“A viagem foi longa para chegar aqui”: o legado de Sidney Poitier, por Rômulo Moreira

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Por sua militância em favor dos direitos civis recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade, oferecida pelo presidente Barack Obama, em 2009.

“A viagem foi longa para chegar aqui”: o legado de Sidney Poitier

por Rômulo de Andrade Moreira[1]

Ontem, 07, morreu Sidney Poitier, aos 94 anos, o primeiro homem negro a vencer o Oscar de melhor ator, em 1963, por seu trabalho em “Uma Voz nas Sombras”, e um dos últimos astros vivos da era de ouro de Hollywood, com uma carreira de mais de sete décadas.[2]

Ao ganhar a estatueta – numa época em que os americanos ainda viviam sob leis que estabeleciam um regime absurdo e intolerante de segregação racial, e também em um tempo em que Hollywood não era exatamente (e não era mesmo!) um modelo de pluralidade e de diversidade – ficou célebre a sua frase, dita emocionada: “A viagem foi longa para chegar aqui.”

Antes do Oscar, Sidney Poitier já havia se destacado por ter sido o primeiro negro a ser indicado à categoria de melhor ator, pelo longa “Acorrentados”, de 1958.[3]

Em 2002, ele foi homenageado mais uma vez pela Academia, recebendo o Oscar honorário pelo conjunto da obra, por “seus trabalhos extraordinários e sua presença única nas telas, e por representar a indústria com dignidade, estilo e inteligência”; e em 2014 voltaria mais uma vez para apresentar o prêmio de melhor diretor, quando foi aplaudido de pé pelos presentes.

Além do Oscar, ele também ganhou outros prêmios, pelo conjunto da obra, como um BAFTA Film Awards, um troféu do Instituto Americano de Cinema, um SAG Awards e o Cecil B. DeMille, oferecido pelo Globo de Ouro.

Poitier nasceu em Miami, no estado americano da Flórida, em 20 de fevereiro de 1927, e logo depois foi levado pelos pais para Bahamas, onde residia a família.[4] Ele teve uma infância simples nas Bahamas e quando era adolescente alistou-se no Exército para fugir da pobreza. Depois trabalhou como lavador de pratos, até ser escolhido numa seleção para atores (onde teria se saído mal, como revelaria mais tarde). Ele fez seu primeiro filme, “O Ódio É Cego”, com 23 anos.

Com dupla nacionalidade – americana e bahamense – Poitier pode ser considerado e reconhecido como um ícone do cinema e um símbolo da luta contra o racismo, pois desde cedo enfrentou o preconceito e a pobreza, tornando-se, afinal, um dos primeiros atores negros a ser reconhecido e aceito como protagonista pelo grande público.

Naquela época, como se sabe, a “segregação formal e informal, o linchamento e a violência policial, a discriminação no emprego, na educação e nos serviços públicos, a falta de direitos políticos, a pobreza extrema – tudo isso caracterizava a vida de negros nos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial. Eles, porém, não foram vítimas passivas. Importantes organizações políticas negras haviam atuado na primeira metade do século, mas as condições dos anos 1950 e 1960 propiciaram o estouro de um movimento em massa.”[5]

Especialmente marcante foi a sua personagem em “Adivinhe Quem Vem Para Jantar”, de Stanley Kramer, no qual representou um rapaz que namorava uma jovem burguesa branca; ela o apresenta aos pais, um casal de intelectuais, supostamente tolerantes e progressistas, mas que se mostram racistas ao saberem do noivado da filha com um jovem negro. Este filme retrata com clareza o racismo da época e, aliás, de sempre. Ainda nos anos 60, faria um outro filme, também denunciando o racismo: “No Calor da Noite”, de Norman Jewison, vencedor de cinco estatuetas do Oscar.[6]

Também nessa década, destacam-se os filmes “A Maior História de Todos os Tempos”, “Uma Vida em Suspense”, “Quando Só o Coração Vê” e “Ao Mestre, com Carinho”. Já na década seguinte, nos anos 1970, Poitier participaria de “Noite sem Fim”, “O Estranho John Kane”, “A Organização” e “Conspiração Violenta”.

