Zanin defende perícia psicológica para provar crime de ódio em assassinato de petista

A proposta surge em meio às diferentes visões sobre os crimes apresentadas pela Polícia Civil e o Ministério Público do Paraná

Acervo família

Em artigo publicado no Conjur nesta quinta-feira (28), o advogado do ex-presidente Lula, Cristiano Zanin, e a advogada Graziella Ambrosio, defendem uma perícia psicológica para provar que o policial penal bolsonarista que matou o petista Marcelo Arruda em Foz do Iguaçu (PT) praticou crime de ódio com motivação política. 

A proposta surge em meio às diferentes visões sobre os crimes apresentadas pela Polícia Civil e o Ministério Público (MP) do Paraná. 

A delegada que investigou o caso indiciou o policial  federal penitenciário bolsonarista, Jorge José da Rocha Guaranho, por homicídio qualificado, por motivo torpe, descartando motivação política. O MP, no entanto, entendeu que o motivo era fútil e havia divergências políticas. 

Antes de assassinar Marcelo Arruda, o bolsonarista teria dito que “petista vai morrer tudo”, em ameaça aos convidados da festa.

O artigo de Zanin e Ambrosio explica que o Brasil ainda não inseriu preferências políticas ou partidárias no arcabouço legal que tipifica os crimes de ódio. Mas seria possível provar a relação entre o discurso de ódio bolsonarista e a morte de Marcelo Arruda através de uma perícia psicológica, que os advogados exploram no artigo. 

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Leia abaixo:

Crime de ódio por motivação política

por Cristiano Zanin Martins e Graziella Ambrosio

Crime de ódio é aquele que envolve a seleção intencional de uma vítima com base no preconceito de um criminoso contra o status real ou percebido da vítima. Ele pode se basear em gênero, opção sexual, raça, nacionalidade, características físicas, religião e crenças, inclusive opiniões políticas.

O crime de ódio é tipificado em diversas legislações no mundo, mas nem sempre todas as categorias mencionadas anteriormente estão albergadas no tipo penal.

No Brasil, as categorias raça, cor, etnia, religião e procedência nacional encontram-se contempladas em alguns tipos penais dispostos pela Lei nº 7.716/89.

Além dessas categorias, em 2019, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a homofobia e a transfobia também deveriam ser categorias protegidas, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26, equiparando tais figuras ao racismo.

No entanto, a opinião política não foi contemplada pela legislação brasileira como categoria protegida.

Diferente é o entendimento conferido, por exemplo, pelo Distrito de Columbia[1], onde se localiza a capital norte-americana. Segundo a legislação local, a filiação política é uma das situações nas quais se enquadra o crime de ódio.

Importante ainda destacar que o crime de ódio envolvendo motivação política não se enquadra como crime político, uma vez que esse último tem como bem resguardado a integridade territorial e a soberania nacional. São exemplos de crimes políticos: o atentado à soberania (Código Penal, artigo 359-I), o atentado à integridade nacional (Código Penal, artigo 359-J) e a abolição violenta do Estado democrático de Direito (Código Penal, artigo 359-L).

Segundo a legislação do Distrito de Columbia, para a caracterização do crime de ódio, também chamado de crime relacionado ao viés, não basta a existência de provas de que a vítima seja integrante de determinado grupo, mas se faz necessário demonstrar que o autor cometeu o crime motivado pelo preconceito que nutre contra esse grupo. Ou seja, a intenção precisa ser provada. Assim, uma vez enquadrada a situação como crime de ódio a pena pode ser aumentada em até 50%.

Os crimes de ódio envolvem desde os tipos mais brandos até os mais severos, partindo de tipos como injúria e difamação, passando por ameaças, e chegando a crimes mais violentos como dano, lesão corporal e até mesmo homicídio.

Assim, o simples fato de alguém interromper a festa de outrem para insultá-lo por suas opiniões políticas ou uma postagem na internet propagando o ódio podem ser enquadrados como injúria decorrente de ódio.

Segundo Edward Dunbar[2], os crimes de ódio, via de regra, não são premeditados. Outro dado interessante trazido pelo autor é que apenas 20% das pessoas que praticam crimes de ódio já haviam passado por tratamentos psiquiátricos.

