Revista Época e o seu jornalismo contra Lula: tragédia ou farsa?, por Camilo Vannuchi

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Revista Época e o seu jornalismo contra Lula: tragédia ou farsa?

por Camilo Vannuchi

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Li a Época. Coloquei as crianças pra dormir e fui lá me reconciliar com o tempo perdido e, de alguma forma, tentar me redimir por criticar sem ler. Na verdade, havia feito uma única crítica à capa, desproporcional, logo cedo, assim que recebi a imagem, enviada por um amigo, com o comentário sobre a data equivocada na legenda. De fato, a foto não é de 1974, mas do início de 1979. Pelo menos até novembro de 1978 ela não foi feita. Lula tinha apenas bigode em fotos tiradas até outubro de 1978 que tenho comigo. E Sandro, o caçula na foto, nasceu em meados de 1978. O fotógrafo deve ter feito a imagem no início da campanha salarial de 1979, aquela que repercutiu nacionalmente e levou Lula a discursar sobre uma mesa, sem equipamento de som, no estádio de futebol da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo. Foi o ano em que o presidente do sindicato consolidou sua liderança política e decidiu, coletivamente, fundar um partido dos trabalhadores.

Ao longo do dia, o patrulhamento com a data impressa na capa me pareceu desproporcional. Acabei vendo dezenas de posts com o mesmo teor. Muitos lembraram que o Fiat 147, estacionado em frente à casa, só começaria a ser fabricado em 1976, o que também não sei se é verdade. Que a internet não perdoa, todos sabemos. E a trollagem geral seguiu o mesmo roteiro de usar a data como bode expiatório: se até a legenda da foto da capa está errada, imagina o rigor na apuração do resto da matéria, foi basicamente o que correu por aí. Essa percepção me parece exagerada. Ou equivocada. Por dois motivos: o primeiro é que, na minha opinião, fatos vividos há quase 40 anos não configuram o arroz-com-feijão do trabalho jornalístico e, por isso, a competência do bom repórter não pode ser medida pela capacidade de narrar com precisão episódios que são da competência de historiadores. Sob esse aspecto, é perdoável que haja deslizes desse tipo. O que não deve haver é erro na apuração sobre os fatos cotidianos, sobre aquilo que é notícia. A rigor, até a escolha desta foto para a capa me parece anacrônica, extemporânea. O segundo motivo é que os problemas mais graves que eventualmente possam ser localizados na reportagem não têm origem em erros, mas em escolhas deliberadas. E confundir erros com escolhas deliberadas (decisões editoriais, opções de recorte, manipulação ou má fé) é, mais uma vez na minha opinião, parte da razão pela qual temos, hoje, uma imprensa mediana no Brasil.

Biógrafo de Marisa Letícia, acabei flagrando outras três derrapadas semelhantes no decorrer da leitura. Na página 25, os jornalistas dizem que determinado apartamento foi adquirido pouco antes do casamento de Sandro com Marlene, “relacionamento que já se estendia por uma década e daria o primeiro neto ao ex-presidente, em janeiro de 2012”. Bom, eu não faço ideia de quando Sandro e Marlene começaram a se relacionar. Mas sei, e isso é facilmente localizado na internet, que o ex-presidente já tinha quatro netos antes do nascimento do filho de Sandro e Marlene. A primeira neta de Lula, aliás, tinha 16 anos de idade em janeiro de 2012. O primeiro neto tinha 15. E o próprio Sandro já tinha um filho, fruto de um relacionamento anterior.

Na página 36, a imprecisão vem em forma de maldade. Após informar que Lurian é assessora parlamentar na Assembleia Legislativa do Rio e presidenta do diretório municipal do PT em Maricá (RJ), o texto passa a descrever o primogênito de Marisa, adotado por Lula: “Outro integrantes da família que se aventurou na política foi Marcos Lula da Silva, mas por via das urnas”, diz a matéria. “Candidato a vereador na última eleição por São Bernardo do Campo, teve 1.504 votos e foi derrotado”. Os repórteres “se esqueceram” de contar que a “aventura” de Marcos inclui um mandato inteiro como vereador, eleito em 2012 com 3.882 votos, e uma temporada como diretor municipal de turismo, entre 2009 e 2012.

