Daniel Costa
Daniel Costa é graduado em História pela Unifesp, instituição onde atualmente desenvolve pesquisa de mestrado. Ainda integra o G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga onde além de compositor, desenvolve pesquisas relacionadas a História do samba de São Paulo e temas ligados a cultura popular participando das atividades e organização do centro de documentação da entidade (CedocK - Centro de Documentação e Memória - José e Deolinda Madre). Possui especializações na área de museologia (IBRAM), arquivologia (Arquivo Nacional), Educação Patrimonial (IPHAN) e História Oral (FGV/CPDOC).
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O samba como forma de resistência, por Daniel Costa

Na última semana fomos informados sobre a possibilidade do fim das rodas do projeto Samburbano no Largo de Santa Cecília, na capital paulista

Design gráfico: Dárkon V. Roque

O samba como forma de resistência

por Daniel Costa

Para lutar pelos nossos direitos
Temos que organizar um mutirão
E abrir o nosso peito contra a lei
Do circo e pão
E ao mesmo tempo
Cantar, sambar, amar, curtir
Só assim tem validade minha gente
Esse nosso existir
Bandeira da Fé – Martinho da Vila e Zé Katimba

Desde os seus primórdios o samba era visto como um lugar de resistência, sociabilidade e solidariedade, realizado em fundos de quintais, em porões ou barracões, sempre esteve presente nas margens da sociedade, buscando espaço entre as frestas, feito o bailado do malandro Zé. Como resultado da elaboração feita nas bordas de uma sociedade marcada pela exclusão, o samba foi riscando seu caminho no asfalto (com a benção dos malandros e das damas da noite), construindo uma ponte entre o sagrado e o profano, forjando e reafirmando a ancestralidade e a identidade de uma população, que no limiar do século XX também fora colocada a margem pelo poder constituído. Ao contrário dos imigrantes europeus que começavam a desembarcar nos portos do país inseridos em um projeto de branqueamento da nação, os escravizados africanos não tiveram tal escolha, para aqueles homens e mulheres que atravessaram o oceano acorrentados em porões, a longa viagem não apresentava um feixe de esperança no horizonte, e sim o desterro do seu lugar de origem.

Essas pessoas ao chegarem em novas terras, além do trabalho compulsório, perdiam sua liberdade e sua identidade, passando a serem conhecidos de forma subjetiva, apenas pelo nome de batismo dado por seu proprietário e sua suposta “nação” de origem, desconsiderando inclusive a diversidade dessas regiões. Ao consultar os diversos tipos de documentação referente a população escravizada, sempre encontramos nomes como Antônio “Mina”, Joana “Angola” e etc. Diante de tal cenário, a construção de laços eram fundamentais, seja para sobrevivência física ou mental. Desde meados do século XIX, esses espaços despertavam a atenção das autoridades. Terreiros, residências e estabelecimentos comerciais de negros libertos eram vigiados e sofriam repressão constante do Estado, no limiar do século XX a situação não seria diferente.

Como exemplo podemos citar a cidade de São Paulo, que entre meados do século XIX e início do século XX passou por um significativo processo de transformação. Por volta de 1870 a cidade contava com cerca de 30.000 habitantes e sua área principal ficava restrita ao chamado triângulo central (Rua Direita, São Bento e XV de Novembro). Porém, com a expansão cafeeira e a crescente industrialização que passará a ocorrer no próximo período, a capital começa a mudar sua feição, iniciando o processo que culminaria na formação da metrópole que hoje conhecemos.

Além da expansão territorial, pode ser observado no mesmo período grande crescimento populacional, em 1900 a cidade já concentra população estimada em 240 mil pessoas, o crescimento seguirá como uma constante até meados da década de 1920, quando a capital alcançará a marca de 600 mil habitantes. É nesse cenário que a cidade começa a acompanhar o desenvolvimento do que ficou conhecido como bairros operários (Barra Funda, Brás, Bixiga, Glicério, entre outros). De acordo com o compositor e sambista Geraldo Filme em depoimento gravado na década de 1990, eram nesses bairros onde a população negra vivia: “Olha zona de negro aqui em São Paulo era Liberdade, Bixiga, Barra Funda, e um pedaço, muito antigo, que pouca gente se lembra, aqui onde está hoje situada a Vila Madalena, Vila Ida, Vila Ipojuca, ali já era bem distante, ali já era o pessoal… Mas, essa região toda, de Liberdade, Barra Funda, de Bixiga era o centro mesmo”.

