O Quintal, por Manuel Bandeira

Enviado por Gilberto Cruvinel

O Quintal, por Manuel Bandeira

Que é um quintal? Abro o meu velho Morais, o meu velho e querido Antônio de Morais Silva, e leio esta definição: “É na Cidade, ou Vila, um pedaço de terra murada com árvore de fruta, etc.” Não era bem isso o que chamávamos quintal na casa de meu avô materno no Recife, a casa da rua da União que celebrei num poema. [Evocação do Recife] Então vamos ver o que diz o Aulete no verbete “quintal”. Reza assim: “Porção de terreno junto da casa de habitação, com horta e jardim.” Está melhor, quer dizer, aplica-se melhor ao que chamávamos quintal na casa de meu avô. Apuremos a etimologia, recorramos ao dicionário etimológico de Antenor Nascentes. Eis o que ele averba: “Quintal – 1 (horto): Do lat. quintanale (Leite de Vasconcelos, Lições de Filologia 306) cfr. quinta. A. Coelho tirou de quinta o sufixo al”. No verbete “quinta” registra Nascentes que em Portugal, na Beira, ainda hoje a palavra significa “pátio”.

O quintal da casa da rua da União era isto: uma pequena porção de terreno em quadrado para onde dava a varanda da sala de jantar e em quina com esta a varanda com acesso para a copa, a cozinha, o banheiro, o quarto de guardados; do lado oposto à segunda varanda, bem mais estreita que a primeira, havia o paredão alto da casa da vizinha, onde moravam umas tias de José Lins do Rego; ao fundo ficava o galinheiro, e ao lado deste, o cambrone. Aqui no Sul muita gente não sabe o que é cambrone e ainda menos por que motivo no Recife daquele tempo (começo do século) se dava à privada o nome do general de Napoleão, que intimado pelo inimigo a render-se na Batalha de Waterloo, respondeu energicamente com uma só palavra de cinco letras. Pois fiquem sabendo que o motivo foi este: o engenheiro francês que projetou e dirigiu no Recife o serviço de instalação dos esgotos chamava-se Cambrone, mas não sei se era parente do herói de Waterloo. Os cambrones do Recife eram o que havia de mais primitivo, mas por que o menino de sete anos, futuro poeta a seu malgrado, gostava de estar ali? Só muitos anos depois, homem feito, descobriu a razão, ao ler o poema de um menino genial que se chamava Jean-Nicolas-Artur Rimbaud, poema intitulado “Les poètes de sept ans”, escrito aos dezessete anos. Dizia ele, a meio do poema:

L’eté

Surtout, vaincu, stupide, il était entêté

À se renfermer dans la fraicheur des latrines.

Havia, muito, essa “fraicheur” (*) no cambrone daquele quintal da rua da União…  

O quintal, porém, tinha outros atrativos. Primeiro, num canto da varanda da sala de jantar, a grande talha de barro, refrescadora da água, que se bebia pelo “coco”, vasilha feita do endocárpio do fruto do mesmo nome e com bonito cabo torneado; havia, no centro do quintal o coradouro, “quaradouro”, como dizíamos, magnífico quaradouro, com as suas folhas de zinco ondulado; em torno, ao longo das varandas e do paredão da casa das Lins, ao fundo, dissimulando o galinheiro, também magnífico (um senhor galinheiro!), e o cambrone, os canteiros de flores singelas, hortaliças, arbustos, medicinais de preferência (sabugueiro, malva, etc.). Minha avó estimulava as minhas veleidades de hortelão: “Plante estes talinhos de bredo, que quando eles derem folha eu lhe compro”. E eu plantava e ela comprava o bredo, e com esse dinheiro comprava eu flecha e papel de seda para fabricar os meus papagaios… Essa atividade não me fez agricultor nem negociante, mas as horas que eu passava no quintal eram de treino para a poesia. Na rua, com os meninos da minha idade eu brincava ginasticamente, turbulentamente; no quintal sonhava na intimidade de mim mesmo. Aquele quintal era o meu pequeno mundo dentro do grande mundo da vida.

[1965]

…………………………………

1) Manuel Bandeira, in “Andorinha, Andorinha”. Seleção e coordenação de textos (inéditos em livro) por Carlos Drummond de Andrade, Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 1966.

2) Pintura: Pedro Weingärtner (1853 – 1929), “Fundo de quintal com menina (Bento Gonçalves)”, óleo sobre tela, 16 x 25 cm, coleção particular

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(*) frescura, aragem fresca

Redação

2 Comentários

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  1. “Vamos viver de brisa, Anarina!”

    No tempo do Bandeira era realmente tempo de quintais em que os meninos podiam brincar soltos nas ruas tardes inteiras. Um mundo que se foi. Eh da vida.

    Linda pintura escolhida para ilustrar o delicioso texto de Manuel Bandeira.

    [video:https://youtu.be/l9s1USb64lo%5D

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