Daniel Costa
Daniel Costa é graduado em História pela Unifesp, instituição onde atualmente desenvolve pesquisa de mestrado. Ainda integra o G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga onde além de compositor, desenvolve pesquisas relacionadas a História do samba de São Paulo e temas ligados a cultura popular participando das atividades e organização do centro de documentação da entidade (CedocK - Centro de Documentação e Memória - José e Deolinda Madre). Possui especializações na área de museologia (IBRAM), arquivologia (Arquivo Nacional), Educação Patrimonial (IPHAN) e História Oral (FGV/CPDOC).
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O ajeum sonoro de Paulinho Cuíca, por Daniel Costa

Como em uma verdadeira gira, Paulinho abre os trabalhos cantando para Exu ao lado do sambista Marquinho Dikuã

O ajeum sonoro de Paulinho Cuíca

por Daniel Costa

Se um vento vier de repente
Se a poeira levantar do chão
Se o certo parecer errado
Ou vice e versa se a paz for rebu
É melhor encurtar a conversa
Em Terreiro primeiro cantar pra Exu
(Larôye Exu – Paulinho Cuíca)

Como é de notório conhecimento, desde os seus primórdios o samba esteve umbilicalmente ligado às religiões de matriz afro-brasileira, basta relembrar figuras como a baiana Tia Ciata, personagem fundamental na popularização do samba e grande liderança social na região conhecida como pequena África, Ciata teve sua cabeça feita no Ilê Ijá Nassô do Engenho Velho e chegando ao Rio tornou-se filha de santo de João Alabá, outra grande liderança entre a população negra carioca. Em São Paulo não podemos esquecer o protagonismo exercido por Deolinda Madre, a madrinha Eunice, fundadora da escola Lavapés e grande articuladora do samba, que além de católica também era praticante da quimbanda.

Um hábito comum em meio aos compositores que frequentavam os sambas realizados nos quintais e terreiros era o de levar suas composições para a aprovação e consagração dos sacerdotes. José Barbosa da Silva, o Sinhô, considerado um dos principais compositores dos primórdios do gênero não deixava de apresentar suas obras ao famoso pai Assumano Mina do Brasil antes de começar a divulgação nas batucadas do Estácio. O pesquisador e jornalista Haroldo Costa em seu livro, Salgueiro: Academia de samba narra um caso vivido pelo conhecido compositor da vermelho e branco da Tijuca, Geraldo Babão, que ficara doze anos sem vencer a disputa de sambas na escola, “com o samba Do Cauim ao Efó, com moça branca, branquinha, trilha para o desfile de 1977 o compositor quebrará seu jejum de vitórias, segundo o compositor tal situação  ocorrera, por ele não ter dado para o Exu toco preto, seu protetor, parte dos bois que ele recebera de presente de um compadre seu, para fazer um churrasco comemorativo pela vitória. Segundo os preceitos da Umbanda, a cabeça com os chifres, o rabo, o mocotó e a buchada são do homem (uma das designações de Exu)”.

Já em São Paulo madrinha Eunice não deixava sua escola sair sem cumprir as obrigações com Exu veludo, o guardião da escola. De acordo com Juliana Yamamoto e Ladislau Almeida, o imaginário místico é algo presente na própria identidade da Lavapés, “por ser dedicada a essa divindade, sempre foi tradição em sua história uma série de atividades religiosas, desde a consulta sobre assuntos cotidianos e dos rumos da agremiação, até o preparo para o dia do desfile”. Ainda sobre a relação tão próxima entre a escola e os orixás, Madrinha Eunice contou em depoimento ao MIS que, “tudo que tenho pedido a eles, eu alcanço, sobre a formação da escola. Eu peço que me ajude, de modo que às vezes tá precisando algo e aparece”.

