Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Caso Natuza Nery e apropriação semiótica: como a Globo lucra com isso, por Wilson Ferreira

O "Escândalo da Wikipedia", em 2016, foi o caso seminal, começando com Miriam Leitão e Carlos Sardenberg. E a Globo lucra com isso. 

no Cinegnose

Caso Natuza Nery e apropriação semiótica: como a Globo lucra com isso

por Wilson Roberto Vieira Ferreira

O caso do ataque sofrido em supermercado pela “colonista” e apresentadora da Globo News, Natuza Nery, é exemplar por revelar, na prática, o efeito da estratégia de comunicação alt-right de apropriação semiótica. A crítica não só a Globo, mas ao monopólio midiático do país, sempre foi uma pauta da esquerda. Apropriada e com sinal invertido de forma paródica pela extrema-direita, virou o mote “Globo Lixo!”. Resultado: o campo sai em defesa do “jornalismo profissional” e a “liberdade de imprensa” contra o “fascismo”, não obstante a “colonista” ter semeado e colhido tempestade, junto com a emissora que deu visibilidade à lama psíquica do Brasil profundo. O campo progressista teme ser confundida com o bolsonarismo. Então, sai em defesa do jornalismo corporativo que faz terrorismo fiscal e prepara o fim da liberdade de expressão com o lobby contra o Marco Civil da Internet. Conscientemente a Globo joga seus jornalistas aos bolsonaristas-zumbis. O “Escândalo da Wikipedia”, em 2016, foi o caso seminal, começando com Miriam Leitão e Carlos Sardenberg. E a Globo lucra com isso.  

Desde que esse humilde blogueiro começou a fazer a crônica cotidiana e a engenharia reversa das bombas semióticas, a partir das Jornadas de Junho de 2013 (cuja crítica foi sistematizada no livro “Bombas Semióticas na Guerra Híbrida Brasileira – 2013-2016”, clique aqui), observamos que um dos principais dispositivos é a “apropriação semiótica”. 

Como quase tudo na comunicação alt-right, é uma estratégia irônica: apropriar-se de símbolos, ícones, slogans, narrativas etc. principalmente da esquerda e do campo progressista. Ressignificá-los, invertendo o sinal no espectro político. 

Para depois render duas mais-valias semióticas: 

(a) criar a percepção na opinião pública que o extremismo de direita é antissistema; 

(b) esvaziar o discurso de esquerda ou progressista que se vê proibida de manter sua agenda crítica pelo medo de ser confundida com a extrema-direita.

O efeito irônico é a reversão dos sinais no espectro político: quanto mais à esquerda, mais o discurso começa a parecer institucional, liberal, mainstream, pelo apego a única coisa que restou – as abstrações da “democracia”, do “republicanismo” etc.

E no caso da guerra híbrida brasileira, sabemos que o grupo Globo ocupa até hoje um papel estratégico como um verdadeiro gatilho que dispara os efeitos dessa verdadeira operação psicológica – associada diretamente aos efeitos de cismogênese na guerra híbrida.

Coube à Globo dar visibilidade ao ódio, racismo e intolerância daquilo que chamamos de Brasil Profundo, cuja tradução política foi dada pelo extremismo de direita responsável pelo primeiro movimento de apropriação semiótica: a cooptação das reivindicações dos movimentos sociais pós Jornadas de Junho. 

Ajudou a engrossar as avenidas pintadas de verde-amarelo com toda sorte de espécimes da lama psíquica nacional. 

Após o golpe de 2016, partiu para as medidas de contenção de danos à própria imagem, num jogo de dupla mão: de um lado, dizendo que a emissora e seu jornalismo nada tinham a ver com a crescente polarização e violência, com o álibi do jornalismo “isento e profissional”; e, do outro, blindando uma suposta “ala não ideológica” do bolsonarismo – a ortodoxia neoliberal de Paulo Guedes e seus subprodutos, como o atual governador de SP, Tarcísio de Freitas.

