Reflexões sobre um Projeto de Lei problemático, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Quando não realiza sua tarefa a contento, o Poder Legislativo obriga o Judiciário a resolver problemas que eram previsíveis antes mesmo da aprovação e promulgação da Lei.

Reflexões sobre um Projeto de Lei problemático

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Em geral os comentários acerca da aprovação do Projeto de Lei que reprime o abuso de autoridade (informalmente batizado de Lei Cancellier) tem sido bastante positivos [aqui] e [aqui]. O texto do PL 7.596/2017 está disponível na Internet [aqui]. Não falarei aqui das suas virtudes, mas dos problemas jurídicos e judiciários que referido PL pode criar.

O § 2º, do art. 1º, da Lei Cancellier prescreve que “A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura, por si só, abuso de autoridade.” O que caracteriza uma divergência interpretativa? O texto não especifica critérios objetivos para responder essa questão. Portanto, sempre que for acusado de cometer um dos crimes descritos na Lei o suspeito poderá alegar que a interpretação que ele fez da legislação diverge daquela que foi feita pelos seus acusadores. Isso bastaria para isentá-lo de culpa? Não necessariamente. Mas é evidente que tudo dependerá de como o Judiciário interpretará a norma legal.

O § 2º do art. 3º, do PL 7.596/2017 também tem uma redação problemática: “A ação privada subsidiária será exercida no prazo de 6 (seis) meses, contado da data em que se esgotar o prazo para oferecimento da denúncia.” A admissibilidade da ação privada subsidiária depende da oferta ou não da denúncia no prazo legal. Esse prazo pode ser indefinidamente prorrogado, pois o promotor estadual e/ou procurador do MPF não pode ser constrangido a denunciar ou não o suspeito enquanto não estiver convencido.

Quem realizará a investigação preliminar? O próprio promotor e/ou procurador que foi comunicado do abuso de poder ou a autoridade policial? O prazo para a conclusão dessa investigação não se confunde com aquele que é estabelecido para a oferta da denúncia. Portanto, na prática a ação penal pública pode prescrever antes da vítima ter oportunidade ajuizar a ação privada subsidiária. Se ela se antecipar à oferta da denúncia alegando que o crime prescreverá por causa da demora o Judiciário será obrigado a interpretar a Lei. Isso não poderá ser feito sem o respeito aos princípios constitucionais que outorgam garantias ao Ministério Público.

O parágrafo único do art. 6º do PL 7.596/2017 tem a seguinte redação “As notícias de crimes previstos nesta Lei que descreverem falta funcional serão informadas à autoridade competente com vistas à apuração.” O efeito da condenação pode ser a perda da função pública (art. 4º, III, do PL). Qual a utilidade de iniciar um processo administrativo nesse caso? Nenhuma. Todavia, a aplicação dessa norma sugere um problema mais delicado.

Suponhamos que o processo administrativo iniciado contra o suspeito de cometer abuso de autoridade seja concluído antes do julgamento da ação penal (ou da ação privada subsidiária). A absolvição administrativa do acusado teria o condão de determinar o resultado do processo penal? A resposta a essa pergunta é não. A CF/88 garante ao Judiciário o poder dever de decidir com total autonomia e autoridade a questão juridicamente relevante levada ao seu conhecimento.

Entretanto, é possível imaginar uma situação ainda mais complexa. Qual será o efeito administrativo residual da sentença condenatória caso dela não conste expressamente que foi anulada a decisão proferida no processo administrativo? Nesse caso a administração pública poderia ignorar a decisão judicial em favor de sua própria decisão administrativa o que resultaria em nova disputa judicial ou administrativa.

O art. 7º da Lei Cancellier prescreve que “As responsabilidades civil e administrativa são independentes da criminal, não se podendo mais questionar sobre a existência ou a autoria do fato quando essas questões tenham sido decididas no juízo criminal.” A existência de decisões conflitantes é inadmissível no sistema jurídico brasileiro. Portanto, esse dispositivo parece resolver o problema acima mencionado. Entretanto, podemos antever um problema ainda maior resultante da aplicação deste artigo.

Suponhamos que o processo administrativo seja rapidamente concluído impondo uma punição ao servidor público. A condenação na esfera administrativa abre a possibilidade do servidor pedir ao Judiciário a anulação da punição (art. 5º, XXXV, da CF/88) . Portanto, em tese, a mesma infração pode se tornar objeto de apreciação tanto na Justiça Comum (a pedido do servidor administrativamente condenado) quanto na Justiça Criminal (ação pública ajuizada pelo MP ou ação subsidiária da vítima).

Portanto, o art. 7º da Lei Cancellier não exclui a hipótese de prolação de decisões judiciais conflitantes acerca da causa remota de pedir se o abuso de poder foi julgado na esfera cível e na esfera criminal. Me parece evidente que um dos processos nesse caso teria que ser interrompido. Qual deles? A Lei não oferece uma resposta plausível para essa pergunta. Qual decisão judicial terá efeitos residuais na esfera administrativa nessa hipótese? A que condenar o réu pelo crime de abuso de poder ou a que anular o processo administrativo sob a alegação de que não ocorreu abuso de poder? A Lei também deixa essa questão em aberto.

O art. 8º do PL comentado prescreve que “Faz coisa julgada em âmbito cível, assim como no administrativo-disciplinar, a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.” Não faz coisa julgada nas outras esferas a sentença criminal que declarar a inexistência de fato típico ou que o acusado não foi o autor do crime lhe imputado? Pode um servidor ser punido administrativamente depois que a Justiça decidiu que ele não foi o autor do crime ou que o crime simplesmente não ocorreu?

A aplicação deste dispositivo pode resultar numa situação diametralmente oposta àquela anteriormente mencionada caso existam duas ações judiciais discutindo o mesmo fato sob ângulos diferentes. Qual decisão judicial terá efeitos residuais na esfera administrativa nessa hipótese? A que absolver o réu em razão dele não ser autor do crime ou o fato típico não ter ocorrido (sentença criminal) ou a que manter a condenação dele no processo administrativo sob a alegação de ele agiu com abuso de poder (sentença cível)? Essa é mais uma questão delicada que a Lei deixou em aberto.

A pressa é inimiga da boa técnica legislativa. Quando não realiza sua tarefa a contento, o Poder Legislativo obriga o Judiciário a resolver problemas que eram previsíveis antes mesmo da aprovação e promulgação da Lei.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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