Livro traz de volta textos e fotos de Carlos Drummond de Andrade

  
Drummond (de pá na mão) planta uma muda ao lado de Jorge Amado, no pátio da Record, em 1984 Foto: Divulgação

Enviado por Gilberto Cruvinel

Livro traz de volta textos e fotos de Carlos Drummond de Andrade

‘Autorretrato e outras crônicas’ comemora os 75 anos da editora Record

Ruan de Sousa Gabriel

de O Globo

SÃO PAULO — O velho ditado diz que um homem só se realiza depois de escrever um livro, ter um filho e plantar uma árvore. Em 1984, para tornar mais plena a vida dos escritores da Record, o editor Alfredo Machado convidou alguns deles para plantar mudas escolhidas pelo paisagista Burle Marx no pátio da editora, em São Cristóvão, no Dia da Árvore (21 de setembro). Entre os mais de 30 convidados estavam Carlos Drummond de Andrade e Jorge Amado. Um retrato deles plantando suas mudas foi incluído agora no encarte da reedição comemorativa de “Autorretrato e outras crônicas”, de Drummond, publicado pela primeira vez em 1989, dois anos após a morte do poeta. Organizado pelo crítico literário Fernando Py, o livro reúne 57 crônicas escritas entre 1943 e 1970.

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Abaixo, duas crônicas incluídas no livro:

AUTORRETRATO

Diz o espelho: O sr. Carlos Drummond de Andrade é um razoável prosador que se julga bom poeta, no que se ilude. Como prosador, assinou algumas crônicas e alguns contos que revelam certo conhecimento das formas graciosas de expressão, certo humour e malícia. Como poeta, falta-lhe tudo isso e sobram-lhe os seguintes defeitos: é estropiado, antieufônico, desconceituoso, arbitrário, grotesco e tatibitate. O maior dos nossos críticos passados, presentes e futuros, o sr. Pontes, que tirou do próprio nome essa consistência de cimento armado, característica do seu estilo, incumbiu-se de lembrar-lhe todos os dias que ele não é poeta; que poeta, só B. Lopes e Théodore de Banville. Mas o sr. Drummond teima em não escutar a lição desse douto espírito, e a todo momento nos oferece mesquinhas produções poéticas, de que resultam cólicas e explosões nas pessoas de bom gosto, o sr. Pontes inclusive.

O sr. Drummond de Andrade passa por ser o autor de um poema (?) ou que melhor nome tenha, a que deu o título “No meio do caminho”. Essa produção corre mundo e é considerada ora obra de gênio, ora monumento de estupidez. Na realidade, não é nenhuma dessas coisas, nem pertence ao estro do sr. Drummond. Com efeito, quem se der ao trabalho de examinar-lhe o texto verificará que se trata tão somente da repetição, oito vezes seguidas, dos substantivos “meio”, “caminho” e “pedra”, ligados por preposições, artigos e um verbo. Não há nisto poema algum, bom ou mau. Há apenas alguns vocábulos, que podem ser encontrados facilmente no Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, revisto pelo sr. Aurélio Buarque de Holanda.

Esse pequeno fato literário fez despertar em alguns julgadores a suspeita de que se trata de um mistificador. Tem-se por vezes a impressão de que o sr. Drummond se diverte com o escândalo produzido por seus escritos, escândalo de que emergem as seguintes opiniões a seu respeito: “É um burro.” “É um louco.” “É superior a Castro Alves e igual a Baudelaire.”

Alguns traços pessoais do referido escritor contribuem para aumentar essa dúvida. O sr. Drummond de Andrade é um indivíduo oculto, como certos sujeitos da oração, ausente mesmo, usa no trato social palavras poucas e frias. Não é visto no Amarelinho nem na Livraria José Olympio. Uns acham-no tímido, outros, convencido. Quando está caceteado na presença de outro escritor, costuma acariciar a orelha com a ponta dos dedos à procura de um fio de cabelo, que arranca discretamente. Em geral não ri. Apenas uma vez foi visto a esboçar um leve sorriso, devido a uma pilhéria oral e mímica do sr. Marques Rebelo. Dizem que o romancista da Estrela sobe considera esse fato como um dos seus maiores triunfos.

No conjunto das exterioridades significativas do seu temperamento, há a assimilar que o sr. Drummond mais uma vez se contradiz, passando de escritor a homem prático. Se aquele é abstruso e não raro exotérico, este é funcionário em comissão, muito metódico e fiel aos preceitos burocráticos, que põe acima dos estéticos e dos políticos. Talvez ambicione com isso aproximar-se do inimitável diretor de secretaria que foi Machado de Assis. Como servidor público, pode ser visto em seu gabinete à Rua Álvaro Alvim, atendendo simultaneamente a três telefones, recebendo vinte pessoas e lavrando vertiginosamente despachos de “arquive-se”, “cumpra-se” e “não há verba”. Alguns prejudicados por esse último gênero de despacho insinuam que toda a sua atividade é fictícia, e que os negócios públicos caminhariam da mesma maneira ou melhor se ele, em vez de trabalhar, fosse a uma sessão de cinema. Outro ponto a esclarecer.

