Traduzindo o Pequeno Príncipe, por Denise Bottmann

Sugestão de Gilberto Cruvinel

no Suplemento Pernambuco

Traduzindo o Pequeno Príncipe

por Denise Bottmann

Ilustração: Janio Santos

Aí uma editora me propõe traduzir Le Petit Prince, de Saint-Exupéry. A proposta me parece meio inusitada. O pequeno príncipe?! Aquele livro das misses? Aquele clássico infantil doce e açucarado, com bichinhos e estrelinhas? Aquilo que, cinquenta anos atrás, a gente lia aos dez anos de idade? “Mas por que não?”, pergunto a mim mesma. “Pode ser um desafio ao teu próprio esnobismo intelectual, Denise, vai lá, deixa de frescura, tenta a mão”. E assim me armo de coragem e topo a proposta.

Bom, aí toca a reler — na verdade, leitura de tradução é muito diferente de leitura-leitura; então, toca a ler. O difícil é a gente trafegar entre camadas e camadas de clichês, de citações consagradas, de auras iridescentes em torno da obra. Como sou da convicção de que a melhor maneira de lidar com qualquer sedimentação, até para conseguir desincrustá-la um pouco, é explorá-la a fundo, entrego-me à tarefa na maior animação.

E como fazer junto é mais gostoso — e muito mais fecundo — do que fazer sozinha, crio no Facebook um “Clube dos Amigos do Pequeno Príncipe”, pois não existe isso do “traduzir sozinho” — é uma falácia essa imagem da tradução como ofício solitário. Você está perpetuamente falando, conversando, dialogando: com a obra, com a fortuna crítica da obra, com outras traduções da obra (quando existem), com os artigos, análises e estudos da obra, com seu repertório mental e até, e muito, com dicionários. Então é fenomenal quando você pode conversar com outros tradutores e/ou conhecedores da obra e comentar os mais variados aspectos. Surgem coisas fantásticas, materiais maravilhosos, um fervilhamento de questões. E a aparente singeleza do Pequeno príncipe, você vem a descobrir, é danada de enganosa e engenhosa.

Mas vamos por partes. Le Petit Prince ingressou em domínio público a partir de 01 de janeiro de 2015. Foi escrito e publicado em 1943, nos EUA (onde Saint-Exupéry havia se refugiado da guerra na Europa), em francês, claro, e quase em simultâneo em inglês, em tradução feita por Katherine Woods, a esposa do editor que encomendara a obra a S-E. Vale notar ainda que o livro é permeado, do começo ao fim, de elementos biográficos do próprio S.-E. 

No Brasil, O pequeno príncipe foi publicado em 1954 (alguns dizem 1952, mas não encontrei confirmação), em tradução feita pelo monge beneditino Dom Marcos Barbosa, publicada pela editora Agir. Essa tradução teve uma divulgação fantástica, impressionante, sendo a única durante sessenta anos — apenas em 2013, a mesma Agir publica nova tradução, e a partir de 2015, devido ao ingresso da obra em domínio público, temos uma miniavalanche de novas traduções.

Acontece que a tradução de Dom Marcos se consagrou. Algumas falas dos personagens se cristalizaram de tal forma no português brasileiro que quase adquiriram autonomia por direito próprio em nosso imaginário. Um dos exemplos mais claros é aquela frase: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” (em francês, “Tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé”).

Quer dizer, é um pepino danado, que nem vem ao caso para o leitor. É um embate, uma refrega entre o autor e o tradutor, entre o francês e o português, pois apprivoiser pouco ou nada tem a ver com “cativar”, não tem a acepção de prender em cativeiro e, sobretudo, não tem a acepção de encantar, conquistar, seduzir que há em “cativar”.

E então o que você faz? Imagina só trombar de frente com sessenta anos de edificação sobre a ética da responsabilidade permeada desse cativamento!
Mas vai usar “domesticar”, que é o sentido mais próprio de apprivoiser? Ou “domar”? Em termos afetivos, transposto para a esfera humana, apprivoiser tem no máximo o sentido de acalmar, aquietar, sossegar, amansar: algum petiz meio levado e travesso que depois, alguma hora, vai s’apprivoiser.

Ainda por cima, essa frase, que muitos tomam como a própria síntese do livro (eu, pessoalmente, considero-a no mínimo como a grande moral da história), vem como coroamento de um longo diálogo entre a raposa — outro pepino! — e o rapazinho, no qual o termo é usado várias vezes e explorado conceitualmente na narrativa.
Suspiro.