Uma das consequências desse novo “ordenamento” do espaço urbano, foi a consolidação do processo de desagregação da comunidade negra, que passou a ser alijada dos espaços centrais da cidade. Com a criação do código de condutas e posturas ocorreu uma alteração substancial do comércio praticado na cidade, principalmente aquele feito por essa população. Os mercados ficariam cada vez mais restritos aos bairros, além disso ocorreu a proibição das quituteiras trabalharem nas vias públicas e ainda maior controle dos ervanários. Soma-se a essas medidas a interferência direta em práticas de sociabilidade privada, no caso a proibição dos pais e mães de santo realizarem seus trabalhos religiosos e maior controle de festejos e reuniões.

Durante o governo do prefeito Antônio Prado, entre 1899 e 1911, a capital passou ainda por um grande processo de transformação urbanística, comparado à reforma feita por Pereira Passos no Rio de Janeiro. As medidas tomadas por Prado visavam transformar São Paulo em um espelho das metrópoles europeias, e para tal intento era necessário apagar os vestígios da população negra. Uma medida drástica, considerada símbolo desta política foi à demolição da Igreja do Rosário e das construções do entorno (o cemitério negro e diversas casas de aluguel ocupado por famílias negras) para dar origem ao que viria ser a atual Praça Antônio Prado, onde se localiza o Edifício Martinelli e o prédio da Bolsa de Valores, símbolo do apogeu da cafeicultura na época.

Enquanto isso no Rio de Janeiro o cenário também não era diferente, segundo a antropóloga Aline Dias da Cruz, “há pouco mais de um século – estamos no ano de 1900 – , a cidade materializava em seu cotidiano o acesso assimétrico às redes de infraestrutura e aos serviços urbanos. Diferenciava e reprimia, institucionalmente, as possibilidades de trabalho e de moradia, sobretudo, de mulheres negras da geração que nasceu logo depois do término formal da escravidão. Pedia o controle e a extinção dos modos de apropriação criados e mantidos por comunidades e pessoas afrodescendentes. E tanto as práticas quanto os homens e as mulheres pretas e pardas foram transformados em exemplo da “selvageria africana” a serem combatidos pelos setores do Estado. Políticas urbanísticas e habitacionais, controle policial e sanção jurídica, narrativa jornalística e reclamações enviadas aos jornais combinaram-se e reforçarão a produção de um ideal de cidade que se quis “moderno”, “civilizado” e burguês,  tropos mobilizados pelos representantes da colonialidade brasileira da época”.

O leitor que chegou até aqui pode estranhar porque recuamos tanto no tempo, infelizmente para aqueles que acreditam que os fatos narrados acima em São Paulo e no Rio de Janeiro do século passado são situações distantes, devemos alertar que estão equivocados. Em pleno século XXI, ainda somos obrigados a lidar com as mesmas práticas observadas no passado, e que deveriam servir apenas como objetos de estudo para nós historiadores. Porém o racismo segue em nosso país como algo estrutural, seja de forma aberta (como no caso de depredações de terreiros) ou sutil (um olhar ou fala enviesada), principalmente quando o alvo são as manifestações vinculadas a população afrodescendente.

Na última semana fomos informados sobre a possibilidade do fim das rodas do projeto Samburbano no Largo de Santa Cecília, área localizada no centro da capital paulista. O motivo para tal decisão, seria o fato de parte dos comerciantes e frequentadores do local demostrarem “incômodo” com o samba feito ali. Porém, o problema seria especificamente com essa roda (mera coincidência?). Como é do conhecimento de todos aqueles que frequentam as rodas de samba da cidade, o Largo de Santa Cecília comporta diversas batucadas e sambas ao longo da semana, desde as mais espontâneas até aquelas que demandam maior estrutura, sem falar nas demais atividades artísticas e culturais que acontecem no espaço.

Então novamente nos vem a pergunta: por que só aquela roda que acontece uma vez por mês causaria tanto incômodo? A resposta pode ser encontrada no forte discurso trazido pela cantora Roberta Oliveira que comanda o projeto ao lado dos integrantes do Bando de Lá.  Antes de prosseguir cabe ao leitor uma observação,  diversas rodas tem brotado pela cidade, algumas apresentando um discurso centrado em palavras como conscientização e resistência, porém com a real intenção de capitalizar em cima dessas pautas, para ganhar visibilidade e likes. Rodas de samba desse tipo, apesar do sucesso quase instantâneo, são marcadas pela duração efêmera, com a mesma rapidez que surgem acabam caindo no esquecimento, exatamente pela ausência da verdade em seu discurso.