O resultado é que nesse jogo de apropriação semiótica, a comunicação alt-right apropriou-se da agenda crítica da esquerda contra a Globo (e contra a mídia monopolista como um todo) para inverter os sinais e transformar em mero xingamento: “Globo lixo!”. 

Jornalistas ao sacrifício

Conscientemente, a empresa passou a oferecer seus jornalistas em sacrifício público para que fossem alvo do assédio e violência desses espécimes do exército psíquico de reserva, sempre disponível aos comandos “apito de cachorro”.

Os jornalistas da casa Miriam Leitão e Carlos Sardenberg foram os primeiros, em 2016, a serem oferecidos à imolação pública no chamado “Escândalo da Wikipedia” (clique aqui), o ponto de partida para essa política de contenção de danos.

A partir daí, tornou-se comum repórteres de rua ou “colonistas” da Globo serem assediados ao vivo, nas ruas ou, fora do trabalho, em supermercados e aeroportos. 

Para ficar apenas em 2024, o caso da repórter da Globonews Paula Araújo sendo agredida com um tripé da câmera e um tapa na cara por uma mulher que gritava “Globo lixo” (clique aqui); e o apresentador do JN, William Bonner, sendo ostensivamente hostilizado em Porto Alegre na cobertura ao vivo das enchentes no Estado. 

Além da rotina diária de motoristas ou transeuntes passando e ocasionalmente gritando ou gesticulando ofensas em links ao vivo. Tornou-se rotina dos repórteres serem acompanhados por seguranças… e não só para proteger os caros equipamentos…

A vítima Natuza Nery

Agora foi a vez da “colonista” e apresentadora da Globonews, Natuza Nery, ameaçada por um policial civil em um supermercado em São Paulo na noite da véspera do último dia do ano. 

Segundo a notícia, o policial, que estava de folga, abordou a jornalista dentro do supermercado perguntando se ela era a Natuza Nery, da Globonews. Com a confirmação da jornalista, o policial se dirigiu agressivamente para ela dizendo que a Globo e jornalistas como ela seriam os responsáveis “pela atual situação do País”. E que jornalistas como ela “deveriam ser aniquiladas”.

As ameaças continuaram até a fila do caixa, momento em que a Polícia Militar foi acionada. Depois de ser encaminhado ao Distrito Policial e o BO ser lavrado, descobriu-se que o acusado era um policial. Para o caso ser encaminhado à Corregedoria da corporação.

Não é necessário muito esforço cognitivo para descobrir que essa policial civil é um bolsonarista prototípico: um policial pra lá da meia idade, defensor da intervenção militar nas redes sociais, nas quais atacou as Forças Armadas pela “covardia” por não embarcar na aventura de Jair Bolsonaro. 

Para além do flagrante sintoma político que deveria preocupar o Governo (um bolsonarista orgânico na máquina repressiva do Estado – reforçando a tese de que Lula tem o governo, mas não o Estado, conquistado militarmente em 2018 com a vitória de Bolsonaro), o que chama a atenção na repercussão midiática do caso é o perfeito resultado esperado pela estratégia alt-right de apropriação semiótica.

Com preciosas mais-valias semióticas tanto para a extrema-direita (agora no modo “moderado” com Tarcísio de Freitas, Ricardo Nunes et caterva) como para o próprio jornalismo da Globo.

Para o bolsonarismo, o imediato efeito cismogênese na mídia progressista: a comoção despertada por uma jornalista, mulher, vítima da covardia de um bolsonarista empedernido (que na rede Threads escrevia que “se fizesse tudo que tem vontade seria preso ou morto”), comprovando o ódio fascista pela liberdade de imprensa e a democracia. 

Apoio e solidariedade da esquerda à vítima Natuza Nery.

De repente um exemplar colonista “cão sabujo”, cuja voz e caneta servem irrestritamente ao terrorismo fiscal e, no comando da “Central Globonews” no final da noite (o suprassumo da ortodoxia ideológica do grupo Globo), dirige os “colonistas” da casa em ironias contra o SUS e Previdência Social exigindo cortes na carne e sangue como sacrifícios necessários na pira incendiária da Faria Lima, ganha não só solidariedade da esquerda. Ganha também elogios técnico-jornalísticos e de ética profissional.