Essa relação estreita entre os sambistas e as religiões de matriz afro-brasileira seria observada também no mercado fonográfico, em 1922, o cantor Baiano, conhecido por em 1917 gravar o samba Pelo Telefone, registra na Odeon a canção de Donga e Otávio Viana intitulada Sai Exu, na etiqueta do acetato a gravação era classificada como jongo africano. Para diversos pesquisadores do tema, a primeira gravação do gênero ocorrera em 1909 na gravadora Victor, onde César Nunes executou a Imitação d’um batuque africano.

Ainda podemos destacar nessa seara, J.B. de Carvalho que se especializou em compor e gravar tais temas ao longo da década de 1930 – E vem o sol, Cadê Viramundo?, Rei de fogo, são algumas das gravações realizadas por J.B. na Victor, cabe destacar que as gravações eram identificadas nos selos dos discos como macumba, ou seja, naquele período essa produção era encarada como parte de um sub gênero dentro do samba.

Na esteira da produção de J.B. de Carvalho diversos compositores começaram a compor suas macumbas, assim tivemos desde nomes consagrados como Pixinguinha, Gastão Viana, João da Baiana e  bambas do Estácio como Getúlio Marinho e Príncipe Pretinho registrando suas obras em 78 rpm. Ate mesmo o futuro rei do samba de breque Moreira da Silva arriscou gravar sambas com temas afrorreligiosos, como Ererê e Rei da Umbanda, registrados em 1932 na Odeon, na época o futuro malandro se apresentava como Antônio Moreira ou Mulatinho.

O carnaval também não deixaria de captar tal influência, nesse grupo destacamos a clássica marchinha General da Banda, composição de Tancredo Silva, conhecido pai de Santo e líder umbandista carioca. Gravada por Blecaute a marcha era uma adaptação de conhecido ponto da umbanda. Já o samba Rádio Patrulha, composto pelo imperiano Silas de Oliveira e sucesso no carnaval de 1956 na voz da cantora Heleninha Costa acabaria incorporado ao repertório das giras como um ponto para o malandro Zé Pelintra.

Na década de 1970, principalmente após o sucesso de Clara Nunes os sambas com recorte afrorreligioso ganharão novo fôlego dentro do mercado fonográfico, inclusive com a abertura para a gravação de médiuns e grupos oriundos dos próprios terreiros. Assim teremos no período discos emblemáticos, como Sete Rei da Lira lançado pela Odeon em 1971, o álbum traz a médium Cacilda de Assis interpretando sambas em homenagem a entidade que ganhara as ruas, a televisão e o carnaval carioca na virada da década. Na mesma época, a pequena Musicolor lança O Rei do Candomblé (1970), do conhecido pai de Santo Joãozinho da Goméia. A Philips abriria suas portas para Luiz da Muriçoca e seu Cânticos de Terreiro (1971), além de reeditar fonogramas do já citado J.B de Carvalho.

Dessa década ainda podemos destacar álbuns como Os Tincoãs (Odeon, 1973) do famoso trio baiano; Em tempo de macumba (1972), coletânea lançada pela Philips com gravações de João da Baiana, Heitor dos Prazeres e Ataulfo Alves; Na gira dos caboclos (Chantecler, 1974) álbum com composições de grandes nomes do samba como Avarese, Dias da Cruz, Sidney da Conceição e Tufic Lauar e Canto de Fé (Som Livre, 1977) coletânea que contava com faixas de nomes como Ângela Maria, Ruy Maurity, Elza Soares e Chocolate da Bahia.

No século XXI mesmo com o avanço das seitas neopentecostais e do conservadorismo que tomou conta da nossa sociedade o público teve acesso a álbuns de grande qualidade como Padê (2008)unindo a dupla Kiko Dinucci e Juçara Marçal; Macumbas e catimbós (2019) da pernambucana Alessandra Leão; Dos Santos (2020)da paulistana Fabiana Cozza e Macumbeira (2021)da cantora e atriz Jéssica Ellen.