A roda do Samburbano segue caminho inverso, desde seu início o posicionamento dos seus componentes foi uma constante. Mesmo antes de “ser moda”, lá estava Roberta e seu Bando saudando e cantando para os orixás, denunciando a violência policial, de gênero, o racismo estrutural e principalmente como parte da sociedade que tanto fala em inclusão, na verdade trabalha pela exclusão daqueles que são vistos como corpos dissidentes dentro de um padrão estabelecido.

Em 2018 logo após a eleição do inominável, enquanto muitos ainda abatidos pela derrota tentavam compreender o que havia acontecido com o país, o seu discurso já era de resistência. Para atravessar o período era necessário juntar forças e resistir de forma coletiva, pois como no samba de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, apesar de tudo, o sol haveria de brilhar mais uma vez (e não é que aos trancos e barrancos está voltando mesmo a brilhar). O Samburbano ao longo dos anos tem feito da sua roda um espaço de alegria, afeto e também um espaço político. Política em seu sentido pleno, não aquela feita em gabinetes e sim a política do sujeito, do coletivo, feita com verdade, olho no olho, sem partir para o fácil discurso panfletário, onde se joga para a torcida, o discurso e a prática do Samburbano nunca foi essa. A prática sempre foi, e tem sido em torno do coletivo, acolhendo e procurando dialogar com todos que chegam para a roda ou que vivem no entorno. Assim de forma coletiva, fomos curando as feridas de 2018, da pandemia, onde perdemos muitas pessoas queridas, dos ataques constantes a arte, a cultura e seus trabalhadores, sempre embalados pela força do samba e pela voz de Roberta. A roda do Samburbano ainda pode ser vista como uma das responsáveis pela revitalização do Largo, levando além da conscientização, cultura a todos que passam por ali, dando a oportunidade para muitos terem o primeiro contato com a obra de grandes mestres como Cartola, Dona Ivone Lara, Roque Ferreira e baluartes do samba de São Paulo como Geraldo Filme, Toinho Melodia e os novos compositores da cena.

Diante de tudo isso novamente vem a pergunta: quem interessa tirar o Samburbano daquele espaço? Interessa aqueles que não toleram ver a população usufruindo o espaço público, acessando cultura de qualidade e de forma gratuita, interessa aqueles que não admitem a diversidade de gênero, o povo preto ocupando um espaço central da cidade para cantar e saudar seus orixás, os malandros e as ciganas que povoam as encruzilhadas e esquinas. Enfim, aqueles que não admitem no espaço público a presença de um povo insubmisso.

Uma coisa é certa, e aqui digo de forma direta a Roberta Oliveira e todos aqueles que formam o Bando de Lá, para cada voz (na maioria dos casos anônima) que tenta deslegitimar e criticar a roda do Samburbano, saibam que há dez, vinte vozes para cantar com vocês no Largo ou em qualquer outro lugar, fazendo do espaço público um espaço de festa, de troca de afetos, mas também de resistência. E resistindo seguiremos, fazendo do samba a bandeira e a voz daqueles que ainda não tem voz. Para encerrar trazemos novamente para a roda um trecho do samba de Martinho da Vila e Zé Katimba citado no começo do texto:

Vamos
Nos unir que eu sei que há jeito
E mostrar que nós temos direito
Pelo menos a compreensão
Senão um dia
Por qualquer pretexto
Nos botam cabresto e nos dão razão

 *Daniel Costa é historiador, compositor e integrante do G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga.

Para saber mais:

Aline Torres Dias da Cruz. De Madureira à Dona Clara. Suburbanização é racismo no Rio de Janeiro no contexto pós-emancipação (1901-1920). Hucitec, 2020.

Daniel Costa. O samba de Roberta Oliveira e seu Bando de Lá. Disponível em: https://jornalggn.com.br/cultura/o-samba-de-roberta-oliveira-e-o-seu-bando-de-la-por-daniel-costa/

Daniel Costa. O passado da população negra. Esboço para uma cartografia do samba da Paulicéia. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-passado-da-populacao-negra/

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