Revisitando Astrojildo Pereira, por Daniel Costa

Astrojildo publicou em vida cinco livros - alguns esgotados há décadas- que voltam agora à circulação

Revisitando Astrojildo Pereira

por Daniel Costa

Em 2022 Brasil comemorou e relembrou três importantes efemérides, o bicentenário da Independência, o centenário da semana de arte moderna e a fundação do Partido Comunista do Brasil – na verdade , à época o nome era “Partido Comunista, Seção Brasileira da Internacional Comunista”. É no bojo deste último acontecimento que a Fundação Astrojildo Pereira (fundação política e cultural vinculada ao Cidadania, partido que é um dos herdeiros do legado da velha agremiação fundada em Niterói) em parceria com a Boitempo Editorial coloca novamente em circulação a obra daquele então militante anarquista, que animado pela repercussão da Revolução Russa fundaria em 1922 o PCB, sendo o seu primeiro secretário-geral.

Astrojildo publicou em vida cinco livros – alguns esgotados há décadas- que voltam agora à circulação, são eles: Crítica Impura; Formação do PCB; Interpretações; Machado de Assis e URSS Itália Brasil. Astrojildo Pereira (1890-1965) foi segundo o historiador Dainis Karepovs, “um homem de paixões e convicções inquebrantáveis e duradouras. Paixões como as que dedicou ao escritor Machado de Assis, sobre quem publicou uma importante obra crítica. Já as suas convicções estavam com o marxismo e a política comunista, dos quais jamais abriu mão”, a reedição de sua obra somada a biografia escrita pelo professor Martin Cezar Feijó possibilita a nova geração de militantes dos movimentos políticos e sociais, intelectuais ou simplesmente aqueles que seguem defendendo a nossa fragilizada democracia os caminhos trilhados por aquele que talvez venha a ser o primeiro defensor da construção de uma esquerda genuinamente democrática.

O professor do curso de Relações Internacionais da UFABC e cartunista Gilberto Maringoni classifica Astrojildo como um homem “antidogmático e antissectário por essência, Astrojildo bateu-se sempre por uma política radical e ampla para os comunistas. Anarquista, comunista, literato, historiador e autodidata, ele cumpriu uma trajetória de militante apaixonado  e publicista refinado, combinação um tanto rara nestas terras. Em outros tempos homens assim eram chamados de intelectuais orgânicos“, a tarefa hercúlea a qual se impôs pode ser vista como uma das hipóteses para o apagamento, ou esquecimento por parte de setores da esquerda de sua produção intelectual e sua relevância para a construção do movimento comunista no Brasil. Na apresentação da biografia escrita por Martin Cezar Feijó é o próprio Gilberto Maringoni que levanta hipóteses para tal esquecimento: “a mesquiharia de certa parte da intelectualidade e do mundo da cultura? O rolo compressor do pensamento único pós-moderno? Ou o desleixo, o mero desleixo? Talvez tudo isso junto”.

Crítica Impura, foi o último trabalho publicado por Astrojildo, lançado em 1963 pela Civilização Brasileira, editora comandada por Ênio Silveira, que foi uma das referências do debate político cultural e trincheira contra a ditadura civil militar instaurada em 1964, papel hoje exercido na devida proporção por Ivana Jinkings, editora responsável pela Boitempo. Como afirma o jornalista Paulo Roberto Pires na orelha da publicação, “Crítica Impura é um livro  datado- e nisso está sua qualidade”, reunindo 49 ensaios publicados entre as décadas de 1930 e 1960, além de discutir questões candentes a seu tempo podemos ler através da sua prosa reflexões acerca da obra de autores como Eça de Queiroz, Lima Barreto e José Lins do Rego. A jornalista Josélia Aguiar afirma que “ao correr as páginas de Crítica impura  o leitor perceberá como Astrojildo era um homem duplamente de partido.

A militância, ele  a exercia tanto como participante de uma estrutura político-partidária quanto como autor de artigos e resenhas. O seu interesse recaía  em criadores que, como ele, também se posicionavam, e se posicionavam à esquerda. A neutralidade artística não lhe parecia possível”. Dividida em três partes: ensaios e notas de leitura; testemunhos sobre a nova China e cultura e sociedade, a publicação mostra a versatilidade daquele que foi muito além de um dirigente político. A nova edição conta com o prefácio assinado pela jornalista Josélia Aguiar e como anexo um ensaio escrito pelo filósofo Leandro Konder sobre a vida e obra de Astrojildo. Intitulado “Astrojildo Pereira (1890-1965)”, o ensaio foi publicado pela primeira vez no livro de Konder intitulado Intelectuais brasileiros & marxismo, lançado em 1991 pela Oficina de Livros.