Percorremos esse longo caminho mostrando traços de uma tradição que remonta aos primórdios do samba e atravessou o século XX enfrentando a indústria fonográfica e o preconceito de parte da sociedade para apresentar o trabalho do cantor, compositor e instrumentista Paulinho Cuíca e seu álbum Ajeunman, que encontra-se disponível nas principais plataformas. Sambista formado principalmente nas rodas de samba da zona sul paulistana, Paulinho ao longo de treze faixas presta uma bela homenagem ao panteão dos deuses das religiões afro-brasileira. O álbum conta com a participação de nomes como Marquinho Dikuã, Pai Élcio de Oxalá, Ully Costa, Fabiana Cozza, Pagode da 27, Hélio Rubi (in memoriam) e outras grandes figuras do samba paulistano.

Como em uma verdadeira gira, Paulinho abre os trabalhos cantando para Exu ao lado do sambista Marquinho Dikuã, a canção conta com um arranjo que impacta o ouvinte, misturando o toque da curimba e do ijijexá. Com acentuada influência contemporânea, a canção é perfeita  para o orixá que representa a transformação, aquele que é o mensageiro, dono do poder mágico e protetor daqueles que tem a noite e a rua como seu habitat, sinalizando a força que virá nas faixas seguintes. Em seguida a homenagem é para Ogum, ao lado da voz inconfundível de Pai Élcio de Oxalá, referência na música de terreiro, temos um samba que desponta no álbum como um verdadeiro canto de guerra para o orixá que nasceu para guerrear, “botando o inimigo na ponta do aço” como canta a dupla .

A terceira faixa, Atabaques no Ejicá, uma homenagem a Iemanjá, consegue transportar o ouvinte para uma viagem pelos mares, que em determinado momento pode ser de ondas revoltas ou de calmaria, mas sempre com a proteção da rainha das águas. Em Atotô, homenagem a Obaluaiê, Paulinho divide a faixa com o cantor e compositor Hélio Rubi, uma das figuras mais queridas do samba de São Paulo e que tão cedo partiu para o Orun. Ouvir o canto de Hélio nessa faixa causa emoção tanto pela sensibilidade da letra e da interpretação como pela lembrança da figura de Hélio, especialmente para aqueles que conviveram com ele pelos sambas da Paulicéia.

Ao longo do álbum ainda são homenageados Xangô, Oxum, Iansã, Oxossi, Logun-Edé, Oxumarê, Nanã, os Ibejis e Oxalá. O disco é encerrado com a faixa que dá título do trabalho, em Ajeunman, de forma autobiográfica o compositor agradece os orixás por meio de suas saudações, reforçando a devoção aqueles que guiam e regem seu ori desde o nascimento, abrindo seus caminhos na vida e no samba.

A beleza do álbum de Paulinho Cuíca reside exatamente no fato do compositor não ser alguém de fora do universo das religiões de matriz afro-brasileira,  e que por meio de um insight resolveu homenagear o panteão dos orixás em um álbum conceitual. O conceito, a beleza e a força de Ajeunman ocorre por Paulinho ser um homem da religião, que conhece os mitos, preceitos e códigos de uma religião que acumula uma sabedoria milenar. Paulinho ao longa das faixas canta para os orixás não somente como homenagem, mas também com devoção e respeito oferecendo para eles e para os ouvintes um verdadeiro ajeum musical.

Como o próprio artista afirma, “motivos para agradecer eu tenho muitos, musicalmente agradeço a todos os Orixás, pois, todos eles sabem que a minha caminhada nesta vida não foi fácil. Agradeço pela força, proteção, ensinamentos e corretivos também, de poder estar aqui hoje e de poder seguir adiante firme e forte”.

Ogum,
Maior guerreiro que já existiu
Nas batalhas da terra, nas batalhas do céu
Ogum, vai botando o inimigo na ponta do aço
Implacável é Ogum, é quem guia meus passos
(Implacável Ogum, Paulinho Cuíca)

Daniel Costa é historiador, compositor, pesquisador e integrante do G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga.

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