Aliás, nem mesmo o terrorista tem necessariamente uma doença mental[3]. Não existe essa correlação segundo a literatura especializada, ao contrário do que poderia indicar o senso comum.

Não é por outra razão que Fernando Procópio Palazzo[4] afirma que a propagação do discurso de ódio pode ter efeitos muito deletérios em determinados ouvintes e atrair a atenção de um “lobo solitário”.

Por isso, é muito importante que discursos de ódio não sejam propagados.

Interessante notar que nos Estados Unidos as pessoas que se identificam como conservadoras são comumente entusiastas de penas mais severas para os crimes em geral. No entanto, quando se trata de crime de ódio, essas mesmas pessoas se dizem contrárias a punições mais severas. Isso porque, segundo elas, haveria violação ao direito de liberdade de expressão previsto na Primeira Emenda e ao direito à isonomia de tratamento previsto na 14ª Emenda. Além disso, são essas pessoas que costumam ter atitudes mais negativas em relação às minorias[5].

Os crimes de ódio também têm uma característica ímpar que os diferencia dos demais: eles gozam de uma marcante função simbólica, pois não se encerram em si mesmos, mas operam como mensagens com alto grau de reverberação transmitidas a uma determinada comunidade, localidade ou grupo[6].

Os comportamentos dos membros do grupo da vítima são fortemente impactados após a ocorrência do crime. As pessoas alteram seu modo de viver. Muitas sofrem de estresse pós-traumático. Por vezes abandonam a localidade. Outras vezes deixam de se expressar livremente e ficam escondidas dentro de suas casas. Homossexuais deixam de andar de mãos dadas. Religiosos deixam de usar os adereços que identificam sua fé. E assim por diante.

Quanto à origem psicológica dos crimes de ódio, uma das hipóteses levantadas se baseia na teoria da identidade social. Por meio dessa teoria sugere-se que estabelecer uma identidade positiva não depende apenas de elogiar o grupo interno, mas é tão ou mais importante diminuir o grupo externo.[7] Assim, ao cometer o crime, o autor passa a gozar de um status mais relevante dentro de seu grupo. Isso gera incremento de sua auto-estima, que atua para legitimar o ato criminoso. Sem contar que ele pode ainda ser alçado ao patamar de ídolo e modelo de comportamento a ser seguido pelos membros do seu grupo.

Kellina Craig[8] afirma que a personalidade autoritária é comum nos crimes de ódio. A personalidade autoritária refere-se a uma pessoa que, como consequência de pais rígidos, frios e exigentes, desenvolveu uma hostilidade inconsciente que não era dirigida aos pais ou outras figuras de autoridade, mas àqueles percebidos como fracos.[9]

À luz do que foi exposto, poderia ser indagado: é possível utilizar o saber da psicologia jurídica para revelar a motivação do crime? A resposta é positiva. Sim, é possível se fazer uma perícia psicológica para conhecer se a motivação daquele que cometeu o crime era política ou não. Neste caso, ainda que o indivíduo se recuse a participar da avaliação psicológica, a perícia pode ser realizada na modalidade indireta que é aquela feita sem contato com o periciando, baseada apenas em documentos, postagens, vistoria em ambientes e entrevistas com pessoas envolvidas, profissionais que atuaram no caso, familiares, amigos, colegas de trabalho e outas pessoas de seu convívio social. Os dados coletados são correlacionados e interpretados, permitindo a compreensão das especificidades do indivíduo, bem como a formulação de diagnósticos e a motivação do ato delituoso.

Atualmente uma fonte de informação fundamental para o levantamento dos dados são as redes sociais e os dados de celulares. O compartilhamento de mensagens de ódio pode, por exemplo, sugerir alguns traços psicológicos sobre a pessoa e suas motivações. Importante destacar que o psicólogo forense faz a adaptação dos métodos, técnicas e testes utilizados na área clínica para a obtenção dos dados, a fim de conferir-lhes maior confiabilidade para responder à questão legal.