Mas o que mais espanta, analisando a estrutura simbólica do livro, é o predomínio maciço, se não exclusivo, de figuras masculinas em torno de uma única figura feminina. Isto é, no francês. Vejamos os protagonistas e principais coadjuvantes: de um lado, temos a rosa (la rose); de outro lado, o pequeno príncipe, o carneiro (le mouton), a raposa (le renard), a serpente (le serpent) e, claro, o aviador-narrador. (Diga-se de passagem que mesmo os figurantes, os protótipos do “mundo dos adultos”, são todos do sexo masculino.) Pois afinal o mote todo da coisa é essa ideia de proteger a pobre rosa, tão mimosa e tão faceira, tão desarmada contra o mundo, que o pequeno príncipe abandonou à sua sorte e à qual ele retornará, após a lição de moral que lhe foi ministrada pelo raposo, agora levando um carneiro e recorrendo aos préstimos do serpento.

Apenas lendo em francês é que se sente essa espécie de armação, de construção dos elementos do mundo no drama do pequeno príncipe e sua amada desprotegida.

Morro de procurar alguma maneira de transpor esse travejamento simbólico-estrutural para nossa língua. “O raposinho”, eu usaria, sem problemas; para le serpent boa, não me pejaria muito em usar “o píton”; agora, e le serpent que propicia o retorno do pequeno príncipe à sua amada rosa? Bato-me, debato-me, rendo-me às circunstâncias — pois existe outra coisa em tradução que a gente nunca pode perder de vista: o chamado “critério de frequência”, a frequência relativa do uso dos termos numa e noutra língua. Há quem pense que tradutor não vive num constante entre a cruz e a espada! Resultado: o mundo do pequeno príncipe em português vai continuar a ser indiferenciado, sem a clara marcação do original na relação entre mundo externo masculino e interioridade doméstica feminina, entre o elemento masculino dominante, capaz de dar conselhos de vida e de verdade, capaz de prover meios e proteção, e o elemento feminino que enfeita e alegra o lar, mas ao qual não se deve dar ouvidos. Em português, se tanto, o predomínio, pelo menos numérico, será feminino: a rosa, a raposa, a serpente.

Outra coisa de dar um banho em qualquer tradutor é o problema do mouton e do bélier. Fica meio longo expor o drama aqui, mas, creiam-me, é de fato um drama. As traduções variam muito: carneiro x bode; ovelha x carneiro; cordeiro x carneiro.

Outro elemento importante, difícil para a tradução, é o uso dos pronomes de tratamento, tu e vous, que constitui uma novela à parte. Se eu adotar o uso de você, senhor, senhorita, pequeninos elementos se perderão: por exemplo, o uso de s’il vous plaît na mesma frase em que se trata o interlocutor por tu, e algumas outras sutis ocorrências.

E a dificuldade maior, a meu ver, é manter o rigor gramatical praticamente constante ao longo da narrativa — não é à toa que Le petit prince é até hoje usado nos primeiros anos de alfabetização no ensino francês —, numa tradução que consiga manter a correção e a escorreição. Muito difícil!

Em paralelo com essa grande dificuldade, vem o nível do registro do discurso. Ele não é trivial nem baixo nem infantil nem simplista. É límpido, médio, às vezes quase alto, fluente e elaborado. E infantilizar a fala, coloquializar o que é fluente, mas não propriamente coloquial, não me anima muito. Fazer o quê, então? Mais suspiros. E aí, nas vezes em que me sinto numa encruzilhada, acabo preferindo a dita norma culta.

E as repetições! Nem digo de palavras, mas de orações ou partes de orações inteiras! Essa cantilena na qual às vezes se ouve uma ressonância de intenções didáticas, mas que cria ritmo e arma o estilo… Como passar essa sensação de embalo?

E o enquadramento da narrativa? É de arrancar os cabelos. Pois o autor reserva o uso do passé simple para a parte em que o narrador relembra seu contato com o pequeno príncipe e destina o passé composé para o emolduramento da narração, no começo e no fim da obra, bem como algumas interpolações dirigindo-se aos leitores. Quem conhece um poucochinho que seja do francês (ou mesmo do italiano), vai entender o problema. A questão é que não posso, em sã consciência, aplainar essa cuidadosa elaboração, que é estrutural mesmo, usando nosso pretérito perfeito indiferenciadamente para o passé simple, com toda sua carga, não meramente gramatical, mas semântica e estilística até, e o passé composé. Pois é, em sã consciência não posso. Tenho alternativa? Não, não que eu vislumbre, ao menos. Compenso esse não-poder-em-sã-consciência simplesmente arrancando os cabelos. (Mas tentei uma leve compensação, se bem que fraquinha, fraquinha; outra hora eu conto.)

Passo dias, noites, fins de semana lendo outras traduções, em português, em inglês, em italiano, em espanhol. Vejo que não são problemas exclusivos meus; vejo que cada qual tentou resolver da maneira que pôde ou considerou melhor. Passo dias, noites, fins de semana conversando no Clube dos Amigos do Pequeno Príncipe. Tomo coragem, mais uma vez, e me lanço à tradução. Mais uma infinidade de suspiros, mas pelo menos, sei lá, a gente sente uma pontinha de satisfação por poder parar, pensar e entender a razão por que está fazendo assim ou assado.