Não há muita coisa interessante na vida do sr. Carlos Drummond de Andrade, embora ele pense o contrário. Tem explorado largamente o fato de haver nascido em Itabira, cidade mineira do ferro, como se isto constituísse uma singularidade. Também já publicou que foi expulso pelos jesuítas de Friburgo e que não é bacharel em direito nem médico nem engenheiro; é gente, apenas. Dir-se-ia alimentar, entre outros preconceitos, o anticlerical e o antiuniversitário, o que já deixou de ser uma originalidade. Quanto aos seus críticos, dão extrema importância ao fato de ser ele um homem magro, no físico e na poesia, ao contrário (segundo os mesmos críticos) do sr. Augusto Frederico Schmidt, considerado gordo por dentro, isto é, literariamente, e por fora. É talvez uma nova teoria de crítica literária, que se ensaia no Brasil: a da balança de armazém, para pesar banhas, ossos e letras. Se amanhã, com a velhice que chega, o sr. Drummond engordar e o sr. Schmidt emagrecer, terá de ser revista a classificação de ambos.

Por último, e do ponto de vista dos meridianos literários, que o sr. Viana Moog pôs novamente em moda, o sr. Drummond é um escritor do centro-sul, mas pouco fiel ao seu clã, pois vive de namoro com os escritores do norte. Será um mascarado? É, pelo menos, um sujeito esquisito.

Leitura , junho de 1943

 

O INOCENTE

O inocente foi preso e — é claro — confessou o crime. Quem não o confessa? Nesse entrementes, como diriam os bons autores, o culpado também foi preso, por outro delito que não cometera, e acabou, sponte sua, revelando o cometido.

Estava reabilitado o inocente? Não. A máquina de fazer justiça fora posta em movimento, e chegaria às operações finais. Quatro meses depois (até que não demorou), inocente comparece a júri, que lhe verifica a inocência e o absolve: “Vai, inocente.” Mas a justiça, que vigia num palácio, puxa-o pela manga: “Não vai não, inocente. Terás de responder agora pelo delito de autoacusação falsa. Naturalmente serás absolvido, pois a polícia te encheu de ameaças, e, mais que de ameaças, de gravuras pelo corpo, para que confessasses. De qualquer modo, fizeste mal em ceder. Por essa falsidade pagarás. O pagamento será novo processo e novo julgamento; e a quitação (se não surgir fato novo, o que só Deus sabe), a sentença absolutória final. Espera mais um tiquinho, meu filho, e sairás de viseira erguida.”

Não inventei. Está nas folhas que A foi acusado da morte de B, praticada por C, e que este, incriminado de furto, se declarou assassino, pelo que o promotor pediu a absolvição de A e vai denunciá-lo outra vez, confiado em que seja absolvido outra vez. Também. (Deixo de publicar os nomes, porque letras, simples letras, identificam melhor criaturas submetidas ao poder da lei: perderam a individualidade, são peças de tabuleiro de dama.)

A notícia não diz o que acontecerá ao policial ou policiais que coagiram A à confissão. Serão naturalmente processados e alegarão que A mentiu ao queixar-se do “cristo redentor” ou do “fecha-baú”, assim como mentira ao confessar o crime. A é mentiroso incurável, e a polícia, exposta à ferocidade, à astúcia ou à debilidade mental dos suspeitos, merece bem que seus enganos sejam perdoados. Pelo quê, também os policiais serão absolvidos.

Se me disserem que esta fábula social é indecente, peço permissão para discordar. Graças ao mecanismo, afinal de contas um crime foi apurado, a inocência aflorou à luz. Para proclamá-la, é certo, houve que submetê-la a vexame prévio, mas não há outra maneira de testar a inocência senão confundindo-a com a culpa. A suposição de que milhões de pessoas pelo mundo, não acusadas de qualquer falta, sejam todas inocentes carece de base jurídica. São potencialmente suspeitas, e só a acusação em termos, de determinada falta, permite que as proclamemos inocentes. Preso, amassado, ofendido, julgado, então sim, o indivíduo vê resplandecer sua inocência, joia oculta. Em casos mais obscuros, precisa até ser condenado, pegar anos de cadeia; precisa mesmo ser “depurado”, na boa tradição russa, para que se apure e realce, em cima da cova, sua inverossímil, refolhada inocência.

Portanto, A não tem de que se queixar. Deram-lhe chance, no jogo em que a brutalidade policial é uma das regras sob qualquer regime. Se capitulou, assumindo a autoria de crime alheio, podia não capitular, segundo a lição de filósofos idealistas e materialistas, para os quais o homem é livre de fazer o que bem entenda. Se todos os inocentes se confessam culpados, a culpa não é do jogo, mas dos jogadores. Cometendo falta contra sua própria personalidade, de que devia ser guardião zeloso, A mostrou que no fundo não era tão inocente assim. Coube ao verdadeiro criminoso salvá-lo de si mesmo, restabelecendo a verdade. Assim se compensam impulsos contraditórios, distribuindo-se justiça.

Mas a autoria do homicídio foi estabelecida por acaso, dir-se-á. Engano. O homicida foi preso por furto, dentro da técnica policial mais rigorosa. Ia-se testar-lhe a inocência; provou-a, confessando falta de outra natureza, que já não interessava, pois o inocente assumira o seu peso. Sistema perfeito.

Correio da Manhã , 26 de julho de 1967

Redação

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