Qual tempo, por Maíra Vasconcelos

Qual tempo, por Maíra Vasconcelos

A mulher tem no corpo o sangue pisado. Depois, quando um pouco da mulher se esvai, é o sangue pisado que para de fruir, o sangue deixa de sair devagar e seca um pouco daquilo que era nosso choque com o mundo. No sangue, a proteção e a unicidade. Essa diferença fria e palpitante do ser: quem é você se não tem na vida do corpo o sangue pisado? O outro chegando para atiçar a diferença, seja bem-vindo, muito prazer. Amanhã nos deitamos mulheres com sangue ou sem sangue? Dois sangues juntos? É, juntas também pode. Minha vizinha disse que começou a ter mais sangue agora, depois dos quarenta. Vixi, mas que pena, eu disse, fiquei assim com dó para disfarçar o temor.

Será que toda mulher entende seu sangue? O sinal da vida. O sangue pisado que interfere na disposição absoluta do corpo frente aos dias – o dia hoje está nubladinho da silva, ai, que tempo delícia. E já tem mulher olhando o sangue de acordo com a lua e essas envergaduras todas, isso que é conhecimento do sangue marrom clarinho com o tempo ao redor.

E assim a capacidade do nascer e morrer, tudo junto. Ter filho é morrer um pouco e depois nascer em outra: que susto de mim mesma – construí uma personagem que preferiu não morrer e nascer de filho, esperou a grande morte natural na velhidão e padeceu quase dez vidas diferentes, gargalhando e chorando na escolha longe do tempo. Qual tempo? Ter filho é morrer um pouco e depois nascer em outra, talvez, uma mulher agradável. O nascer da mulher é radioso, sua morte uma coisa escondida na gaveta de madeira. A mãe que somente ri ou chora se esquece do filho. Filho filho filho, o Senhor soberbo acredita piamente em cada filho porque não cuida de nenhum – alguém já viu homem que não é pai cuidar de filho?, somente no século XXI, e Ele não é deste século.

Hoje escrevo a olhar no espelho o sangue pisado que dá gemido, que faz a carne ser trêmula e variante – ai, ai, acordei tão violeta, se tivesse mais terra nas mãos me plantaria na janela o dia inteirinho. E se te queres rígida e indolente é só treinar, assim vais olhar o mundo igual a um indivíduo sem pendências e livre livre. Um alívio só, fica tudo levinho. Como isso é feliz, minimizar o que se é. Mas depois passa, o sangue volta.

A mulher cheia de sangue pisado pode variar igual fruto de árvore: vai madurando, muda de cor, cai, depois levanta toda de novo porque a terra ajuda. O sangue pisado dá essa variante 360 graus, ida e volta, volta e ida. Tontura que não mede esforços no corpo sabedor da arrogância do útero.

Carregue teu sangue antes de carregar um filho, senão o filho cai e fica ruim igual fruto fora de época. Mãe-de-todas-as-coisas, essa afirmação pode ser uma ficção ou a própria voz da alma. Depois a mãe pode ir embora e continuar a vida na liberdade, daí a loucura plena. Podendo estar e depois escapar desaparecer, igualzinho o sangue pisado feito de ciclos. A mulher que conhece o sangue pisado conversa assim com suas alternâncias, de modo razoável e lúcido demais, como se tudo isso fosse banal.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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