Sou um revisor de letras mortas, por Walfrido Vianna

EU SOU UM REVISOR DE LETRAS MORTAS

Walfrido Vianna

Eu sou um revisor de letras mortas. Tenho sido e durante muito tempo ainda serei (talvez) um revisor de letras mortas. Quem dedica mais da metade útil do seu dia a zelar por artigos agora antigos, dispositivos sem mais valia, caputs ápodes em falecidas normas, é um revisor de letras mortas.

Um dia, estando a pesquisar a origem do meu nome, descobri: “Walfrido, do teutônico, o que dá a paz, o que vela os mortos, o que guarda os túmulos”. E isso, até há pouco, fez para mim sentido nenhum. Mas neste momento bem compreendo, evidente e óbvio como um girassol ao sol, que agora sou como Anúbis, o deus egípcio guardião das tumbas — que agora eu sou um revisor de letras mortas. Ah, com que zelo, com que cuidado, nos últimos anos pus-me a lavar, assear, higienizar, varrer, ensaboar, despoluir, espanar, escovar, esfregar, desempoar, desencardir, desenxovalhar, desenodoar, abluir, desinfetar, esterilizar, assepsiar, sanear, aclarar, desanuviar, desenevoar enunciados. 

Separava o joio do artigo, o cisco do inciso, a úsnea da alínea. Desenfarruscava parágrafos. E purificava dispositivos outros, como que a redimi-los de algum pecado ou de algo que lhes fosse nocivo à sua carne de legitimidade.

Mas agora eu sou um revisor de letras mortas. Como o anatomista que rearranja os tecidos num corpo sem vida, ou como sabe as vísceras num morto o legista. A alguns, confesso, eu os nutria com maior diligência. Pareciam-me mais caros que outros, muito embora sempre os tenha julgado como um pai que igualmente a seus filhos julga — ainda que em verdade deles nenhum tenha nascido de mim. Mas eram como se fossem. Ah, que lindeza este: “LVII – Ninguém será considerado culpado sem o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”! E este então, que mimo: “X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente da sua violação”! E que belezura também: “LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”!

Mas o país que eu conhecia parece estar se desvanecendo. A Justiça fechou o expediente e está a meio-pau. E o que antes era Direito, na democrática normalidade, agora é fé, convicção, seita. Ou a mais obscena moralidade. Eu sou um guardião de letras mortas.

Walfrido Vianna é professor, escritor, bacharel em Direito pela USP e revisor da editora do Senado Federal.

Redação

8 Comentários

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  1. Letras mais do que mortas

    Texto excepcional Walfrido. Mas você esqueceu umas letras mais do que mortas no Brasil atual: “todo poder emana do povo”. Será que algum dia elas voltarão a ser lembradas por aqui? Como bom revisor rabisque por favor na lateral de alguma página em ouro para que não desapareçam de vez.

  2. Parabéns pelo texto. Somos

    Parabéns pelo texto. Somos “animais raros” nessa selva midiática-(in)justiceira-de-convicções-de-pé-de-página, tudo sob os auspícios dos “guardiães infernais” que, sabem as lesmas, serão devorados pela História, mesmo que soframos enquanto isto.

  3. .jaz, a letra da lei

    Um belo epitáfio para a carta magna que acaba de passar desta para…melhor? Bateu as botas, a cassuleta, vestiu o paletó de madeira.

    O que se procura agora é quem tenha a coragem de assumir o assassinato, pois resta claro que se trata de morte matada e não de morte morrida.

    Acusamos a oposição de serem, se não o mandante, o executor do crime, mas ela logo tira o seu da reta.

    Então passamos a acusar o Poder Midiatico como mandante efetivo, mas este se esquiva dizendo-se apenas terem relatado o assassinato sem nele ter interferido.

    O guarda, – poder judiciário – responsável pela segurança da jovem donzela é então apontado como quem a violentou em praça pública e depois a matou, mas este cinicamente não só não assume o estupro, como afirma que a jovem vive e passa muito bem ao contrário do que vemos e que nos saltam aos olhos. Diz ainda que a mesma está em pleno vigor de seus vinte e poucos anos e que nada nela foi violado, enquanto passeia sustentando-a diante de nossos olhos, como um Quincas Berro D’agua levado pelos amigos a passer depois de morto.

    Quem é que vai pagar por isso?  

    Quem sabe nós, o povo, não sabendo mais a quem recorrer e a quem acusar pelo feito, venhamos a ser acusados pelos seus algozes de sermos os responsáveis pelos malfeitos a ela causados.

    Faz sentido!

  4. Senhor Walfrido Vianna, cuidado!

    Além de matar as letras, transformar leis em letras mortas, o que essa turma quer mesmo é acabar com elas, e – obviamente, se eles acharem útil  –  sumir com quem delas toma conta.

     

     

  5. Revisor de letras mortas

    Comovente e e um tristeza abissal. Deixo-me lágrimas nos olhos e o coração apertado.

    Estamos pranteando a democracia e este é o texto mais belo que alguém poderia ler ao pé do túmulo.

  6. Sou um revisor de letras mortas…

     Já dissera Olavo Bilac em seu poema Barroco  Profissão de Fé:

    “…Invejo o ourives quando escrevo…”.

    Hoje, certamente, ele diria Invejo o Walfrido quando escrevo. E prosseguiria:

    “…Caia eu também, sem esperança, 
    Porém tranqüilo,
    Inda, ao cair, vibrando a lança, 
    Não, Em prol do Estilo, mas da   DEMOCRACIA !!!

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