Formação do PCB, lançado originalmente em razão da comemoração dos quarenta anos de fundação do partido, foi o penúltimo livro publicado por Astrojildo. O livro que procurou criar uma narrativa histórica das origens do comunismo no país é o trabalho do autor que mais ganhou reedições, a primeira foi publicada em 1962 pela Editorial Vitória, editora ligada ao PCB.

Partindo de artigos e notas publicadas anteriormente na imprensa comunista, documentos pessoais e a própria memória enquanto ator presente em grande parte dos fatos narrados, atuando como militante comprometido ou intelectual rigoroso, Astrojildo aborda na publicação desde as lutas operárias ocorridas nos últimos anos do século XIX até a criação das bases que culminaram na fundação da seção brasileira da Internacional Comunista.

Segundo o professor da UNESP José Antonio Segatto prefaciador da nova edição, a reedição do livro, “no momento em que se comemora o centenário de fundação do partido do qual Astrojildo Pereira foi o principal protagonista de sua criação, além de ser uma homenagem mais que justificável, recoloca a questão histórico-política da luta pela emancipação das classes subalternas, num país iníquo ao extremo, com os direitos de cidadania constantemente aviltados e com uma democracia contingente e restrita”. Sem medo algum de cometer o pecado capital dos historiadores, ou seja, ser anacrônico na análise do fato, podemos constatar que boa parte das batalhas políticas e intelectuais travadas por Astrojildo no alvorecer do século XX seguem fundamentais.

Além do citado prefácio assinado por José Antonio Segatto, e orelha assinada pelo historiador Fernando Garcia, a edição conta com um importante escrito de Astrojildo Pereira em anexo, publicado como folheto em 1918 e assinado com o pseudônimo de Alex Pavel, devido a grande repressão que fora desencadeada contra o movimento operário, do qual Astrojildo era um dos grandes líderes após a simbólica greve geral de 1917. O texto “A Revolução Russa e a imprensa” questiona o tratamento dado pela imprensa brasileira aos acontecimentos referentes a Revolução Russa,  outro tema que apesar do tempo segue candente.

Interpretações, talvez o trabalho menos conhecido de Astrojildo Pereira ganha nova edição após mais de 75 anos de sua publicação, apesar de alguns dos textos ali publicados terem aparecido em outras coletâneas ao longo dos últimos anos. Dividido em três partes: romances brasileiros; História política e social e Guerra e após-guerra, o livro traz nas palavras do professor Pedro Meira Monteiro, “a sensibilidade aguda de um crítico que mergulha nos textos, buscando a malha tensa do social, em suas contradições mais fundamentais”. Percorrendo desde a obra de autores como Machado de Assis, do qual voltaremos a tratar adiante, Lima Barreto e a clássica obra de Graciliano Ramos, Vidas secas, Astrojildo ainda versará sobre o papel desempenhado por Rui Barbosa no processo que culminaria na abolição da escravidão. 

O prefácio da nova edição é assinado por Flávio Aguiar, professor aposentado do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (USP) e como anexo o leitor poderá ler o ensaio intitulado “Meu amigo Astrojildo Pereira”, escrito pelo historiador marxista Nelson Werneck Sodré e publicado originalmente em 1990 como abertura da segunda edição de Formação política de Astrojildo Pereira, de Martin Cezar Feijó , livro lançado pela Oficina de Livros e “As tarefas da inteligência”, de Florestan Fernandes publicado em 1945, no jornal Folha da Manhã, ainda sob o calor da publicação da primeira edição do livro, o então jovem sociólogo discute o conceito de intelectual exposto por Astrojildo na  obra.

Machado de Assis, é um dos trabalhos mais importantes e conhecidos de Astrojildo Pereira, a primeira edição foi publicada pela Livraria e Editora São José em 1959, desde então ganhou nova edição no começo da década de 1990 e outra em 2008 quando foi comemorado o centenário do bruxo do Cosme Velho. Reunindo estudos literários publicados em revistas e jornais, a obra de Astrojildo pode ser colocada na prateleira dedicada a grandes obras do período que procuraram discutir a formação da nossa identidade e a construção dessa sociedade tão intrincada. A riqueza da obra está no caráter pioneiro, pois através da lente do intelectual comunista, Machado de Assis deixou de ser encarado como alguém indiferente ao Brasil do século XIX, pois, com sua refinada escrita realizou uma pertinente crítica às desigualdades e contradições da sociedade no período.

