STF avalia se atos de guerra não estão imunes à sua jurisdição, por Luiz Felipe Panelli

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
[email protected]

STF avalia se atos de guerra não estão imunes à sua jurisdição

por Luiz Felipe Panelli

Em meio à convulsão política, o STF decidiu analisar a possibilidade do Poder Judiciário se manifestar a respeito de atos de guerra e suas consequências. Trata-se da Repercussão Geral nº 944, originado a partir de caso em que descendentes de mortos em um ataque perpetrado por submarino alemão a um barco brasileiro em 1943 buscam responsabilizar a Alemanha. Nesse contexto, o STF pode vir a considerar que atos de guerra estrangeiros não estão imunes à jurisdição.

Expliquemos um pouco melhor: existia, na doutrina jurídica, até meados do Século XX, uma distinção forte entre atos administrativos e políticos. Os atos políticos decorriam da autoridade constitucional e eram impassíveis de revisão por parte do Poder Judiciário, ao contrário dos atos administrativos.

O constitucionalismo brasileiro se ateve a tal tradição, impedindo que atos políticos fossem revistos. Aos poucos, esta doutrina passou a ser vista como autoritária; um dos últimos vestígios da sua aplicação se deu nos Atos Institucionais, da ditadura militar, que negavam a possibilidade de revisão judicial (inclusive concessão de habeas-corpus) aos atos da chamada “revolução” (que boa parte dos historiadores hoje chama de “golpe”). A Constituição Federal de 1988 prevê possibilidade irrestrita de revisão judicial desde que haja lesão ou ameaça a direito.

De certa forma, porém, a doutrina dos atos políticos sobreviveu, mesmo que tímida. Atos como a indicação de ministros de Estado ou a aprovação de uma lei não se sujeitavam ao controle judicial reservado aos atos administrativos (evidentemente, as leis sujeitam-se ao controle de constitucionalidade). Aos poucos, o Poder Judiciário, provocado, passou a imiscuir-se, mesmo que timidamente, em tais atos (como ficou claro na polêmica envolvendo liminar que negou ao ex-presidente Lula o cargo de ministro).

Agora, o STF ensaia dar um passo adiante na possibilidade de o Poder Judiciário adentrar a seara exclusivamente política. A guerra sempre foi vista como um ato de teor político e de soberania, alheio ao Direito. Aos poucos, felizmente, o cenário foi modificado, mormente depois da Segunda Guerra Mundial. A promulgação da Convenção de Genebra tentou pôr ordem ao caos dos campos de batalha e permitir um mínimo de dignidade aos afetados pelos conflitos, coisa que a anterior convenção de Haia não conseguiu. A formação da ONU tem em sua gênese a tentativa de mediação da comunidade internacional em prol da paz.

No referido tema 944, a primeira instância da Justiça Federal e o Superior Tribunal de Justiça se manifestaram de forma contrária à possibilidade de revisão do Poder Judiciário, alegando que a Alemanha era Estado soberano e que o ato de guerra e suas consequências não são apreciáveis judicialmente. O STF tem oportunidade de mudar tal entendimento, mas a dúvida permanece: como o Poder Judiciário de um país conseguirá, mesmo que se afirme constitucionalmente autorizado a tanto, exercer jurisdição efetiva sobre país estrangeiro?

Luiz Felipe Panelli é doutorando em direito e pesquisador do Grupo de Estudos sobre Direito, Estado e Sociedade (GEDES) da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Atua principalmente nos seguintes temas: direito constitucional, direitos fundamentais e filosofia do direito.

 

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

9 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Não há jurisdição sem

    Não há jurisdição sem violência legítima.

    A imposição da jurisdição de um país configura ato de guerra, pois nenhum país tem jurisdição dentro do outro. 

    Se não rejeitar a tese, o STF estará declarando guerra à Alemanha com 74 anos depois do ataque.

    Note-se, ademais, que o Brasil já declarou guerra à Alemanha por causa do referido incidente. 

    Portanto, além de tardia uma nova declaração de guerra configuraria “bis in idem”.

    A paz acordada ao fim da II Guerra Mundial não prevê a condenação da Alemanha a indenizar os danos resultantes da guerra.

    O STF obviamente não tem competência para revogar o armistício e atos subsequentes que levaram à criação da ONU.

    Melhor seria deixar a questão ser resolvida no ambito da diplomacia.

    Se os alemães quiserem voluntariamente indenizar os danos que causaram OK. Se não quiserem, paciência. Afinal, as relações entre o Brasil e a Alemanha na atualidade são mais importantes do que os cadáveres de uma guerra que terminou há quase um século.  

  2. Qual a consequencia pratica

    Qual a consequencia pratica do STF perder tempo com esse tipo de ação?  O Estado alemão vai pagar idenização de guerra a essa altura da Historia? Se assim fosse seria possivel processar a França por Napoleão ter invadido Portugal.

    Logo depois do fim da Guerra em 7 de maio de 1945 o Governo brasileiro tentou processar a adminstração sucessora do Terceiro Reich por causa do afundamento de 5 navios brasileiros  no litoral do Nordeste brasileiro pelo submarino U-937

    comandando pelo capitão de fragata Harro Schacht e não teve nenhum sucesso.

    Como se o STF não tevessa já excesso de rpocessos.

    1. Retificando, o submarino

      Retificando, o submarino alemão que afundou os navios na costa brasileira era o U-507, comandado por Harro Schacht.

  3. Acabo de ter uma ideia “brilhante”

    Bem que o STF podia “estatizar” empresas alemãs para indenizar os danos  da II guerra………assim de canetada…..de forma unilateral…..sem discutir….VW, Bayer, Henkel, Basf,Mercedes,Siemens/Boch todas estatizadas….so para começar……Falando serio, o pais pegando fogo, e o meretissimos, quando não estão viajando, arrumam tempo para discutir asunto dessa urgencia e importancia……impressionante….

  4. Isso valeria para os EUA de 1964?

    A mesma tese poderia ser empregada para responsabilisar os EUA por todos os danos materiais e morais provocados ao povo brasileiro decorrentes da sua interferência por ocasião do golpe de 1964?

     

  5. Contraditório

    E a Lei da Anistia? Em 2010 foi rejeitada sua revisão neste STF por 7×2. Seu presidente, ministro Cezar Peluso, disse ao votar contra a revisão: 

     

    “Só o homem perdoa, só uma sociedade superior qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar. Porque só uma sociedade que, por ter grandeza, é maior do que os seus inimigos é capaz de sobreviver.”

     

    Mudou esta sociedade?

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador