Repetir o discurso da meritocracia seria leviano e cruel, diz músico, por Arnaldo Cardoso

É com essas palavras que o jovem violonista Plínio Fernandes afasta o discurso da meritocracia e reconhece uma combinação de fatores como decisivos para a realização de seu sonho de tornar-se músico profissional.

Repetir o discurso da meritocracia seria leviano e cruel, diz músico

por Arnaldo Cardoso

“Talvez fosse fácil para mim repetir o discurso da meritocracia e dizer que todas as coisas incríveis que aconteceram em minha trajetória até esse momento foram frutos do meu trabalho, do esforço, do “rala que rola”, mas eu estaria sendo leviano e cruel ao dizer isso”. É com essas palavras que o jovem violonista Plínio Fernandes, recentemente titulado com mestrado pela Royal Academy of Music, de Londres, onde também cursou seu bacharelado, afasta o discurso da meritocracia e reconhece uma combinação de fatores como decisivos para a realização de seu sonho de tornar-se músico profissional.

Estímulo e apoio familiar; excelentes e dedicados professores de música; conselhos valiosos como aquele do músico e professor Fábio Zanon sobre “pensar bem, reconhecer o que realmente queria e se dedicar para isso”; o exemplo inspirador de pessoas como  João Luiz Rezende – do Brasil Guitar Duo –, Franciel Monteiro, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Djavan, entre outros; o apoio institucional através de concessão de bolsa de estudo (Capes), foram decisivos, segundo Plínio Fernandes, para em conjunto com sua determinação em estudar música, encontrar os meios e manter acesa a chama para superação de obstáculos e tabus.

Vivendo em Londres desde 2014 e, desde setembro passado empenhado na transição da vida de estudante de música para a de concertista solista profissional em busca da consolidação de uma carreira que, embora ainda no início, já registra importantes feitos e reconhecimento, Plinio expôs em uma longa entrevista, parcialmente publicada abaixo, marcos de sua trajetória como estudante de música, como cidadão brasileiro vivendo no exterior, como jovem negro consciente das feridas ainda abertas do racismo pelo mundo, mas sobretudo confiante e disposto para realizar seus sonhos – entre eles o de promover a música brasileira internacionalmente – e ao mesmo tempo contribuir com as mudanças sociais que o presente clama.

AC – Em entrevistas recentes veiculadas na grande mídia você relatou uma série de eventos imprevistos como a perda de prazo – pela burocracia oficial – para sua matrícula na Royal Academy of Music que lhe custou o adiamento do início de seus estudos em Londres; a atual pandemia do coronavírus que impôs o fechamento de teatros e salas de concertos, impediu seu retorno ao Brasil e terminou levando-o a uma temporada na casa dos Kanneh-Mason (família de músicos ingleses) e maior exposição nas redes sociais; e até mesmo infortúnios, como a morte inesperada de um querido professor  (Henrique Pinto) que lhe deixou um ano em luto e sem acompanhamento. Mas todos esses eventos imprevistos terminaram sendo convertidos em oportunidades para seu desenvolvimento. Qual interpretação você faz disso? O mundo conspira ao seu favor, ou desde cedo você desenvolveu a habilidade da resiliência?

PF – Me considero uma pessoa de muita sorte por ter uma família excepcional que sempre me apoiou incondicionalmente desde o primeiro contato que eu tive com a música; por ter tido professores geniais que me transmitiram não só o conhecimento artístico, musical, técnico, mas principalmente a paixão pela música e pela arte. Sorte também por ser brasileiro, e ter crescido num ambiente tão rico culturalmente. Todas essas influências me moldaram como artista e eu sou muito feliz por isso. Sobre resiliência, eu diria que esse amor pela música sempre me deu uma certeza interior de que daria certo. Todas essas coisas aliadas me deram força para enfrentar os momentos de dificuldades.

AC – Quando você tinha 17 anos, já tendo aulas com o Fábio Zanon (que é professor convidado em cursos da Royal Academy of Music), no momento de prestar vestibular decidiu “dar um tempo” para sentir o que de fato queria. Você considera que esse momento foi decisivo para o seu futuro?

PF – Esse foi um período muito importante para eu planejar os próximos passos para concretização de meu desejo de estudar música no exterior. Ouvindo amigos que já faziam graduação no Brasil, eles endossaram minha avaliação de que isso seria bom dado ao fato de eu já estar em nível avançado dos estudos de violão. Em conversa com o professor Fabio Zanon ouvi as recomendações de que aproveitasse o ano para ler bastante, manter-se intelectualmente ativo e estudar inglês seriamente. Foi o que eu fiz e terminou sendo muito produtivo.

AC – Tanto você quanto seu amigo Sheku Kanneh-Mason já apontaram como decisivos a presença e estímulo de músicos no ambiente familiar – no seu caso pai e bisavô – para o desenvolvimento de suas paixões pela música. No caso de milhares de jovens – especialmente olhando para o Brasil – em cujas vidas esses fatores não estão presentes, como estimular e incentivar a curiosidade e paixão musical e artística de jovens que são pressionados por direcionar suas energias para a aquisição de conhecimentos técnicos úteis ao exercício de profissões mais convencionais sinalizadas pelo mercado de trabalho?

PF – Considero que o lugar ideal para que isso ocorra seja a escola. Eu defendo o ensino de música como matéria do currículo de escolas públicas e privadas. Ensino musical, de artes, com métodos dinâmicos que mantenham o interesse do(a)s aluno(a)s. O contato com a arte desde cedo é muito importante pois tem efeitos magníficos no desenvolvimento integral da criança. As habilidades desenvolvidas no aprendizado da música – que em inglês são chamadas de transferable skills – podem ser aplicadas em muitas outras esferas da vida. Mesmo que a criança não venha a se tornar um artista profissional, o estímulo do gosto pela arte traz incontáveis benefícios.

Além do ensino da música nas escolas, os projetos sociais também podem cumprir papel decisivo, como é o caso do Projeto Guri em São Paulo. Eu conheço músicos excepcionais egressos desse projeto e, cá para nós, o Brasil é mesmo um celeiro de talentos e o que muitos precisam é do acesso ao ensino artístico, e não só da música, mas também da dança, do desenho, da pintura, da poesia, e todas as outras.

AC – O Brasil vive hoje um apagão em termos de políticas públicas para a cultura. Entretanto, ainda há iniciativas de artistas, entidades e grupos da sociedade civil organizada voltadas ao estímulo e apoio a projetos culturais. Há também agências, como é o caso da Fapesp, que mantém programas de financiamento de projetos e bolsas de estudos para jovens artistas. Em seu processo de formação acadêmica como músico, você contou com uma bolsa financiada pela Capes, não é mesmo? Como você avalia esse tipo de apoio?

PF – Sim, eu tive uma bolsa integral da Capes durante os quatro anos do meu bacharelado na Royal Academy e os dois anos seguintes (mestrado) eu cursei com apoio de mecenas e de pessoas que me apoiaram por aqui. Eu considero que o governo brasileiro deveria criar bolsas de estudo de artes no exterior, aproveitando aprendizados do Programa Ciência Sem Fronteiras.

No caso da Royal Academy of Music assim como de outras instituições de excelência na Inglaterra, Estados Unidos e outros países, as taxas escolares são elevadíssimas. Quando eu cheguei eram 17 mil libras por ano, e hoje com reajustes inclusive provocados pelo Brexit, são 27 mil libras anuais, só de taxas escolares, o que torna impraticável para estudantes que não sejam de famílias ricas, situação agravada para brasileiros considerando a conversão do valor em reais, hoje bastante desvalorizado. Para mim só foi possível por ter obtido aquele tipo de bolsa da Capes, que lamentavelmente foi extinta. Tenho consciência do privilégio que foi essa bolsa e pretendo recompensar o meu país por esse investimento público em minha formação.

AC – Particularmente no caso de jovens negros, você considera que as dificuldades para formação e inserção profissional são ainda maiores? Você considera importante os sistemas de cotas raciais?

PF – Sem dúvida, os jovens negros têm muito mais dificuldades no mercado de trabalho em geral e não seria diferente no mercado musical profissional e, portanto, sou totalmente favorável às cotas raciais e considero válida toda iniciativa que vise diminuir esse abismo social provocado pelo racismo estrutural existente no Brasil – que alguns ainda insistem em negar – e que as pessoas pretas sentem todo dia na pele. Talvez fosse fácil para mim repetir o discurso da meritocracia e dizer que todas as coisas incríveis que aconteceram em minha trajetória até esse momento foram frutos do meu trabalho, do esforço, do “rala que rola” mas eu estaria sendo leviano e cruel ao dizer isso. Portanto sou favorável às cotas raciais e ao nivelamento de oportunidades.

AC – Numa entrevista você disse que foi impulsionado pelo sonho de estudar na Royal Academy of Music onde boa parte dos seus ídolos estudaram e hoje dão aula. Numa perspectiva de futuro, você considera a dedicação ao ensino da música uma possibilidade futura em sua carreira?

PF – Sim, eu adoro dar aulas, tenho alunos desde meu segundo ano em Londres e é muito gratificante observar o desenvolvimento deles. O que eu tento transmitir aos alunos é aquilo que meus professores transmitiram, que é primordialmente o amor e a dedicação à música, além do conhecimento técnico e teórico. Considero importante que o estudo da música seja feito com prazer e não apenas como uma atividade extra. Observar a quantidade de atividades que as crianças (das classes mais favorecidas) realizam e a expectativa de muitos pais de que as elas sejam super heróis, faz faltar tempo para essas crianças experimentarem o ócio, dar vazão à intuição e à criatividade.

Embora meu plano seja ser um concertista eu considero também dar aulas em boas instituições de ensino, talvez como professor convidado, pois também aprendo muito com os alunos e me inspiro.

(A primeira parte desta entrevista com o músico Plínio Fernandes está disponível em: https://jornalggn.com.br/artes/a-diplomacia-musical-de-plinio-fernandes-por-arnaldo-cardoso/ ).

Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador