Daniel Costa
Daniel Costa é graduado em História pela Unifesp, instituição onde atualmente desenvolve pesquisa de mestrado. Ainda integra o G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga onde além de compositor, desenvolve pesquisas relacionadas a História do samba de São Paulo e temas ligados a cultura popular participando das atividades e organização do centro de documentação da entidade (CedocK - Centro de Documentação e Memória - José e Deolinda Madre). Possui especializações na área de museologia (IBRAM), arquivologia (Arquivo Nacional), Educação Patrimonial (IPHAN) e História Oral (FGV/CPDOC).
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É a velha guarda seu moço!, por Daniel Costa

Talismã mudou-se para São Paulo em 1967, tendo colaborado como compositor e carnavalesco em diversas escolas da cidade

Talismã – Divulgação Selo Sesc

É a velha guarda seu moço!

por Daniel Costa

A Biografia do Samba é linda
Não vou narrar, porque o tempo
Não me favorece
Biografia do samba. Talismã e Tabu

Se em 1969 os compositores Talismã e Tabu alertavam sobre a dificuldade em narrar a história do samba, passado mais de cinquenta anos a tarefa tornou-se ainda mais complexa. Se fosse falar apenas daqueles que deixaram o nome marcado no carnaval paulistano enquanto compositores a lista seria interminável. Citando apenas alguns desses personagens lembramos facilmente de nomes como Osvaldinho da Cuíca, Paulistinha, Jangada, Armando da Mangueira, Zeca da Casa Verde, Geraldo Filme, Grego, B. Lobo, Zé Carlinhos, Nadão, Ideval Anselmo, Zelão, Tabu e o nosso personagem principal que falaremos adiante.

Esses mestres na arte de contar as mais variadas histórias através de grandes sambas, trouxeram para o público que acompanhou desfiles memoráveis na Avenida Tiradentes ou no Sambódromo enredos inesquecíveis, que além de reafirmar nossa ancestralidade, trouxe para o público personagens, adaptações de clássicos da literatura, além  de feitos e fatos memoráveis da nossa história. Foi assim que a Nenê de Vila Matilde cantou Casa grande e senzala, Tronco do Ipê, e Palmares, raiz da liberdade. O Vai-Vai colocou na rua sambas memoráveis como Solano Trindade, o menino de Recife, Orun Ayê – o eterno amanhecer, Água de Cheiro (Xerere), Banzai! Vai-Vai e eu também sou imortal, enredo de 2005 reeditado no carnaval desse ano e que garantiu a vitória da alvinegra do Bixiga no Grupo de Acesso garantindo a volta da escola a elite do samba.

O Camisa Verde e Branco, escola da Barra Funda marcou o carnaval com Sonho colorido de um pintor, Atlântida e suas chanchadas, Narainã, a alvorada dos pássaros, considerado o samba enredo do século e Convite para amar. Por sua vez a Unidos do Peruche, colocou na passarela sambas memoráveis como O rei café, Água cristalina e o histórico Os sete tronos dos divinos orixás. Não podemos esquecer ainda a Rosas de Ouro e os memoráveis desfiles em que a comunidade entoou pérolas como Sete cidades encantadas, Ataulfo Alves, o poeta de Miraí e Salamanca do Jarau. Por fim não deixemos de lado a Leandro de Itaquera, e o seu Babalotim – A História dos afoxés defendida por Eliana de Lima e a fundante Lavapés com Bahia de todos os deuses.

O historiador e pesquisador Luiz Antônio Simas em trabalho com o compositor Nei Lopes definiram o samba enredo, como uma “modalidade de samba que consiste em letra e melodia criadas a partir do resumo do tema escolhido como enredo de uma escola de samba”. Ainda segundo a dupla, “ os primeiros sambas cantados pelas escolas em suas apresentações carnavalescas eram de livre criação, falavam do ambiente do próprio samba, da realidade dos sambistas”.

Já para o escritor e jornalista Alberto Mussa, o samba enredo pode ser definido como “o único gênero musical épico, não lírico, genuinamente brasileiro, nascido e desenvolvido sem influência de qualquer outra modalidade épica, literária ou musical”.

Um dos responsáveis pela transformação do samba enredo em São Paulo, foi um carioca nascido no bairro da Piedade, Octávio da Silva, que passaria para a história do samba como Talismã, uma das figuras emblemáticas que atuou no processo de transição dos cordões carnavalescos para escolas de samba na cidade de São Paulo. Violonista, cantor, compositor, artista plástico e carnavalesco, Talismã ajudou o Camisa Verde e Branco a se tornar uma das grandes agremiações do carnaval paulistano, passou por diversas escolas e veio a se tornar uma referência na folia da então terra da garoa. É para homenagear esse legado e essa obra que o Selo Sesc oferece ao público o álbum Talismã: Negro Maravilhoso!

Convidado por Inocêncio Tobias, presidente do Camisa Verde e Branco, Talismã mudou-se para São Paulo em 1967, onde viveu o resto de sua vida, tendo colaborado como compositor e carnavalesco em diversas escolas da cidade, entre elas, a Rosas de Ouro, o Morro da Casa Verde e a Unidos de Vila Maria, além do Camisa, escola da qual é autor do samba-hino Sou Verde e Branco (parceria com Jordão), vencedor do Festival de Samba de Quadra (1974). No Camisa, logo que chegou à cidade, venceu o samba enredo de 1968 e de 1969, com Biografia do Samba, levou o então cordão Camisa Verde e Branco ao título. Em 1971, venceu novamente a disputa no cordão, dessa vez com Sonho colorido de um pintor (parceria com B. Lobo), gravado com sucesso por Tom Zé no álbum lançado em 1972 pela gravadora Continental. Negros maravilhosos, samba para o carnaval de 1982 é outra de suas grandes criações para a verde e branco da Barra Funda, mostrando as contribuições da população negra na cultura brasileira, o compositor não deixou de tecer críticas sociedade excludente em versos como: “Temos a pergunta. Não nos leve a mal. Por que só no tribunal de Momo. Que o negro é genial”. Na Unidos de Vila Maria compôs um poético samba que foge a todos os padrões do gênero no período, Quando chega a primavera composto para o carnaval de 1973.

Ao longo da década de 1970, Talismã ainda participou durante semanas no TBC de um espetáculo de Plínio Marcos que reunia Zeca da Casa Verde, Geraldo Filme e Toniquinho Batuqueiro. O espetáculo viajou por outras cidades, com Plínio contando, as “histórias das quebradas do mundaréu” e os sambistas mandando seu recado e sua batucada.

Em dezembro de 1976 Plínio escreveria no Folhetim, suplemento cultural da Folha de São Paulo, uma pequena crônica sobre o compositor, vejamos um trecho: “O Talismã de Rocha Miranda, Seu Mumu pros íntimos, é sem favor nenhum um dos maiores artistas populares do Brasil. Fez de tudo. Poeta de uma pureza rara, compositor de grande sensibilidade, escultor primoroso, que sempre ganha nota dez com os seus carros-alegóricos, tocador de violão, cantor, humorista e tudo mais. Como veio, nem ele sabe explicar direito (…) Quando deu por si, estava em São Paulo. Quando deu por si, já estava fazendo samba pro Camisa Verde e Branco. Foi metendo a mão. Quando o Talismã chegou em São Paulo, o forte eram os cordões. Escola de samba saía na base de muita cor, valendo fantasia de toureiro, pirata da perna de pau, jardineiro e dominó. Talismã se assustou. Pensou em ir embora. Mas não foi. Hoje está inteirinho em São Paulo.”

No disco produzido pelo Sesc a honra de entoar os sambas de Talismã coube a três grandes nomes das Velhas Guardas das escolas de samba de São Paulo: Ideval Anselmo, Zé Maria e Marco Antônio são os intérpretes por trás das releituras dos clássicos desse verdadeiro poeta do carnaval. Ideval Anselmo, nascido em Catanduva e criado em Votuporanga teve seus primeiros contatos com o carnaval através dos cinejornais, programetes que eram exibidos nos cinemas antes dos filmes, porém seria na Barra Funda onde daria seus primeiros passos, especificamente no Camisa Verde e Branco. Passou ainda por diversas escolas e se tornou o maior vencedor de concursos e de títulos de sambas enredo dos carnavais de São Paulo. Zé Maria é figura ilustre da Unidos do Peruche, da Barroca Zona Sul e de outras escolas, além de ser reconhecido como uma das grandes vozes do carnaval paulistano também ganhou destaque pela sua atuação como ator. O trio conta ainda com a voz de Marco Antônio, o cantor e compositor iniciou sua caminhada na Mocidade Alegre, como mestre-sala, detentor de um lirismo incomum, ainda é reconhecido como exímio partideiro e figura entre os fundadores da Velha Guarda da Nenê de Vila Matilde. 

Além das quadras das escolas, a obra de Talismã chegou a grandes nomes da música brasileira que entre as décadas de 1970 e 1980 fizeram suas próprias versões de sambas do compositor. Além  do citado Sonho colorido de um pintor, gravado por Tom Zé em 1972; podemos lembrar de pérolas como Mania lírica gravado por Germano Matias (“o catedrático do samba”) em 1979; e da canção Meu sexto sentido (Madrigais), lançada por Beth Carvalho também em 1979.

Talismã pode ser considerado um dos pioneiros no processo de transformação na concepção dos sambas de enredo em São Paulo, porém com o avanço da mercantilização do desfile, a entrada de atores alheios ao cotidiano das escolas e outros fatores, o desfile de São Paulo começa a sofrer novas transformações; um processo de densa pasteurização como aquele ocorrido no Rio de Janeiro, e criticado já no começo da década de 1980 pela dupla Aluísio Machado e Beto Sem Braço no clássico Bum Bum Paticumbum Prugurundum, samba que garantiu o título do carnaval carioca de 1982 a Império Serrano com crítica ácidas as super escolas de samba S.A. Alberto Mussa é quem comenta a transformação no processo criativo em torno dos sambas, “forjado por versos sofisticados e melodias criadas para emocionar, o tom épico do gênero foi substituído pelo estilo previsível e engessado das composições do carnaval de hoje”.

A dificuldade para colocar as escolas de samba na rua foi retratada também por Plínio Marcos, agora em crônica publicada no jornal Última Hora em 1975: “Não era mole botar Carnaval na rua no tempo do Mestre Zagaia. A polícia acabava com os pagodes na base do chanfralho. Mas nem por isso a turma do samba se acanhava. Só saia nos cordões nego pedra noventa, gente que não fazia careta  pra cego nem cerimônia com otário.”

Em novembro de 2022, antes do lançamento oficial do disco em homenagem a Talismã, o projeto já havia colocado seu bloco na rua com o lançamento do single, Há um nome gravado na História. Nessa versão, a música ganhou um elemento extra, sendo encerrada com uma contundente fala de Zé Maria: “A escravidão não terminou!”. Segundo Lucas Faria, produtor musical e diretor artístico do projeto em depoimento ao próprio Sesc, a frase “incidental” trazida por Zé Maria, “ressignifica o enredo, sob a clara consciência de que a lei sancionada pela Princesa Isabel entregou os negros à própria sorte. Com isso, abrem-se as portas para que Talismã e sua obra ocupem o lugar que merecem na atualidade!”. Talismã: Negro Maravilhoso!, se propõe, portanto, a ser uma homenagem ao sambista, sem abrir mão do diálogo com o nosso tempo.

Ao propor o diálogo da obra de Talismã com o presente, o Selo Sesc e os produtores do álbum prestam uma verdadeira homenagem a esse baluarte do samba, fazendo sua obra pulsar e circular, seja para as novas gerações de sambistas, ou para aqueles que foram seus contemporâneos, tirando literalmente o compositor de uma espécie de exílio involuntário, a qual muitos desses personagens são submetidos, mesmo em vida.

Um bom exemplo desse segundo exílio é aquele que mesmo involuntariamente foi imposto ao sambista e compositor Geraldo Filme que foi homenageado no início de 2022 pela Secretária Municipal de Cultura com uma estátua localizada na Barra Funda. O que poderia ser uma bela homenagem, reconhecimento do legado de uma figura que foi fundamental para o desenvolvimento do carnaval e do samba paulista se revelou como um segundo exílio para o compositor e ativista político e cultural. Com a estátua instalada na Praça David Raw, na região da Barra Funda, em um local de difícil acesso para pedestres, sem identificação, e invisível para os motoristas que passam pelo local o que temos é a imagem de um baluarte do nosso samba inviabilizado pelo progresso e pela cidade que tanto exaltou em suas letras.

Encerro esse texto com um trecho do samba Tributo à Velha Guarda, composta por Fernando Penteado, membro da Velha Guarda do Vai-Vai. Que nos próximos anos tenhamos muitos projetos como esse realizado pelo Selo Sesc em homenagem a Talismã, trazendo para o grande público a produção dessas verdadeiras referências da nossa cultura e menos homenagens protocolares que parecer querer na realidade reafirmar o apagamento dessas figuras.

São sambistas de primeira
Relicário sem igual
Essência da nossa cultura
Patrimônio nacional
Essa é a nossa Velha Guarda
A quem devemos respeitar
Graças a estes baluartes
O Samba e o mais alto patamar

Daniel Costa é historiador pela UNIFESP, compositor, pesquisador e integrante do G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga.

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