Uma terceira incorreção eu encontrei na página 37. “Marcos era pré-adolescente quando Lula ficou preso por 31 dias por ter liderado uma greve dos trabalhadores no ABC Paulista, em 1980”. Me perdoem os muito progressistas, mas Marcos tinha 9 anos em abril de 1980. Era uma criança. Uma criança que, um ano antes, na greve de 1979, ficara impressionado ao testemunhar dois helicópteros do Exército sobrevoando o estádio da Vila Euclides com soldados apontando metralhadoras para a multidão lá embaixo. Tinha 8 anos. Uma criança que, aos 9, descobriu o bullying antes mesmo de esta palavra existir quando colegas de escola passaram a dizer que seu pai estava preso porque era bandido, porque era ladrão.

Como biógrafo da Marisa, tenho alguma facilidade para verificar as informações mais históricas, ao mesmo tempo em que sei muito pouco do atual andamento da Lava Jato e praticamente nada sobre o patrimônio e os negócios de seus filhos. Por esse motivo, tenho dificuldade em comentar o teor da reportagem naquilo que realmente interessa à Justiça, ao público e aos jornalistas que escreveram o texto. Também não conheço Débora Bergamasco, ex-IstoÉ, e Thiago Herdy, repórter do jornal O Globo e presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) até o ano passado. Ambos me procuraram dias atrás em busca de informações que não fui capaz de esclarecer — porque não frequento a família Lula da Silva, não acompanho os processos com a atenção necessária e também não me senti à vontade para falar sobre isso. Diziam, os jornalistas, que queriam contar, dois anos após o início da “devassa” na vida dos Silva, como a família estava vivendo: se os filhos tinham dado a volta por cima, se demonstravam angústia, se acreditavam ser vítimas de injustiça. Por fim, afirmavam que a revista havia ingressado em nova fase, dedicada apenas a reportagens, em detrimento da opinião e dos textos editorializados.

Não foi bem isso que senti ao ler a matéria. A própria manchete me fez lembrar episódios recentes do jornalismo acusatório, o tipo de divulgação que os advogados têm chamado de lawfare. “O que a Lava Jato tem — e vai usar em breve — contra os Lula da Silva” traz algo de “Eles sabiam de tudo”. Coloca uma operação da Polícia Federal escandalosamente na posição de adversária, de inimigo disposto a usar suas armas “contra” o réu, relegando a escanteio a presunção de inocência e qualquer aroma de imparcialidade. E emite um recado claro: qualquer que seja o resultado do julgamento no dia 24, o cerco a Lula vai continuar, com novos elementos, de modo que é melhor condená-lo logo, para não procrastinar o que é inevitável, o que não tem saída. E ai dos juízes que resolverem se ater às provas e proferir seu voto com independência.

Por fim, fiquei pensando na revista Época. É notável como a publicação, nos últimos cinco anos, enveredou por um caminho avesso ao debate franco, à multiplicidade de vozes, à atividade do editor como um curador oportuno das informações caras ao exercício da cidadania e da democracia. De certa forma, é como se ela tivesse desistido de disputar mercado com a Veja por um caminho alternativo e optado por mimetizar o que a Veja faz. Convivi mais ou menos de perto com a equipe da Época até 2012, quando deixei a Época São Paulo, revista em que trabalhava. Desde então, houve uma debandada geral das pessoas que eu conhecia, o que me coloca numa posição de difícil percepção e difícil julgamento. A revista ainda tem uma revisora que eu amo (revisora, e não checadora, o que faz diferença em relação aos erros que mencionei acima), uma das melhores jornalistas de medicina e saúde do Brasil (possivelmente a melhor), e um articulista que é ótimo professor universitário e meu orientador no doutorado (ele tem sido melhor na Academia do que como articulista, acredito). Recentemente, Época perdeu seu diretor de arte e autor das capas, o que talvez explique o primarismo visual da edição em mãos.

