ocorrer, em casos excepcionais, por negociação coletiva.

Em seu voto, Fachin ressalta que o Sindicato dos Bombeiros Civis no Distrito Federal é a favor da jornada disposta na lei. Interessante, no entanto, que o Ministério Público Federal, na sustentação oral da causa ora em comento, demonstrou que outros sindicatos eram contrários ao regime de trabalho legal.[19]

Relevante se mostrou a discussão do voto. Após manifestação do Ministro Luís Roberto Barroso no sentido de que deveria ser deixado claro na decisão que poderiam ser estipulados outras jornadas, seja por acordo individual ou negociação coletiva, para a defesa da liberdade de contratar, livre iniciativa e também autonomia negocial coletiva, seguiu-se ampla discussão, em que a única divergência parecia ser a necessidade ou não de se declarar na decisão da ADI n. 4.842 que a negociação coletiva poderia estipular jornada diversa da legal, estando todos consentes de que poderia. A Ministra Rosa Weber foi a única que divergiu, dizendo que, conforme o texto constitucional, somente convenção ou acordo coletivo poderia estipular compensação, e não a lei. O Ministro Marco Aurélio afirmou que não poderia ser por acordo individual, mas que por negociação coletiva poder-se-ia dispor de maneira diversa ao emanado pela lei. Por fim, foi declarada de forma simples a constitucionalidade da lei dos bombeiros civis, ficando vencidos os Ministros Luís Roberto Barroso, Marco Aurélio e Rosa Weber, por motivos diversos entre eles.

Por outro lado, da discussão sobressaíram-se duas falas importantes para a análise da posição que vem assumindo o Supremo Tribunal Federal. Em determinado momento o Ministro Luís Roberto Barroso afirma: “toda a tendência do direito do trabalho contemporâneo é no sentido da flexibilização das relações e da coletivização das discussões, no que foi complementado pelo Ministro Marco Aurélio: “mais dia ou menos dia vamos ter que partir para essa reforma.”

 

3 – A GUINADA NA JURISPRUDÊNCIA

Como já vimos no caso da jornada de doze horas por trinta e seis de descanso, está havendo guinada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que vem ignorando todos os precedentes da Corte sobre a questão.

O tribunal, até bem pouco tempo atrás, tinha o seguinte entendimento, conforme o julgado a seguir:

“Estabilidade provisória da empregada gestante (ADCT, art. 10, II, b): inconstitucionalidade de cláusula de convenção coletiva do trabalho que impõe como requisito para o gozo do benefício a comunicação da gravidez ao empregador. 1. O art. 10 do ADCT foi editado para suprir a ausência temporária de regulamentação da matéria por lei. Se carecesse ele mesmo de complementação, só a lei a poderia dar: não a convenção coletiva, à falta de disposição constitucional que o admitisse. 2. Aos acordos e convenções coletivos de trabalho, assim como às sentenças normativas, não é lícito estabelecer limitações a direito constitucional dos trabalhadores, que nem à lei se permite.” (RE 234186 / SP, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, Publicado em 31/08/2001)

No voto desse julgado, o Ministro Sepúlveda Pertence afirma de maneira clara:

“De qualquer sorte, jamais o poderia fazer a transação de natureza coletiva, à falta de disposição constitucional que o admitisse. Trata-se de direito irrenunciável da empregada, que não pode ser afastado ou neutralizado por simples convenção. Aos acordos e convenções coletivos de trabalho, assim como às sentenças normativas, não é lícito estabelecer limitações a direito constitucional dos trabalhadores, o que nem à lei é permitido. As cláusulas deles resultantes têm seu âmbito circunscrito às categorias profissionais envolvidas, cujos integrantes não podem ter reduzidos ou eliminados os direitos constitucionais, assegurados a todos os brasileiros em igual situação.”

Entretanto, a guinada da jurisprudência vem de forma pouco ortodoxa, pois não estão claros os princípios constitucionais que lastreariam a alteração de posicionamento.

Enquanto que no caso paradigma do plano de dispensa incentivada, o princípio seria o da autonomia privada coletiva expressamente demonstrada, tendo em vista a falta de liberdade sindical existente no Brasil, no caso das horas in itinerepartiu-se diretamente para a sobreposição do negociado coletivamente em relação a normas cogentes ou de ordem pública, não levando em consideração a problemática levantada no caso paradigma, submetendo sua validade somente a troca desses direitos por outras vantagens. No terceiro caso avaliado, no entanto, verifica-se que o princípio da primazia da autonomia coletiva cede espaço em relação à lei, mesmo contrariamente ao disposto à Constituição. Se é certo que pelo dispositivo expresso do inciso XIII do art. 7º constitucional a negociação coletiva pode realizar a compensação da jornada nos limites estipulados pela lei maior, ela não permite que o faça por meio de lei.