Mas e se o autor do crime também tiver morrido, ainda é possível se investigar a motivação do crime consoante o saber da psicologia? A resposta também é positiva. Embora não seja útil ao processo penal, uma vez que não se pune o morto, talvez seja possível imaginar alguma utilidade em um processo civil de reparação de danos, caso a motivação política tenha alguma relevância jurídica na estipulação da indenização. Para tanto poderia ser aplicada a técnica conhecida como autópsia psicológica.

De acordo com Teresita García Pérez[10], a autópsia psicológica é uma caracterização retrospectiva da personalidade e da vida de uma pessoa falecida que utiliza um método indireto para obter informações do falecido através de terceiras pessoas que com ele conviviam intimamente, como familiares, amigos, vizinhos, colegas de trabalho ou de religião. Também faz parte do método a revisão de documentos pessoais (notas, diários, cartas, produção literária, etc.) e oficiais (história clínica ou militar, registros escolares, emprego, etc.).

Para Tatiane Gouveia de Miranda[11], a autópsia psicológica pode ser definida como uma avaliação realizada retrospectivamente através de uma investigação imparcial que objetiva compreender os aspectos psicológicos de uma determinada morte. Segundo a autora, a autópsia psicológica visa reconstruir a vida psicológica de um indivíduo, analisando seu estilo de vida, a personalidade, a saúde mental, os pensamentos, os sentimentos e os comportamentos precedentes à morte, a fim de alcançar o maior entendimento possível sobre as circunstâncias que contribuíram para o fato.

Assim, a psicologia forense possui uma variedade de técnicas, métodos e testes que permite o levantamento de dados e informações com maior precisão e exatidão para revelar a compreensão psicológica do crime — e pode ser uma ferramenta muito útil para o trabalho daqueles que irão atuar na apuração e nos atos de persecução penal. No caso do homicídio de Foz do Iguaçu, por exemplo, a perícia psicológica é o instrumento, pautado em conhecimentos científicos, capaz de demonstrar que o crime ocorreu porque a vítima pertencia a um grupo político oposto, além de revelar como o próprio criminoso foi influenciado pela manifestação de ideias que incitam a discriminação, o preconceito, a intolerância e a violência que causam danos a toda sociedade.


[1] D.C. Official Code § 22-3700 e ss.

[2] DUNBAR, Edward. A psychographic analysis of violent hate crime perpetrators: aggressive, situational, and ideological characteristics of bias motivated offenders. 1999.

[3] WEATHERSTON, David; MORAN, Jonathan. Terrorism and mental illness: Is there a relationship?. International journal of offender therapy and comparative criminology, v. 47, n. 6, p. 698-713, 2003.

[4] PALAZZO, Fernando Procópio. O massacre em Ruanda, o caso Monark e os limites ao “ódio democrático. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2022-mai-06/fernando-palazzo-ruanda-monark-limites-odio-democratico> Acesso em 19/07/2022. Disponibilizado em 06/05/2022.

[5] MALCOM, Zachary T.; WENGER, Marin R.; LANTZ, Brendan. Politics or prejudice? Separating the influence of political affiliation and prejudicial attitudes in determining support for hate crime law. Psychology, Public Policy, and Law, 2022. P. 1-2.

[6] CRAIG, Kellina M. Examining hate-motivated aggression: A review of the social psychological literature on hate crimes as a distinct form of aggression. Aggression and Violent Behavior, v. 7, n. 1, p. 85-101, 2002. p. 87.

[7] Ibidem. p. 91.

[8] Ibidem. p. 95.

[9] Ibidem. p. 95.

[10] GARCÍA PÉREZ, Teresita. La autopsia psicológica en el suicidio. Medicina legal de Costa Rica, Heredia, v. 15, n. 1-2, p. 22-24, Dez. 1998.

[11] MIRANDA, Tatiane Gouveia de. Autópsia psicológica: compreendendo casos de suicídio e o impacto da perda. 2014. 158 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) — Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília. 2014.

*Cristiano Zanin Martins é advogado, especialista em litígios decisivos e litígios transnacionais e cofundador do Lawfare Institute.

**Graziella Ambrosio é advogada, psicóloga, doutora em Psicologia pela USP e mestre em Direito pela PUC-SP.

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