“Se a Escola Base não ensinou nada, não sei quem pode ensinar”, diz advogado da escola Colmeia Mágica

Ao GGN, André Dias relata abuso de autoridade e violações à ampla defesa. Caso passou de maus-tratos para tortura quando "ficou famoso"

Advogado André Dias, sentado com as mãos em cima da mesa, em entrevista ao GGN.
O advogado André Dias, defensor de Roberta Regina e Fernanda Serme, donas da escola Colmeia Mágica, indiciadas por tortura e maus-tratos de crianças. Foto: Reprodução/Youtube/TVGGN

Por Cintia Alves e Johnny Negreiros

Em abril de 2022, o Brasil parou por alguns dias para acompanhar o caso da escola Colmeia Mágica. As imagens de bebês trancados em um banheiro, com os braços amarrados com lençóis, percorreram todos os canais de televisão e as redes sociais, chocando aos espectadores. As irmãs e donas da escola infantil na Zona Leste da capital paulista, Roberta Regina e Fernanda Serme, foram indiciadas ontem, 2 de maio, pela Polícia Civil de São Paulo. O caso vinha sendo investigado como maus-tratos, mas assim que “ficou famoso” evoluiu para tortura, um crime mais grave do ponto de vista legal e que supostamente permitiu à polícia manobrar no decreto de prisão.

Imagens divulgadas nas redes sociais e emissores de TV com alunos da Colmeia Mágica. Foto: Reprodução/Twitter

Em entrevista exclusiva ao Jornal GGN, o advogado da escola, André Dias, revelou que há um político por trás da instauração do inquérito da Polícia Civil e relatou os indícios de abuso de autoridade e violações à ampla defesa que marcam o processo. Sob pressão da opinião pública, graças a uma cobertura de imprensa enviesada, o Tribunal de Justiça de São Paulo já rejeitou três habeas corpus em prejuízo das investigadas.

“Quando a mídia quer, a mídia prende. É assim que funciona”, diz o advogado André Dias.

Para ele, “a lei não vem sendo aplicada” no caso Colmeia Mágica. “Tenho adolescente obrigada a desbloquear celular e fornecer senhas [aos policiais], pessoas conduzidas de forma coercitiva [sem mandado] e divulgação para a imprensa de um inquérito que é absolutamente sigiloso“, aponta.

Além disso, “os requisitos para a prisão [de Roberta e Fernanda] não estão preenchidos. E digo mais: se este caso não tivesse tanta repercussão, elas estariam respondendo em liberdade. A nossa lei diz que impera a presunção de inocência. Essa inversão da presunção de inocência para a presunção de culpabilidade é um ato atentatório inclusive à dignidade das pessoas”, reforça o defensor.

Na conversa com os jornalistas Cintia Alves e Johnny Negreiros, do GGN, André Dias traçou um paralelo entre o caso Colmeia Mágica e o caso da Escola Base – quando donos de uma instituição de ensino infantil foram acusados de abusar sexualmente de crianças, em 1994. Meses depois, quando o delegado da operação foi trocado, a denúncia caiu por terra e o caso foi arquivado. Mas a devassa na vida e na imagem das pessoas já era irreparável. Escola Base deixou uma cicatriz no jornalismo brasileiro, que antecipou juízo de culpa sobre suspeitos, violando o direito à presunção de inocência e, consequentemente, à ampla defesa.

“Se a Escola Base não ensinou nada, não sei quem pode ensinar”, diz André Dias. A entrevista foi gravada para a TVGGN na última sexta-feira, 30 de abril, um dia após a diretora Roberta se apresentar às autoridades para cumprir o mandado de prisão temporária. Ela e a irmã, Fernanda, estão detidas na penitenciária feminina de Tremembé.

A Polícia Civil concluiu o inquérito e indiciou Roberta, Fernanda e uma auxiliar de limpeza da escola, Solange Hernandez, pela suposta tortura e maus-tratos de 9 crianças. Solange responde em liberdade. Caberá ao Ministério Público de São Paulo oferecer a denúncia à Justiça.