Terminada a tradução, concluo: “Denise, és uma boba mesmo! O texto é elaboradíssimo, e ficavas aí achando que era um livrinho meloso e datado! Bem feito o peteleco no teu preconceito!” (Mas logo consolo a mim mesma: “Bom, tão boba afinal não foste, pois aprendeste mais uma”.)

Zé Perri, meu pedido de desculpas pelo juízo precipitado e meus cumprimentos pelo livro. Muito bonito, de fato.

Quem se interessar pelas longas conversas tradutórias, pode conhecer o Clube dos Amigos do Pequeno Príncipe, aqui:  https://www.facebook.com/groups/1534203010164458/.

 

Redação

8 Comentários

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  1. Fico feliz em saber conseguiu

    Fico feliz em saber conseguiu perder o preconceito “de livro de misses”.  A estória é genial e a narrativa fantastica.

    É um livro para ser lido diversas vezes ao longo da vida. E a cada momento ter a capacidade de fazer a releitura com outros olhos.

    “Amar não é olhar um para o outro, é olhar juntos na mesma direção.” – como interpretar isso aos 10 anos? e aos 20? aos 30? aos 60? Quando saber diferenciar amor de paixão? Quando descobrir que o “seu” amor é algo que deve acrescentar algo em sua vida? Quando será o momento de olhar para trás e dizer: valeu a pena… 

    KKK desculpem, mas adoro o livro… 

    Aliás, esse fim de semana fui ver o filme em “3D”. Meio fraquinho, uma pena; para quem leu o livro até é interessante ver como inseriram a estória em nosso atual e intenso modo de viver, quase insano. Mas não recomendo…

     

  2. Sugestao de traduçao

    Use o mais que perfeito para traduzir o passé simple. Tem o mesmo tom “super formal”, de narrativa no sentido de Benveniste (que opôs a narrativa à história), e o sentido de passado anterior a outro passado, que há em Português mas nao no passé simple do francês, já nao está mais vivo no conhecimento de ninguém (na verdade o próprio mais que perfeito nao é mais quase usado, exatamente como o passé simple). Acho que fica bom. 

  3. tradução do pequeno principe

    Vou confessar, comprei o livro pela capa. Li O Pequeno Principe várias vezes e queria dar um exemplar para minha filha de onze anos. Então fomos à livraria e ela escolheu o de capa almofadada. Quando fomos ler tive a maior decepção da minha vida com este livro. A raposa deixou de ser CATIVADA para ser DOMESTICADA. Esta troca ingênua de palavras fez uma boa parte de tudo que expliquei a minha filha sobre O Pequeno Principe ir pelos ares. Simplesmente desnecessária a troca de palavras, alias, totalmente desnecessária, infundada e que tirou o verdadeiro sentido do que é conquistar um amigo,

    DECEPCIONANTE!!!!!

    1. Simone,

      Faço minhas suas palavras. Não só é decepcionante como errado.  O sentido dado por Saint-Exupery é muito mais de cativar do que domesticar.  Aliás,  pensar que Exupéry poderia estar usando com o sentido reles de domesticar, é não compreender o fino gosto e sensibilidade deste autor.

  4. Devagar com o andor Denise

    Todos sabemos que o Francês é uma língua difícil, aliás, está entre os dez idiomas mais dificeis do mundo. Por isto mesmo temos que ter muita humildade ao lidar com ele, e tentar entender porque um tradutor usou esta ou aquela palavra em sua tradução.

    Oo caso da tradução de “apprivoiser” é um exemplo onde se pode perder facilmente.  Em Inglês há uma tradução que usa a palavra “tame” (domesticar) ao passo que a tradução portuguesa de Dom Marcos Barbosa é usada a palavra “cativar”, muito mais signficativa e bonita.

    Denise propõe traduzir pela palavra “domesticar¨ .  Pois aí está um grande equívoco, pois “apprivoiser” também tem um sentido figurado em Francês, muito próximo de nosso ” cativar” . Em Francês “apprivoiser” pode ser usado com o sentido de seduzir progressivamente. Vejam abaixo uma frase do próprio Saint-Exupéry, de 1928, onde ele usa com este sentido.

    ”  Elle ne pense pas toujours à l’amour : elle n’a pas le temps! Elle se souvient des premiers jours de ses fiançailles. Elle sourit : Herlin découvre soudain qu’il est amoureux (sans doute l’avait-il oublié?). Il veut lui parler, l’apprivoiser, la conquérir : …
    SAINT-EXUPÉRY, Courrier Sud, 1928, p. 23.” 

    Enfim, continuemos a dizer que “somos responsáveis por quem cativamos” .  Bonito e correto, e não tem nada de meloso como muita gente grande diz.

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