A edição traz um belo prefácio, intitulado “Astrojildo: política e cultura” assinado pelo professor José Paulo Netto, o texto em questão apareceu pela primeira vez na edição de 1990 e agora é publicada revista e ampliada. José Paulo Netto, um dos grandes especialistas na obra de Marx, inclusive autor de uma das mais completas biografias do revolucionário e intelectual alemão em português escreve que, “Astrojildo é nosso companheiro tanto na justa avaliação da qualidade literária de um clássico como Machado quanto na convicção profunda de que a cultura não é um subproduto ou um epifenômeno da vida social – antes resulta da decidida vontade criadora dos homens, subversiva e fascinante”.

Como anexos são  apresentados ao leitor textos de Euclides da Cunha, Rui Facó e Otto Maria Carpeaux, respectivamente a crônica “A última visita”, publicada no dia seguinte a morte de Machado de Assis no Jornal do Comércio traz o relato de Euclides sobre a visita de um misterioso jovem ao leito de morte do bruxo do Cosme Velho, anos depois foi revelado que o misterioso jovem era Astrojildo. O texto de Rui Facó, intitulado “Em memória de Machado de Assis” foi publicado em 1958 na Voz Operária, publicação oficial do partido, já o texto de Otto Carpeaux, “Tradição e revolução”, foi publicado em 1959 no Correio da Manhã. Por fim o leitor terá acesso ao texto “Machado de Assis é nosso, é do povo”, do próprio Astrojildo, publicado em 1938 na Revista Proletária o texto fora escrito por ocasião dos trinta anos do falecimento de Machado de Assis.

URSS Itália Brasil, o livro de estréia de Astrojildo Pereira foi lançado em 1935, reunindo textos publicados na imprensa entre 1929 e 1934 a publicação buscava difundir o ideário comunista pelo país. Dividido em três partes, cada uma dedicada aos países que dão título à publicação, podemos acompanhar por meio dos artigos o debate realizado na época em torno de questões como a consolidação do regime soviético, a ascensão do fascismo na Itália e questões conjunturais do Brasil. De acordo com a historiadora Marly Vianna, “pode-se perguntar qual a importância de reeditar, hoje, artigos escritos por Astrojildo Pereira entre 1929 e 1934, sobre uma União Soviética que deixou de existir, uma Itália onde há muito Mussolini e seus fasci di combattimento desapareceram e um Brasil de quase um século passado. A pergunta pode ter alguma lógica, mas a resposta é: este livro tem muita importância e absoluta atualidade.

Estes artigos mostram-nos o vigor e a importância do socialismo, o perigo de um fascismo que não desapareceu e os problemas de um país como o nosso, praticamente os mesmos de um século atrás”. A edição conta com prefácio escrito pela historiadora Marly Vianna e a apresentação de Heitor Ferreira Lima publicada quando da ocasião da reedição da obra em 1985 pela editora Novos Rumos.

Por fim cabe destacar a reedição da biografia escrita pelo historiador Martin Cezar Feijó, concebida originalmente como tese de doutorado apresentada na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, O revolucionário cordial: Astrojildo Pereira e as origens de uma política cultural mostra as várias faces de Astrojildo, desde o militante político, passando pelo intelectual amante dos livros e da literatura, chegando ao articulador cultural. Segundo Feijó, sua obra pode ser encarada como uma “reflexão sobre um revolucionário que soube ser cordial num contexto de brutalidade”.

Com a publicação das obras de Astrojildo Pereira e da biografia escrita por Martin Cezar Feijó o público brasileiro terá acesso ao pensamento daquele que foi nas palavras de seu biógrafo, “um revolucionário cordial à frente de seu tempo, tempo este sombrio, pouco dado a cordialidades, entendidas como subserviência ou oportunismo”, ou ainda como bem pontuou Sérgio Augusto no prefácio a obra, Astrojildo foi “cordial, sim, herético, jamais”. No momento em que nossa sociedade passa a ter esperança na reconstrução da democracia após quatro anos de um governo proto fascista, pensar como e com Astrojildo pavimenta o caminho para a construção de uma esquerda plural e democrática.

Daniel Costa é historiador pela UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo) e desenvolve pesquisa acerca da corrupção na América portuguesa ao longo do século XVIII.

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