Assim, parece que o mandamento metajurídico da flexibilização prevaleceu sobre a negociação coletiva, pois apesar da Constituição expressamente vincular a compensação da jornada à necessidade de convenção ou acordo coletivo de trabalho, o Supremo Tribunal Federal, alterando sua jurisprudência, decide que a lei pode fazê-lo. Caso o objetivo maior fosse a valorização da negociação coletiva, tendo em vista as diferentes visões sindicais a respeito do dispositivo legal, teria o Supremo Tribunal Federal deixado a solução, como prevê a Constituição, para convenções e acordos coletivos, na abrangência de cada sindicato.

 

4 – O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A REFORMA LABORAL BRASILEIRA

O Supremo Tribunal Federal vem, de maneira cada vez mais clara, tentando implementar política em relação às questões trabalhistas, em aberto ativismo judicial.

Não se mostra coincidência que a pauta escolhida pela nova Presidenta do Supremo Tribunal Federal, a Ministra Carmen Lúcia, para inaugurar sua gestão à frente da Corte Suprema escolheu diversos temas trabalhistas, tendo sido chamada de “pauta trabalhista”.[20]

De fato, todos os itens abordados pelo novo Governo Federal estão recebendo especial atenção da Corte Suprema brasileira, que desenha realizar a reforma em arrepio – e diríamos mais, em verdadeiro atropelo – do debate democrático. Se tomarmos o cerne das reformas anunciadas pós-Impeachment, todos os pontos estão bem encaminhados no Supremo Tribunal Federal.

Conforme vimos, a questão da prevalência do negociado sobre o legislado vem se construindo de forma rápida na Corte. Até a questão da legalidade de jornada de 12 horas foi liberada pelo Supremo Tribunal Federal, no terceiro caso estudado, na mesma semana que houve a reação à proposta governamental.

O fim dos limites à terceirização está encaminhado, tendo sido liberado para julgamento pelo Relator Luiz Fux.[21]

Assim, os fatos levam a crer no protagonismo deliberado do Supremo Tribunal Federal na reforma trabalhista neoliberal.

 

5 – CONCLUSÃO

De toda a análise, podem-se tomar as seguintes conclusões:

a) o Supremo Tribunal Federal assumiu papel de liderança na reforma trabalhista pretendida pelo governo Temer, em claro e aberto ativismo judicial, como demonstram a impecável coincidência entre a pauta governamental e a de julgamentos da Corte Suprema e o diálogo entre os Ministros Luís Roberto Barroso e Marco Aurélio Mello no julgamento da ADI 842: “toda a tendência do direito do trabalho contemporâneo é no sentido da flexibilização das relações e da coletivização das discussões; ˜mais dia ou menos dia vamos ter que partir para essa reforma.”;

b) as últimas decisões representam uma guinada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sendo às vezes simplesmente olvidados os precedentes da corte acerca da matéria, bem como realizadas releituras que se afastam completamente do teor original;

c) parece certo que o Supremo Tribunal Federal já definiu pela prevalência da negociação coletiva em detrimento da lei trabalhista;

d) Entretanto, os contornos da prevalência do negociado sobre o legislado não parecem estar ainda definidos. Se no caso da dispensa incentivada houve a problematização da falta de liberdade sindical no ordenamento jurídico brasileiro, porém no caso das horas in itinere admitiu-se expressamente a derrogação de norma de proteção, justificada pela negociação sobre outras parcelas, sem se verificar, no entanto, qualquer paridade entre o que foi concedido e o que foi adquirido na troca. Na discussão do caso da jornada de doze horas por trinta e seis de descanso, no entanto, apareceram várias linhas de pensamento, desde a que a negociação coletiva não poderia ultrapassar os limites impostos pela lei, salvo previsto na Constituição Federal, que parece ser a posição do Ministro Marco Aurélio, até o extremo, trazido pelo Ministro Luís Roberto Barroso, que é a possibilidade de derrogação da lei, em alguns casos, mesmo por acordo individual, devido à livre iniciativa e liberdade do empregador de contratar.

e) a última conclusão é que a ideologia da flexibilização está a nortear as decisões do Supremo Tribunal Federal, que se dão em caráter eminentemente político, afastando-se sobremaneira do campo jurídico e da Constituição da República. Assemelha-se aqui ao mito do julgamento de Páris, no qual este, um mortal de Troia, foi incumbido por Zeus – que não quis tomar nenhum partido – a escolher a mais bela entre três deusas – Hera, Atena e Afrodite -, sendo que a vencedora ficaria com a maçã de ouro oferecida por Éris, a deusa da discórdia. As deusas passaram a tentar seduzir Páris para ser a escolhida e ganhar a maçã de ouro: Hera prometeu tornar Páris o rei da Europa e da Ásia; Atena lhe ofereceu sabedoria e a arte da guerra; Afrodite ofereceu a Páris a mulher mais bonita do mundo, Helena. Páris escolheu a oferta de Afrodite, que levou a maçã de ouro, e Páris seguiu para Troia com Helena. O problema é que Helena era casada com o rei Menelau, de Esparta. A fim de buscar Helena, empreendeu-se a grande Guerra de Troia. O mito nos ensina a relacionar as consequências com nossas escolhas. Ao escolher a beleza – a ideologia -, e desprezando a ordem civil e a sabedoria, representadas pelas outras deusas, o Supremo Tribunal Federal acaba por causar imenso desequilíbrio nas relações de Trabalho. Helena – ou as relações de trabalho -, é esposa das forças sociais, e o seu rapto poderá favorecer o desequilíbrio da sociedade. Guerras podem vir, não no sentido histórico-mitológico, mas sob a forma de graves distúrbios que não deveriam ser encorajados – muito menos criados – pela Corte Suprema.