O que a revista não perdeu foi a vocação por julgar e emitir opiniões quase sempre alinhadas com o desejo do anunciante, em detrimento da justa medida e da diversidade. É sintomático, por exemplo, que a edição de hoje tenha chegado às bancas com quatro artigos, todos assinados por homens. Dois deles falando sobre assédio e festejando o manifesto das 100 francesas, aquele da Catherine Deneuve. Homens falando sobre mulheres e sobre feminismo, dizendo o que é certo e o que é errado, explicando como mulheres devem ser e agir. Curiosamente, a melhor matéria da edição é uma resenha ampliada do novo filme de Spielberg, “The Post”, que estreia no Brasil na próxima semana: uma matéria que resgata Spotlight e Todos os Homens do Presidente para afirmar, no título, que “o jornalismo está na moda”. Será mesmo? Como tragédia ou como farsa?

PS: Saudade da turma boa que conheci na Época ao ingressar na Editora Globo, como repórter, exatamente 10 anos atrás. “O que foi feito, amigo, de tudo que a gente sonhou? / O que foi feito da vida? / O que foi feito do amor?”

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

6 Comentários

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  1. Mandamento para a vida: nunca

    Mandamento para a vida: nunca acredite nem confie em nada do que vem da Globo. Tudo que ela produz ou faz é falso, deturpado, manipulado, mentiroso ou porcaria. Pra mim a Globo mente até quando diz a verdade.

    O Brizola já tinha avisado que é assim, mas, Deus! Como é difícil das pessos entenderem!

  2. Faça o que eu digo, não faça o que eu faço

    Consta no site da Abraji que Thiago Herdy é o atual presidente, independente do mandato para o qual foi eleito. Não consta “cargo vago”, e a duplicidade de entendimento proporcionada pelo trecho abaixo reproduzido, para o autor do artigo, seria apenas um erro ou manipulação? 

    “Presidente da Abraji

    Thiago Herdy é presidente da Abraji para o biênio 2016-2017 e repórter de política do jornal O Globo em São Paulo. Atuou como correspondente do mesmo veículo em Belo Horizonte (MG) e nos jornais Estado de Minas, Diário da Tarde e Diário do Comércio. Vencedor do prêmio Esso 2008 e 2010, nas categorias regionais, e menção especial do Prêmio IPYS/Transparência Internacional, 2009 e 2011. 

    Vice-presidente da Abraji

    Vladimir Netto é repórter do Jornal Nacional da TV Globo. Antes, passou por Jornal do Brasil, Veja e O Globo. Foi o jornalista que revelou as contas secretas do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, o que o levou a perder o cargo e o mandato. Em 2016 lançou seu primeiro livro: “Lava Jato: o juiz Sérgio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil”. “

     (fonte: http://www.abraji.org.br/institucional/#quem-somos, consulta em 20 e 22/01/2018). 

     

    SP, 22/01/2018 – 10:03

  3. Neses tempos sobrios, em que

    Neses tempos sobrios, em que a midia já promoveu eventos escabrosos,

     

    acreditar que vão se regenerar é ter muita fé. Enquanto esperam pelo milagre, o que se ve é, aqueles que ainda sobraram afundarem-se mais no lodaçao. A velha midia morreu, é um cadavér putrefato cambaleando á procura de uma tumba, quando deitar para seu sono eterno algo novo terá que brotar….. 

  4. Pareio de ler aqui:
    “Muitos

    Pareio de ler aqui:

    “Muitos lembraram que o Fiat 147, estacionado em frente à casa, só começaria a ser fabricado em 1976, o que também não sei se é verdade.”

    O ano atribuído à foto é, sim, muito importante. A falta de vontade ou falta de capacidade de apurar algo tão simples como a data da foto e ainda estampar o erro grotesco na capa colocam em cheque qualquer outra informação mais complexa.

  5. Há tempos essa revista vem

    Há tempos essa revista vem competindo com a veja e isto é em reportagens de baixa qualidade jornalística e extremamente tendenciosa. Seus leitores e assinantes são compostos apenas de desavisados e extremistas conservadores.

  6. Penso que jornalistas

    Penso que jornalistas criminosos deveriam ser presos pelo mal que causam à sociedade.

    O papel de imprensa deveria ser informar e não alienar. Deveria fornecer a informação imparcial e sem opinião para que aquele que ler possa ter a sua própria opinião.

    Uma imprensa mentirosa e manipuladora é o que de pior pode existir em qualquer situação e lugar.

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