Assista à entrevista abaixo:

Em entrevista à reportagem do GGN, o advogado André Dias expõe indícios de abuso de autoridade e violações à ampla defesa no caso Escola Colmeia Mágica. Ele também revela que há um político por trás da instauração do inquérito

OS INDÍCIOS DE ABUSO DE AUTORIDADE NO INQUÉRITO POLICIAL

Até agora, a imprensa não tem investigado ou dado atenção ao modo como o inquérito policial tem sido construído. Há traços de abuso de autoridade no trabalho da Polícia Civil. André Dias cita como exemplo a condução coercitiva de funcionárias da escola Colmeia Mágica, sem mandado judicial. Além disso, relata que a filha adolescente da diretora Roberta foi induzida por um policial civil a desbloquear a senha e entregar o celular da mãe, também sem respaldo judicial.

“No dia que a Polícia Civil foi à escola, ela mandou todo mundo para a delegacia. As proprietárias perguntaram se elas deveriam ir, e eles responderam: ‘sim, vocês têm que ir’. (…) Mas o mandado que eles tinham era de busca e apreensão, não de interrogatório, nem de condução coercitiva. Nenhum tipo de determinação judicial foi dada que permitisse proceder dessa forma”, comenta o advogado.

“Quando ela [a filha menor de idade da diretora Roberta] estava na delegacia, aguardando que a mãe e a tia fizessem declarações, veio um policial obrigando a adolescente a desbloquear os celulares das minhas clientes. Isso é abuso de autoridade. É exagero da função do policial”, critica Dias.

Segundo o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento” é crime passível a detenção de seis meses a dois anos.

A CONVENIÊNCIA DE MUDAR O SUPOSTO CRIME DE MAUS-TRATOS PARA TORTURA

Segundo reportagem da revista Veja, a prisão de Roberta Regina e Fernanda Serme foi decretada pela juíza Gabriela Marques da Silva Bertoli, do Tribunal de Justiça de São Paulo, em abril de 2022. A juíza é a mesma que decretou a prisão do ativista Paulo Galo pela queima da estátua de Borba Gato, durante um ato contra o racismo em São Paulo.

Bertoli acolheu o argumento do delegado Renato Topan, do Cerco/8ª Seccional, que sustentou que Fernanda e Roberta Regina poderiam atrapalhar as investigações ameaçando funcionárias da escola Colmeia Mágica ou retirando documentos do local.

“É algo bastante incomum decretação de prisão antes de relatado o inquérito“, observou André Dias. Segundo ele, o mais estranho é que a Polícia Civil não juntou aos autos as provas cabais de que Fernanda e Roberta são uma ameaça à apuração. Elas foram acusadas, por exemplo, de remover documentos da escola, mas a polícia não exibiu as imagens de câmeras de segurança da rua para justificar movimentações suspeitas.

“Não é interessante produzir nada que alcance a justiça. Não podemos esquecer que muitas dessas testemunhas foram induzidas com perguntas absolutamente questionáveis, que não vou reproduzir para não ser acusado de quebrar o sigilo do inquérito”, apontou.

Por algumas semanas, Roberta foi declarada “foragida” pela imprensa. Um repórter cinematográfico do SBT que acompanha o caso desde o começo disse em entrevista para o canal “Futuro Policial” – uma produção que envolve policiais e assessores da equipe do vereador Delegado Palumbo (MDB) – que a segurança de Roberta está ameaçada dentro ou fora da prisão. “Nem o crime organizado aceita uma coisa dessa com criança.” O Delegado Palumbo é o político responsável por levar o caso Colmeia Mágica diretamente à 8ª Seccional.

Em canal no Youtube, jornalista freelancer do SBT diz que segurança da diretora da escola Colmeia Mágica está sob risco, pois “nem o crime organizado aceita uma coisa dessa com criança”

Para Dias, não há justificativa técnica para mudar os rumos da investigação de maus-tratos para tortura. Segundo ele, a única explicação possível é que a Polícia “precisava de um mandado de prisão temporária de 30 dias e aí escolheram caminhar pelo lado da tortura. Se não fosse assim, o mandado de prisão temporária seria concedido por apenas cinco dias”.

