O samba de Roberta Oliveira e o seu Bando de Lá, por Daniel Costa

O samba de Roberta e seu Bando também tem lado; o lado de cá, o lado da população marginalizada, invisibilizada pelas "autoridades'' de plantão

Reprodução/Redes sociais

Pra cantar samba é fundamental ter lado. O samba de Roberta Oliveira e o seu Bando de Lá

por Daniel Costa*

O paulistano que circula pelo Largo de Santa Cecília nas tardes do último sábado de cada mês com toda certeza percebe algo diferente no ar, a sensação daqueles que param, nem que por alguns instantes diante do samba organizado na lateral da igreja é de total indiferença aos sons e ruídos da metrópole; os carros, buzinas, o movimento da estação do metrô são silenciados e a audição passa a ficar concentrada nos sons que emanam da roda. Quando tal sensação relatada é lida por alguém não muito afeito ao mundo do samba, ou mesmo as mandingas e mumunhas das ruas (relembrando o mestre Plínio Marcos) pode pensar que é um relato exagerado, até mesmo fantasioso. Exagerado, com certeza não, fantasioso podemos até discutir, pois para aqueles que enxergam as ruas, becos, esquinas como lugares cheios de vida, de alma, de seres encantados, a fronteira entre o real e o mágico é tênue.

Assim, nessa fronteira entre o real e o encantado, a cantora Roberta Oliveira acompanhada pelo seu Bando de Lá comanda a roda do Projeto Samburbano, que há oito anos ocupa o Largo de Santa Cecília para mandar seu recado em forma de samba. Um velho malandro certa vez disse que para fazer e viver o samba em seu estado puro é necessário duas coisas: verdade e fundamento. Com toda certeza podemos afirmar que esses são os pilares do trabalho conduzido por Roberta e seu Bando, formado pelos músicos: Monica Trindade, Monalisa Madalena, Gisah Preta, Luiz Ribeiro, Parcio Anselmo e Matheus Nascimento.

Ao pedir licença para os orixás e suas energias ancestrais antes de iniciar a roda; assim como para os compadres e ciganas que tomam conta das ruas; e o malandro Zé, aquele mesmo que partindo de Alagoas chegou à cidade passando a viver na boemia é perceptível a real conexão forjada pela roda entre a mais tenra ancestralidade (o orun) e o nosso mundo (o ayê); assim não é difícil ver alguém em meio a um daqueles sambas carregados de axé sentir um arrepio no corpo ou ver sua cerveja cair do nada no chão. Nesses momentos com toda certeza em um dos cantos daquele largo nossas ciganas e o conhecido malandro usando seu terno de linho branco riem da situação e caem no samba embalados pelas palmas do público, pelo sete cordas executado com maestria por Luiz Ribeiro ou pela curimba potente que vem das mãos da nossa grande Gisah.

Além de magia, o samba de Roberta e seu Bando também tem lado; o lado de cá, o lado da população marginalizada, invisibilizada pelas “autoridades” de plantão, do povo preto que apesar dos avanços conquistados seguem alvos do racismo estrutural, da mulher vítima da violência e também contra a intolerância religiosa. Diante disso, promover uma roda de samba ao lado de uma das igrejas mais conhecidas da cidade tocando e cantando para os orixás, entidades da rua, reafirmando que aquele entorno também é solo preto; afinal com um pequeno deslocamento podemos chegar a lugares chaves do samba paulistano como a Alameda Glete, Rua Barra Funda, e o saudoso Largo da Banana, palco de tantas histórias que são contadas nas rodas é um verdadeiro ato político e também de resistência.

Na roda realizada no último sábado, em  momento de desabafo Roberta mais uma vez reafirmou seu lado, inclusive deixando claro que ali não era espaço para aqueles que preferem a comodidade de acompanhar o desenrolar dos acontecimentos acomodados no alto de algum muro, e muito menos para quem ainda apoia o inominável que por hora ocupa o Planalto. Um verdadeiro soco no estômago daqueles que ainda acreditam que a arte deveria ser apolítica, mesmo em um cenário onde a devastação impera.

Para quem ainda não teve a oportunidade de acompanhar Roberta e seu Bando ao vivo recomendo o EP lançado em 2020; mais que um álbum de samba é um verdadeiro manifesto de fé em nossa ancestralidade e na esperança que essa maré brava passará. Abrindo com um samba em forma de prece para Oyá composta por Chico Saraiva e Décio Carvalho, passando pelos clássicos A Morte de Chico Preto de Geraldo Filme e Ora Bravo do ator e compositor Henricão, o disco ainda traz as faixas Águas e Ervas composição de Lello Di Sarno e Maty Moya, e uma prece a Ogum composta por Deley Antonelli e Edu Batata.

O EP conta ainda com a faixa Canto Pra Viver dos mestres do samba da Barra Funda e do Camisa Verde e Branco, Dadinho, Melão e Paulinho, o samba começa com os seguintes versos: “É para cantar que eu vivo. Canto pra viver muito bem. Eu tenho a canção correndo nas veias”. É com o samba correndo nas veias que Roberta e seu Bando trazem, seja na Santa Cecília, seja em apresentações pelos quatro cantos da cidade, a força do samba paulista, o axé dos nossos ancestrais e o grito de luta daqueles que brigam cotidianamente por seus direitos e por respeito.

Encerro esse texto reafirmando quanto a situação dos trabalhadores da cultura foi afetada desde o golpe de 2016, momento onde diversas estruturas construídas com muita luta passaram a ser desmontadas, chegando ao cenário de terra arrasada no atual governo, onde um deputado que teve como grande ato quebrar em público uma placa em homenagem a Marielle Franco receberá da Biblioteca Nacional uma medalha que já foi ofertada a figuras como o poeta Carlos Drummond de Andrade e Gilberto Freyre. Em tal contexto se posicionar, ter lado; embora essencial, em muitos casos traz verdadeiros ônus, porém afirmo, Roberta & seu Bando continuem ao nosso lado nessa trincheira, pois nunca a frase, juntos somos mais fortes fez tanto sentido como agora.

*Daniel Costa é graduado em história pela UNIFESP, compositor, e integrante do Grêmio Recreativo de Resistência Cultural Kolombolo Diá Piratininga.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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