Logicamente, nem o maior inimigo ideológico e político merece ser tão covardemente atacado e intimidado. Mas para, daí, inferir que Natuza Nery é apenas “uma-jornalista-vítima-do-fascismo-bolsonarista” é simplificar demais o caso – sair na defesa intransigente da “colonista”.

“Quem semeia vento colhe tempestade” pode ser um provérbio clichê. Mas se aplica muito bem a esse caso: bolsonaristas-zumbis egressos do Exército Psíquico de Reserva respondendo a cripto-comandos de apitos de cachorro para atacar a “Globo lixo”, é o resultado dos anos de jornalismo de guerra, principalmente da Globo, que se aliou e açodou esse Brasil Profundo.

Incapaz de explicitar as relações de causa e efeito (afinal, a esquerda não quer atacar a Globo para não ser confundida com o “fascismo”), sai em defesa da jornalista, da democracia e da liberdade de imprensa.

O mesmo faz o STF, na figura de Gilmar Mendes (cujo voto, em 2018, deu a maioria para manter Lula na prisão e facilitar a conquista do Estado pelo Partido Militar), que exortou a defesa de uma “pauta civilizatória”: “É de nossa manutenção na pauta civilizatória que estamos a tratar. As democracias dependem do jornalismo profissional; sem ele, não há liberdade de informação e, por conseguinte, liberdade de expressão”, afirmou.

As mais-valias da Globo

O resultado político é a indução à cismogênese e silêncio da esquerda diante das manipulações cotidianas do jornalismo corporativo – aqui e ali até surgem críticas, mas, no frigir dos ovos, saem mesmo em defesa do “jornalismo profissional” contra o “fascismo”.

E para a Globo, as mais-valias semióticas são óbvias: 

(a) No momento quando se julga o Marco Civil da Internet e a Globo volta seus canhões para criminalizar as redes, a favor do jornalismo corporativo “profissional e isento de fake news”, um ataque a uma estrela da emissora é muito conveniente – angaria a sua defesa até na esquerda…

(b) Se ver atacada, de um lado, explicitamente, pela extrema-direita e, tímida e envergonhadamente, pela esquerda, paradoxalmente reforçando o suposto jornalismo técnico e isento: “não agradamos ninguém, porque não temos rabo preso com ninguém”, parafraseando um antigo slogan da “Folha de São Paulo” – com quem, aliás, no apagar das luzes de 2024, a Globo fez uma jogada casada no bate bumbo da fake news do “rombo das estatais”.

A Globo faz consciente esse jogo. Desde o “escândalo da Wikipedia”, oferecendo Leitão e Sardenberg ao sacrifício, tornou-se um modus operandi

A emissora pode até esboçar reações indignadas. Mas que acabam se resumindo a “notas de repúdio” da emissora e associações classistas. Sem maiores consequências. Afinal, a agenda da ortoxia neoliberal e mais importante e os ataques covardes dos bolsonaristas zumbis ajudam a silenciar a esquerda.

Apropriação semiótica da crítica ao conhecimento científico

Mas é claro que sempre essa apropriação semiótica é “canastrona”: o discurso apropriado pela alt-right será sempre caricato, exagerado, overact. Repete como farsa o discurso crítico original da esquerda. 

Atacar a Globo virou xingamento e agressões e não mais uma crítica sistematizada como historicamente, desde a ditadura militar e a decorrente formação dos monopólios midiáticos, a esquerda procurou fazer no campo jornalístico e acadêmico. 

Outro exemplo disso é o oferecido pelo artigo do professor da Federal de São João del-Rei (UFSJ), Francisco Fernandes Ladeira, “Crítica à Ciência: histórica causa da esquerda, atualmente apropriada pela extrema direita” – clique aqui.