Em uma de suas autobiografias, “This Life”, Poitier revelou que “a indústria cinematográfica ainda não estava pronta para elevar mais de uma personalidade das minorias à categoria de estrela. Na época – disse ele – eu encarnava as esperanças de todo um povo. Não tinha controle sobre o conteúdo dos filmes, mas podia recusar um papel, o que fiz muitas vezes.”[7]

Em uma outra autobiografia, “Uma Vida Muito Além das Expectativas”, Poitier falou sobre a ocasião em que uma vidente previu que ele cresceria e viajaria “por quase todos os cantos do mundo, caminharia ao lado de reis, e seria rico e famoso.”[8]

Ele ainda se lançou como cineasta, dirigindo e atuando em “Um por Deus, Outro pelo Diabo”, “Dezembro Ardente”, “Aconteceu num Sábado”, “Aconteceu Outra Vez” e “Os Espertalhões”.

Por sua militância em favor dos direitos civis recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade, oferecida pelo presidente Barack Obama, em 2009. Ele foi também embaixador das Bahamas no Japão, entre os anos de 1997 e 2007.

Poitier foi casado por 45 anos com Joanna Shimkus, sua segunda mulher, com quem teve seis filhos, incluindo a atriz Sydney Tamiia Poitier.

Vê-se, portanto, que a viagem de Poitier, posto que longa, valeu a pena!

Assim que se faz…


[1] Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.

[2] Nesse filme, dirigido por Ralph Nelson, Poitier viveu um “faz-tudo” que ajuda um grupo de freiras que quer construir uma capela no meio do deserto. Há 25 anos antes, apenas a atriz negra Hattie McDaniel havia ganho uma estatueta pela atuação em “…E o Vento Levou”.

[3] Pelos dois filmes – “Acorrentados” e “Uma Voz nas Sombras” – Poitier ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Berlim e, entre ambos os trabalhos, participou dos filmes “Porgy & Bess” (um musical), “O Sol Tornará a Brilhar”, “Paris Vive à Noite” e “Tormentos D’Alma”.

[4] O ator era filho de comerciantes de tomates das Bahamas, que com frequência faziam o caminho entre o Caribe e a Flórida, e foi exatamente em uma dessas idas e vindas que Poitier nasceu, prematuramente.

[5] PURDY, Sean. História dos Estados Unidos. São Paulo: Editora Contexto, 2011, p. 243.

[6] Nesse filme, Philip Colbert (Jack Teter), o principal empresário de Sparta, uma cidade do Mississipi, é morto, e o policial Sam Wood (Warren Oates) tenta achar o culpado. Ao ver na estação de trem um negro bem vestido, Virgil Tibbs (Sidney Poitier), ele é preso como suspeito sem chance de argumentar. Quando Sam vê que Tibbs tinha uma incomum quantidade de dinheiro para um negro de Sparta, o policial fica certo que encontrou o assassino. Mas o xerife Bill Gillespie (Rod Steiger) descobre, para seu espanto e constrangimento, que Virgil é um detetive da polícia da Filadélfia, que visitava sua família. Ironicamente Virgil é um expert em homicídios e recebe recebe ordens do seu superior para ajudar no caso. Isto o desagrada e também a Gillespie, que não gosta de ter um policial negro ajudando nas investigações. Para deixar mais tensa a situação Leslie Colbert (Lee Grant), a viúva da vitima, vê a ineficiência da polícia de Sparta e exige a presença de Virgil. Gillespie odeia a idéia, mas há uma grande pressão para o caso ser solucionado, assim aceita a colaboração de Virgil. Aos poucos vai surgindo um respeito entre eles. Virgil reconhece que Gillespieé uma pessoa bem decente, que está tentando fazer o melhor possível, e Gillespie passa a admirar Virgil por sua experiência e profissionalismo. Mas um detetive negro comandar uma investigação em uma região muita racista pode não dar certo. (Disponível em: https://www.adorocinema.com/filmes/filme-42379/. Acesso em 07 de janeiro de 2022).

[7] POITIER, Sidney. “This Life”. Editora Ballantine, 1980.

[8] Esta obra foi publicada no Brasil, em 2010, pela Editora Lafonte. A ideia de escrevê-la, segundo o ator, surgiu quando a sua bisneta – Ayele – nasceu, representando a sexta geração da família Poitier. Ele, então, resolveu presenteá-la com um relato sobre a sua própria história, resgatando lembranças e fatos marcantes de sua vida, suas decepções, conquistas, descobertas, amores, desafios, carreira, família.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

1 Comentário

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  1. Enfim, um vencedor que faz história.
    Mal ou bem, USA ainda é o país das oportunidades.
    Seria pouco provável que apesar de toda luta ele tivesse sucesso em outro país.

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