Como foram assassinados os moleques João Huck e Luciano Dória Jr., por Sebastião Nunes

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Foto: Tania Rego/Agência Brasil

Eram gêmeos univitelinos: cara de um, focinho de outro. Nasceram num dia de sol quente na favela do Quebra-Pau – qualquer um sabe onde fica, não sabe?

Na hora de escolher os nomes, o maior fuzuê: a mãe, fanática pelo maridão da Angélica, exigia que um se chamasse Luciano Huck. Já o pai, vidrado no bon-vivant das noitadas paulistanas, não abria mão de João Dória, inclusive com o Jr.

Por que não fizeram assim, um nome chique e midiático para cada um? Não sei: mistérios insondáveis de pobres turrões.

Brigaram de soco, pontapé, beliscão e mordida. Quando a ambulância chegou, chamada pelos vizinhos, gemiam ensanguentados no chão da cafua. Os filhotes? Quase se acabando de tanto esgoelar num colchonete fedorento.

NUVENS PASSAGEIRAS

Para deslindar o nó da desavença, alvitrou uma liderança comunitária que melhor seria misturar os nomes. E assim foi feito: João Huck um, Luciano Dória Jr. o outro.

Cresceram numa boa, comendo pão dormido com café ralo e angu com feijão bichado, que a grana paterna (somada à materna) não dava para mais.

Escola? A da vida. Largados nas ruas de terra engordavam lombrigas.

Apesar dos pesares foram crescendo, crioulinhos miúdos, nada exigentes.

Os pais? Brigavam que nem cachorro e gato, desculpe, doutor, o clichê, mas era por aí mesmo. Viviam lanhados de unha, arranhados de dente e roxos de pescoções ou chutes. Mas não se largavam: ao contrário da média, adoravam os filhotes e, aqui entre nós, se adoravam também, sadomasoquistas enrabichados.

Aos 10, João e Luciano vendiam bala e pano de prato nos cruzamentos.

Aos 12, faziam malabarismo com bolas de borracha nos mesmos cruzamentos e faturavam bem. Cara de um focinho do outro, os motoristas achavam graça.

Poupança? Zero: os pais afanavam o ganho e torravam tudo na cachaça.

NUVENS ESCURAS

Assim cresceram, numa boa, João Huck e Luciano Dória Jr.

Em casa, a mãe contabilizava no fim do dia:

– Faturou quanto hoje, João Huck?

Para ela não tinha diminutivo nem apelido. O nome do ídolo exigia respeito.

O pai não fazia por menos:

– Passa a grana, Luciano Dória Jr.

Obedientes, os moleques entregavam o ouro. Mas só até fazer 13 e comemorar na rua, no meio da turma sem eira nem beira que nem eles.

Fugiram juntos numa noite sem lua.

Para onde? Nem Deus sabia.

Chorosos e sem amparo, moveram os pais céus e terras a troco de nada.

NUVENS PRETAS

Na favela do Pau-Torto, o retorno às famosas proezas malabarísticas.

Já tinham 15 anos, analfabetos de pai e mãe, mas faturando uma grana grossa nos cruzamentos. Imagine só: crioulinhos univitelinos não é todo dia que nasce um par.

Até que deu inveja nos pivetes de olho gordo nas minas que paravam o olho na duplinha atrevidíssima.

Pois aquela que namorava Luciano Dória Jr. tirava suas lasquinhas no João Huck, vá lá alguma adivinhar diferenças que só a mãe enxergava.

Foi quando os pivetes ciumentos da Pau-Torto entregaram a dupla para a polícia que desandava, salmodiava e faxinava (ou chacinava?) na favela.

Apanhados com gorda muamba plantada nas bolas de borracha do malabarismo dançaram miudinho.

Morreram no mesmo dia e hora com balas espetadas nas costas magricelas.

“Revidamos ataque de marginais no tiro”, declarou a polícia em legítima defesa à imprensa surda e muda e aos superiores mudos e surdos.

Ficou por isso mesmo. Sem inquérito nem nada. Costas quentes.

Dos defuntinhos univitelinos ninguém quis mais saber. Nem as minas.

Era uma vez dois moleques espertos de favela: João Huck e Luciano Dória Jr.

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Sebastiao Nunes

2 Comentários

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  1. Imagine se filhos de João

    Imagine se filhos de João Dória Júnior, prefeito, e de Huck, apresentador de TV, ainda que procendendo muito mal, receberiam tal tratamento. É disso que se cuida. A parcialidade de tratamento entre ricos e pobres; brancos e negros endinehriados, porque também não se dá cabo de um filho de Pelé com alegações fajutas de legítima defesa. 

     

  2. gêmeos

    Excelente texto de Sebastião Nunes, que escreve bem pra cachorro. Com sua narrativa coloquial, Nunes conversa com o leitor e escrever é conversar com o leitor, como bem ensinou Stanislaw Ponte Preta, o maior cronista do Brasil.

     Nunca tinha visto, quer dizer, lido nada igual. A crônica sobre os gêmeos é um misto de comédia e tragédia. Também notei forte teor de humanisno e cumprimento Nunes por isso. 

    Prazer em conhecê-lo, Nunes!

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