PL dos Apps transforma trabalhadores em nem-nem: nem empregados e nem autônomos

Camila Bezerra
Jornalista

Plataformas detém os poderes típicos de empregador, enquanto a renda dos trabalhadores deve ter queda vertiginosa

Crédito: Antonio Cruz/ Agência Brasil

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enviou, na última segunda-feira (4), um projeto de lei (PL) para regulamentar o trabalho de motoristas de aplicativo, ocupação que somava, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 1,5 milhão de trabalhadores em 2022. 

Por isso, o programa TVGGN Justiça recebeu, na última sexta-feira (8), o procurador do Trabalho Rodrigo Carelli e a professora de Direito do Trabalho na PUC/MG Ana Carolina Paes Leme para analisar a proposta. 

Porém, em vez de ser um marco para garantir avanços e proteção social ao equivalente a 1,7% da população ocupada no setor privado, o PL em regime de urgência representa uma série de retrocessos para a categoria, transformando o Brasil, inclusive, em “um laboratório do mundo em direito ultraliberal do trabalho”, nas palavras de Carelli.

É um projeto nem-nem: trata o trabalhador como nem empregado, porque ele não tem direito nenhum e não é reconhecida essa condição jurídica, e nem autônomo, porque a lei proíbe qualquer tipo de autonomia“, comenta o procurador e professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Entenda o PL

Ana Carolina Paes Leme analisa que, atualmente, tanto pesquisadores quanto trabalhadores reconhecem o vínculo empregatício entre plataformas e motoristas, uma vez que os trabalhadores são subordinados aos aplicativos, podem ser bloqueados na plataforma, não têm autonomia para definir preços ou regras sobre a organização de trabalho. 

A partir deste entendimento, os motoristas não são verdadeiramente autônomos. “Mas no projeto de lei está escrito que são trabalhadores autônomos e que a empresa iria apenas intermediar. Além disso, o projeto diz que essa autonomia é porque eles não vão precisar trabalhar para uma plataforma só “, observa a docente. 

A definição sobre autonomia prevista no PL, porém, é dúbia, já que mistura conceitos. Em diversas categorias profissionais, como professores e enfermeiros, o trabalhador atuar em mais de uma empresa é uma realidade permitida pela CLT.  

Chama a atenção dos pesquisadores ainda a determinação de que os motoristas podem cumprir jornadas de até 12h por dia, em conflito à constituição de 1934, que estabelecia em oito horas o limite de horas trabalhadas.

O trunfo dos trabalhadores seria, então o poder de negociar e formalizar acordos coletivamente, mas a possibilidade de excluir motoristas das plataformas de forma unilateral e a responsabilidade sobre os recursos também ficaram a cargo dos aplicativos.  

De acordo com o projeto apresentado pelo governo, a contrapartida das plataformas de tecnologia seria o pagamento da previdência privada, benefício que já é uma obrigação de todo trabalhador remunerado. 

“Não tem direito aqui. A contrapartida da empresa nunca foi direito, é uma obrigação. Direito seria férias, 13º [salário], FGTS, aviso prévio, proteção contra despedida arbitrária, horas extras a partir da 8ª hora”, continua a professora da PUC. 

Por fim, o que a categoria reivindicava era o poder de precificar o próprio trabalho, colocando-os de fato na condição de autônomos. “Mas, como eles colocam aqui o valor da precificação horário de R$ 32,10, sendo contabilizado somente o período entre a aceitação da viagem pelo trabalhador e a chegada do usuário ao destino, então quer dizer que eles não têm as 12 horas remuneradas”, conclui Leme.

Retrocesso

Rodrigo Carelli chamou atenção para o comentário feito por Lula de que “o trabalhador não quer mais a CLT”. Em vez de representar os anseios dos motoristas, esta colocação está mais em consonância com as ações do Supremo Tribunal Federal (STF), “que está fazendo uma reforma trabalhista mais radical do mundo de todos os tempos para as empresas”.

