Hipóteses para explicar a vulgarização do conservadorismo

Hipóteses para explicar o processo de vulgarização do pensamento conservador brasileiro

 

 

Com a ascensão em 2003 – pela primeira vez no atual regime democrático – de um governo de centro-esquerda no Brasil, criou-se uma oportunidade para o desenvolvimento de um nicho reacionário popularesco – visualizado por exemplo por meio da análise da trajetória de figuras como o Reinaldo Azevedo, que transitou de uma centro-direita liberal e até modernizante para um extremismo moralista quase sem precedentes. Ele e vários outros, na verdade, ocuparam um espaço vazio, cada vez mais aberto conforme o jornalismo mainstream realizava a escolha de efetivamente funcionar como oposição ao PT. Esse flanco até então desocupado era exatamente o da extrema direita não-intelectualizada, mas capaz de falar com algum “refino” para as classes médias dotadas daquela cosmovisão autocentrada, preconceituosa e liberal apenas com relação aos seus privilégios, e que passaram, na última década, a sofrer o “duro” convívio no mesmo nível com aqueles que eram, até então, seus subordinados quase-naturais. A lacuna, a meu ver, existia exatamente porque os intelectuais de direita não conseguiam falar para esses setores intermediários semiinstruídos a que fiz alusão acima. Era como se não houvesse uma representatividade clara e bem definida para o que hoje se costuma chamar de “reacionários de sofá”.

 

 

 

Um símbolo claro desse processo de vulgarização é o que ocorreu com o Manhattan Connection. Paulo Francis era, até então, a sua principal figura e, possivelmente, um dos únicos e melhores representantes dentre aqueles capazes de fazer a ponte entre os intelectuais conservadores e o público médio. Diogo Mainardi, que ocupou seu lugar após sua morte em 1997, foi, por vários anos, personagem “café-com leite” do programa. Não raro era observar o Lucas Mendes chamando-o para falar com tom irônico ou mesmo de chacota (do tipo “- Vai, diz aí alguma coisa, Diogo!”), sem dar-lhe réplica posterior ou sequer interagir com seus comentários. De meados do primeiro mandato de Lula em diante, Mainardi se tornou o protagonista do show, virando referência e interlocutor respeitável para qualquer questão. William Waack foi outro sujeito que adquiriu considerável projeção conforme avançava o governo Lula; em paralelo, o que acontecia era a subida vertiginosa de seu tom irascível contra qualquer coisa que soasse progressista. Seu programa na GloboNews, o “Painel”, deixou em boa medida de ser um espaço de debate plural sobre questões contemporâneas para se tornar um muro de lamentações de consultores e pensadores pesadamente conservadores (como Roberto Romano) contra o governo brasileiro. Isso passou a ser ainda mais perceptível em suas aberturas diárias no Jornal da Globo (que são verdadeiros editoriais travestidos de “falas lúcidas de boas vindas”), voltadas aos reacionários de sofá que se consideram mais instruídos do que a média, mas que vociferam os mesmos posicionamentos dantescos sobre a humanidade em geral.

 

 

 

Mesmo a GloboNews, que se propunha a fazer um jornalismo mais open-minded do que o realizado pela sua contraparte no sinal aberto, tem se tornado cada vez mais monotônica, ainda que ao menos o Silio Boccanera e o Geneton Moraes Neto (dentre outros), promovam reflexões mais sofisticadas e que, em geral, respeitam bem o princípio básico – constitucional e jornalístico – do contraditório. Talvez até a Monica Waldvogel possa ser considerada razoável nesse sentido – apesar de seu flagrante conservadorismo –, pelo menos por levar ao seu “Entre Aspas” pessoas com posições políticas razoavelmente distintas na maioria dos casos.

 

 

 

Em suma, entendo que o esvaziamento intelectual que observamos dentro do pensamento conservador foi ocupado por jornalistas (ou pretendentes a tal ofício) com linguagem cada vez mais vulgar, tom cada vez mais histriônico e posição política, econômica e moral cada vez mais conservadora. Considero que a radicalização desse movimento ocorreu inclusive em razão de uma lógica de mercado, em atendimento aos segmentos medianos perenemente insatisfeitos com o governos Lula e Dilma. Esse é um lado do processo. O outro é a articulação conservadora mais por cima, de nível corporativo, desenvolvida pelas grandes empresas de mídia, que se consolidaram cada vez mais com voz da oposição conforme as agremiações políticas de ofício se tornavam crescentemente incapazes de contrarrestar o reformismo do PT. O intelectualismo, com penetração cada vez menor, foi sendo substituído pelos articulistas de falas rápidas e tonitruantes, alicerçados e em atendimento aos interesses dos oligopólios da imprensa. O Instituto Millenium é apenas o arranjo organizacional que busca integrar de forma “produtiva” essas facetas empresariais e intelectuais, sendo que esse segundo elemento da equação está já todo inserido – como funcionários ou contratados – do primeiro. Não há arejamento de ideias uma agenda mais ampla de debate, pois o Instituto é o marco de desenvolvimento de todo esse processo descrito anteriormente, marcado pela concentração de um nicho de pensamento único preocupado não em apresentar e elaborar uma filosofia conservadora voltada a se colocar como uma alternativa ao governo, mas sim em representar uma certa classe média ao mesmo tempo órfã e irritadiça (que parece existir pelo menos desde a aurora do processo de urbanização brasileiro, ainda nos anos 30) e fazer valer, por óbvio, os interesses corporativos de seus chefes. Não há um movimento independente de pensamento conservador, hoje, para fora dos canais da imprensa, e isso é bastante preocupante.