“Quando a Polícia Civil começa a mentir, distorcer fatos, induzir pessoas a responderem algo de acordo com que eles querem, simplesmente para confirmar uma tese inicial, isso não é uma investigação. Isso é falta de caráter processual, para não chamar de outra coisa”, dispara André Dias. “A Polícia é boa. Porém, alguns agentes, no exercício da função, extrapolam”.

JUSTIÇA SOB PRESSÃO

Pais e moradores da região fazem protesto em frente a escola Comeia Mágica. Sob pressão, a Justiça vem negando os recursos apresentados pela defesa da escola, sem alterar os fundamentos, diz André Dias. Foto: Reprodução/redes sociais

A defesa da escola Colmeia Mágica já impetrou três habeas corpus no TJ-SP pela revogação da prisão preventiva, revisão de quebra de sigilo telemática e revogação de prisão temporária. Mas os três recursos foram rejeitados. O advogado vê pressão da opinião pública sobre a Justiça.

“O grande problema é que a mídia exerce uma grande influência nas decisões judiciais. (…) O juiz não precisaria se preocupar com o que estão gritando na porta do Fórum, entende? Se a mídia está fazendo divulgação diuturnamente, como é o caso Colmeia Mágica, o juiz não precisa assistir televisão. Ele pode pegar os autos, de preferência sem ver o nome das pessoas que fazem os pedidos, e decidir de acordo com a lei. E não é isso que vem acontecendo. (…) Qualquer pedido feito pela defesa é rechaçado”, diz a defesa.

CELERIDADE NA INVESTIGAÇÃO SUGERE ENVOLVIMENTO DE VEREADOR DELEGADO PALUMBO: “OPORTUNISMO”, DIZ ADVOGADO

Em entrevista ao GGN, André Dias indicou que o inquérito da Polícia Civil foi instaurado e tramita com “celeridade” por influência de um vereador, o Delegado Palumbo (MDB). Policial civil ativamente em busca de holofotes, Palumbo se elegeu em 2020 após ter estrelado o programa “Operação de Risco”, da RedeTV!, onde levava a emissora para acompanhar as operações que ele chefiava.

Vereador Delegado Palumbo fardado, com fuzil na mão e a bandeira do Brasil ao fundo.
Hoje vereador em SP, o Delegado Palumbo (MDB) é figura influente na Polícia Civil e famoso por participar de programas como o “Operação de Risco”, da RedeTV!. Palumbo foi quem levou o caso Colmeia Mágica à Delegacia. Foto: Reprodução/Instagram/@delegadopalumbo

Palumbo recebeu a denúncia contra a escola Colmeia Mágica pelo WhatsApp. Entrou em contato com o denunciante, fez um primeiro relatório e entregou nas mãos do delegado da 8ª Seccional, Renato Topan, segundo o relato do advogado André Dias. Poucas horas depois, o inquérito já estava oficialmente instaurado.

“É muita rapidez e destreza quando a gente conhece a forma e o histórico que a Polícia Civil trabalha”, ironizou o advogado.

Para a defesa, Palumbo viu no caso Colmeia Mágica uma oportunidade de obter ganhos de imagem. O vereador é autor de um projeto de lei que obriga escolas de educação infantil em São Paulo a instalar câmeras de vigilância e dar acesso às imagens em tempo real às famílias.

“A ideia é maravilhosa. Lamento profundamente que só tenha sido levada adiante depois que esse mesmo vereador fez um ofício e deu-se início à investigação. Não tem nada de errado no envio do ofício. Não tem nada de errado com o projeto de lei. Mas ficou com uma cara de oportunismo sem tamanho”, comentou o advogado.

POLÍCIA CIVIL NÃO COMENTA O CASO COM O GGN

Procurada pelo GGN para rebater os apontamentos da defesa da escola Colmeia Mágica, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo respondeu em nota que “a Polícia Civil relatou o inquérito policial do caso à Justiça após o cumprimento das prisões preventivas das suspeitas. Diligências complementares prosseguem sob sigilo”.

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