O procurador explica que o Supremo possibilita que o vínculo de emprego seja facultativo na medida em que propõe que o contrato escrito valha sobre a realidade. 

“A pessoa assinou um contrato que diz que ele não era empregado, que ele era uma pessoa jurídica contratante, que ele era um parceiro, que ele era um amigo de longa data, vale sobre a realidade. Só falta uma coisa para isso se tornar realidade no Brasil, que é ter uma decisão com efeito vinculante. O que vai acontecer é que todas as empresas estão blindadas para realizar qualquer tipo de contrato e continuar nas mesmas condições de subordinação com os empregados”, resume Rodrigo Carelli.

Neste sentido, o PL dos Apps é idêntico ao entendimento do STF, pois primeiro determina que o trabalhador é autônomo, mas concede todos os poderes típicos do empregador (organizador, fiscalizatório e punitivo) às plataformas. 

Inspirado na Prop 22, da Califórnia, nos Estados Unidos, a regulamentação apresentada pelo Planalto poderia ser melhor e garantir direitos para os motoristas de aplicativos. Lá, a lei garante auxílio saúde e auxílio acidente para os motoristas seja pago pelas empresas de tecnologia. Os trabalhadores também não são punidos por recusar corridas. Vale destacar que este projeto foi escrito e financiado pelas plataformas digitais, que investiram mais de R$ 1 bilhão.

“Nós temos uma cópia desidratada e com menos direitos do que já foi o sonho escrito e financiado pelas plataformas digitais”, acrescenta Carelli.

Grupo de Trabalho

O procurador comenta ainda que a criação de um grupo de trabalho (GT) para discutir a relação entre trabalhadores e plataformas foi um erro absurdo do Planalto, tendo em vista que possibilitou uma discussão fora da reforma trabalhista, que já determina que contratos intermitentes dão ao trabalhador o direito de atuar sob demanda, escolher trabalho e ser remunerado pelo período em que trabalhar. 

“O que aconteceu é que ninguém se entendia no GT e as plataformas nadaram de braçada. Nisso, o próprio GT foi dividido em dois: motoristas e entregadores. Simplesmente o GT acabou de nada e houve conversas paralelas do governo, que chamava somente quem ele entendia como interlocutor”, ressalta o docente. 

Como consequência, o PL deve colaborar com a “construção de uma situação em que o trabalhador vai ser massacrado” e que a renda dos motoristas deve apresentar queda vertiginosa em relação ao Produto Interno Bruto (PIB). 

Segundo os cálculos de Rodrigo Carelli, o motorista terá de estar em chamada 80% do tempo para cumprir uma jornada de 44 horas semanais e garantir um salário mínimo. O professor em Direito do Trabalho ressalta ainda que outro ponto fraco do PL dos Apps é a falta de regulamentação do algoritmo, cuja tendência é garantir que a remuneração do trabalhador gire em torno do mínimo. 

Acompanhe a discussão na íntegra:

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3 Comentários

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  1. Lula cometeu dois erros imoerdoaveis. O primeiro foi nomear ministros do STF sem exigir deles compromisso com a preservação da CLT e da estrutura de relações do trabalho prescrita na CF/88. A segunda foi deixar as Big Techs livres para impor sua agenda. Elas faturam muito dinheiro, violam a privacidade dos usuários, exploram e comerciam dados sem pagar nada a ninguém, interferem no processo político ajudando fanáticos a criar e impulsionar bolhas de ódio, transformam os empregados em apêndices biológicos mal remunerados de seus algoritmos e quase não pagam impostos. Na prática elas já governam o Brasil e eu já estou começando a me perguntar: Do que adiantou eleger Lula para ele ser um continuador da agenda neoliberal iniciada por Michel Temer?

    1. Pois é.Se era para manter a lógica neoliberal da coisa, mais valia – ops, sem trocadilho – o governo lançar e promover um aplicativo concorrente ao Uber, mais favorável aos motoristas e entregadores. Sobretudo considerando o tamanho desse segmento que já supera os US$ 5 bi/ano.

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