 

 

 

Um adendo relevante a essa tese que apresento é uma hipótese curiosa sobre essa direita raivosa brasileira que se desenvolveu na última década brasileira: quase todos eles bebem de uma fonte comum e bizarra, o “filósofo” Olavo de Carvalho. Vale lembrar que Olavo foi citado ontem mesmo pelo Pastor Feliciano em entrevista ao jornalista Fernando Rodrigues, no exato momento em que afirmava a existência de uma “ditadura gay” no Brasil. Quem cunhou o tempo (ou, pelo menos, o verbalizou nos meios de comunicação pela primeira vez) provavelmente foi o “guru” Olavo. Para quem não o conhece, Carvalho foi, por muitos anos, astrólogo, tendo ficado conhecido por ter previsto (se não me engano em 1972), que a URSS cairia em 1991 de acordo com o mapa astral da revolução de 1917 (!). Olavo que, de acordo com algumas fontes ficou vários anos internado em um sanatório no RJ, foi ganhando espaço nas colunas de jornais conforme aproveitava seus espaços nas seções de astrologia para fazer digressões conservadoras. Seus livros, que fazem uma crítica rígida à modernidade e propõem um certo retorno ao medievalismo ultracristão como saída para a humanidade tiveram certo sucesso e foram elogiados por colegas intelectuais conservadores (creio que Merchior foi um deles) por sua complexidade e rebuscamento. No entanto, sua extrema agressividade enquanto interlocutor jamais permitiu que ficasse continuamente como articulista nos meios de comunicação. Auto exilou-se nos EUA após a vitória de Lula em 2002, por considerar que o comunismo tinha vencido no Brasil (hoje considera que o comunismo venceu no mundo todo, especialmente após a vitória de Obama, em 2008). De lá, passou a apresentar um talk-show pela internet em troca de doações de voluntários conservadores, onde apresenta suas ideias racistas, misógenas e, em muitos casos, lunáticas – já defendeu, em 2006, que Alckmin era um comunista de 3ª geração (gramsciano), um inocente útil que não deveria ter o voto conservador; já argumentou que o furação Katrina era obra de Fidel Castro, que George Soros é um dos maiores comunistas vivos, que o Foro de São Paulo é a agremiação que domina o mundo, e que Isaac Newton não sabia nada de física, dentre outras inúmeras sandices. Por vários anos, Rodrigo Constantino, o atual colunista do Globo, foi um de seus principais interlocutores (Olavo dirigia o Mídia sem Máscara, site que juntava vários pensadores reacionários, e Constantino surgiu publicamente por lá). Romperam há alguns anos, em um debate público bizarro no Orkut.

 

 

 

O curioso disso tudo é que todos esses termos que vemos sendo regurgitados por vários dos colunistas citados mais acima foram apresentados primeiro por Olavo (“petralhas” é um deles). De vez em quando, saem do armário e citam o mestre, confirmando a questão de que nossa direita, hoje em dia, se alicerça em figuras desprovidas de envergadura intelectual e em interesses de mercado e corporativos, em nome da própria sobrevivência (e em representação aos piores comentaristas de internet – aqueles que escrevem as maiores insanidades nas seções da Folha, do Terra, etc, e que representam a os segmentos sociais que se sentem mais vilipendiados pelos governos petistas – e pelo mundo em geral). O Instituto Millenium é apenas a trágica síntese de todo esse processo, e configura o decreto de falência de um pensamento conservador independente, que efetivamente poderia fazer a direita séria sair do armário, defender suas pautas e fazer, finalmente, com que nós progressistas pudéssemos propor uma agenda política mais emancipatória, sem a necessidade de composição com o fisiologismo e de forma a deslocar, por meio de um debate sério de ideias, o espectro político brasileiro pelo menos para um “centro” identificável (e não mantê-lo nessa atual geleia geral amplamente contraditória que existe hoje, inclusive dentro da esquerda). Um caminho inescapável que observo para tanto: a regulação social dos meios de comunicação.

 

Redação

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