Rodrigo Carelli – Professor de Direito do Trabalho na Faculdade Nacional de Direito – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Procurador do Trabalho no Rio de Janeiro

Publicado originalmente em CARELLI, Rodrigo de Lacerda. O Supremo Tribunal Federal e o julgamento de Páris : o embate entre a Constituição, o direito do trabalho e a ideologia em relação à prevalência do negociado sobre o legislado. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, SP, v. 82, n. 4, p. 302-312, out./dez. 2016.

 

Ilustração: FRANÇOIS XAVIER FABRE, Julgamento de Páris.

[1] VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. In: Revista Direito GV, São Paulo, p. 441-464, jul-dez. 2008.

[2] GARAPON Antoine. Le gardien des promesses. Justice et démocratie. Paris: éd. Odile Jacob, 1996; WERNECK VIANNA, Luiz. A judicialização da política no Brasil. In: WERNECK VIANNA, Luiz et alii. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999, p. 47–70; WERNECK VIANNA, Luiz. A judicialização das relações sociais. In WERNECK VIANNA, Luiz et alii. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999, p. 149–156; HIRSCHAL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2004.

[3] http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/06/1778635-temer-quer-lancar-medidas-de-curto-prazo-na-economia-diz-padilha.shtml, acesso em 16/09/2016.

[4]http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/07/ate-o-fim-do-ano-governo-vai-enviar-proposta-trabalhista-e-de-terceirizacao.html.

[5] http://oglobo.globo.com/economia/proposta-de-reforma-trabalhista-preve-negociacao-ate-de-ferias-13-salario-19864000, acesso em 16/09/2016.

[6] http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,reforma-trabalhista-proposta-por-temer-quer-alterar-clt-e-ampliar-terceirizacao,10000074765, acesso em 16/09/2016.

[7] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/06/1782556-governo-temer-quer-acelerar-terceirizacao-de-legislacao-trabalhista.shtml, acesso em 16/09/2016.

[8] http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,reforma-trabalhista-preve-contrato-por-produtividade-e-jornada-de-ate-12-horas-por-dia,10000074826, acesso em 16/09/2016.

[9] http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,planalto-ficou-irritado-com-declaracoes-de-ministro-sobre-reforma-trabalhista,10000074910, acesso em 16/09/2016.

[10] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/09/1811894-ministerio-do-trabalho-faz-acao-em-redes-sociais-para-esclarecer-fala-de-ministro.shtml, acesso em 16/09/2016.

[11] http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/09/temer-nega-boatos-de-que-va-destruir-saude-e-direitos-trabalhistas.html, acesso em 16/09/2016.

[12] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/09/1811978-centrais-sindicais-criticam-reforma-trabalhista-e-planejam-protesto.shtml, acesso em 16/09/2016.

[13] Recurso Extraordinário nº 590415/SC, fls. 16-17.

[14] http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2629027

[15] http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-09/para-ministro-decisoes-do-stf-fortalecem-defesa-do-acordado-sobre-o-legislado, acesso em 19/09/2016. Afirmou o Ministro da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, Marcos Pereira: “Quero crer que essas decisões judiciais, tanto do Superior Tribunal do Trabalho [TST] quanto do Supremo Tribunal Federal [STF], deverão servir para fortalecer o nosso debate de defender que se aprove a prevalência do acordado sobre o legislado”. “Estou trabalhando para que a gente pegue essas decisões e avance, se encoraje. Se a Justiça do Trabalho e a Suprema Corte do país já estão reconhecendo, por que não avançarmos também no âmbito do Legislativo?”

[16] RE 895759/PE. As vantagens listadas no acórdão em troca da supressão das horas in itinere foram: “tais como ‘fornecimento de cesta básica durante a entressafra; seguro de vida e acidentes além do obrigatório e sem custo para o empregado; pagamento do abono anual aos trabalhadores com ganho mensal superior a dois salários-mínimos; pagamento do salário-família além do limite legal; fornecimento de repositor energético; adoção de tabela progressiva de produção além da prevista na Convenção Coletiva”.

[17] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=325336.

[18] http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=342523.

[19] https://www.youtube.com/watch?v=lobW8tTUgVk.

[20] http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-09/pauta-trabalhista-marcara-primeira-sessao-de-carmen-lucia-na-presidencia-do, acesso em 19/09/2016.

[21] Sobre o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal, em especial em relação à questão da terceirização, vide o nosso artigo “O Ativismo Judicial do Supremo Tribunal Federal e o debate sobre a terceirização”, in Revista do Tribunal Superior do Trabalho, Brasília, vol. 80, nº 3, jul/set 2014.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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