O campo progressista intelectual e acadêmico sempre foi crítica ao conhecimento científico nas sociedades capitalistas, denunciando-o como instrumento do capital e da dominação ideológica burguesa.

 Sempre o questionamento era sobre a suposta neutralidade científica, desde as críticas ao Positivismo de Theodor Adorno até as desconstruções epistemológicas de Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Bruno Latour. Ou as críticas pós-modernas de Jean Baudrillard e Paul Virilio.

O cerne era o questionamento do desenvolvimento científico, sempre mostrado de forma acrítica sem levar em consideração os efeitos do aprofundamento da desigualdade, luta de classes, controle e vigilância.

 Essa crítica à Ciência foi apropriada semioticamente como parodia pela comunicação alt-right. Sai a burguesia e entram as conspirações alucinadas de uma elite globalista pedófila e satânica (Cf. “Pizzagate”). O resultado foram, p. ex., os delírios antivax e o terraplanismo.

“Já nos últimos anos, com a esquerda, em sua maioria adaptada ao status quo, mergulhada no identitarismo e sem a capacidade questionadora de outrora, coube à extrema direita preencher a lacuna de principal setor crítico à ciência” – LADEIRA, Francisco Fernandes, “Crítica à Ciência: histórica causa da esquerda, atualmente apropriada pela extrema direita”.

O resultado é o silêncio da esquerda sobre qualquer questionamento às Big Techs ou Big Pharmas, sob o risco de ser confundida com o discurso paródico conspiratório-terraplanista. 

Como sintetiza Francisco Ladeira, “setores da ciência que estão unicamente a serviço do grande capital continuarão avançando sem maiores problemas e seus críticos vistos como indivíduos excêntricos, que usam chapéu de alumínio e apresentam posicionamentos exóticos”.

Wilson Roberto Vieira Ferreira – Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no “Dicionário de Comunicação” pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros “O Caos Semiótico” e “Cinegnose” pela Editora Livrus.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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12 Comentários

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    1. Sr. Paulo não entendeu bem o texto… o artigo questiona como a esquerda cai na armadilha do discurso da “defesa da liberdade de imprensa” e do “jornalismo isento e profissional” saindo em defesa de uma notória “colonista” do jornalismo de guerra… o sr.lembra da foto dela ao lado de outras jornalistas da Globonews comemorando a missão cumprida após o impeachment da Dilma?… Não é defesa da violência, é um alerta à perda de memória ou síndrome de Estocolmo da esquerda.

      1. Perfeito seu artigo. Ao que questiona de forma romantizada, este é o fruto da esquerda liberal que esquece os ataques e prioriza uma ilusória conciliação acima de qualquer coisa.

      2. Entendi, mas preocupa-nos? o fato de fundo, o campo progressista, para defender o governo – um adendo, será mesmo se o Lula e o PT, hoje, são mesmo progressistas? O Haddad, só ele?, é neoliberal – faz o jogo do neoliberalismo, ideologia, só para lembrar, que lhe quer ver como caveira.

        1. Oi Francisco… muito bom seu artigo, bem didático. Na volta da Live, dia 15, será também citado e discutido… aproveitando a oportunidade, poderia entrar em contato comigo por e-mail?… A ideia seria combinar uma entrevista para uma das Lives, sobre o artigo… abraços!

  1. Em 2013 a esquerda já tinha perdido o bonde. Um movimento nitidamente de origem popular e à esquerda contra ícones do sistema direitista foi ignorado e não teve apoio partidário. Posteriormente não soube reagir ao golpe contra Dilma que foi derrubada por jogada temerosa e com apoio global. Onde estavam os líderes da esquerda ? Na sequência o juiz em Curitiba subverteu o processo legal com a famigerada lavajato.E daí aos mensalões. A esquerda acuada perdeu as ruas e o discurso. Lula hoje é símbolo da ausência e submissão ao andamento proposto pela direita. Gostei do teu texto a, didaticamente, mostrar erros de uns e acertos de outros. Ao fim e ao cabo nada mudou no quintal.

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