
Samba macarrônico (2)
por Walnice Nogueira Galvão
Se entendermos “macarrônico” no sentido mais amplo, poderemos incluir duas composições que não o são apenas na linguagem, mas sobretudo no entrecho: História do Brasil e Samba do crioulo doido. Ambos efetuam um processo de carnavalização que incide mais sobre o significado, ao contrário das composições de Adoniran Barbosa que são macarrônicas no significante, quando utilizam a linguagem corrompida. Quem quiser se enfronhar mais neste assunto, pode contar com a excelente tese de Rachel Valença, Palavras de purpurina: estudo linguístico do samba-enredo. Ali, a pesquisadora da Casa de Rui Barbosa e membro da Velha Guarda do Império Serrano mostra a compatibilidade entre as empoladas letras do samba-enredo e as cintilações dos paramentos do desfile.
Estes que examinamos hoje são delirantes, alucinatórios, anárquicos, surrealistas mesmo. Cortejam a incongruência definida por Lautréamont e apropriada pelos poetas surrealistas: “Belo como o encontro fortuito, sobre uma mesa de dissecção, de uma máquina de costura e um guarda-chuva.”
Um deles, aliás não um samba mas uma marchinha, leva o atrevido título de História do Brasil. Seu autor, Lamartine Babo, é um dos mais extraordinários compositores de música popular que já houve entre nós, de uma fecundidade fora do comum, que emplacava marchinhas de sucesso em todo carnaval. Ele mesmo era um folião fanático, sempre fantasiado de “Viúva”: sedas negras, rosto sob véus, luvas rendadas. E não compunha só marchinhas, também compôs música clássica, canções para teatro de revista e um hino para cada clube de futebol do Rio de Janeiro. Grande boêmio mas grande trabalhador, tinha dez empregos ao mesmo tempo, atuando no rádio, no jornal, no teatro, nos concursos populares, chegando até os primórdios da televisão. Seu traço fundamental é a irreverência. Mas vamos à História do Brasil.
Começa pela pergunta: “Quem foi que inventou o Brasil?”, quando na escola nós todos aprendemos que o Brasil não foi inventado mas descoberto. E logo responde:
“Foi seu Cabral! Foi seu Cabral!”
E em que data?
“No dia 21 de abril
Dois meses depois do Carnaval”
É notável: a data de fundação da nação é o Carnaval, e não o descobrimento…
Depois, continua trazendo à tona os ícones da pátria:
“Depois Ceci beijou Peri
Peri beijou Ceci
Ao som, ao som do Guarani.
Do Guarani ao guaraná
surgiu a feijoada
E depois o parati”
Esses ícones são: os protagonistas da ópera indianista de Carlos Gomes; o refrigerante típico do Brasil; a feijoada; e a cachaça, ou parati, como então se dizia. Hoje diríamos que faltou apenas o futebol, porque o samba está subsumido no Carnaval. E não termina aí.
Três décadas depois (1934-1968) surgiria outro, o Samba do crioulo doido, da autoria de Sérgio Porto, sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta. Mais minucioso em sua porfiada paródia de um samba-enredo, vai com deliberação carnavalizar os ícones da pátria. A premissa de base é a conhecida obrigatoriedade de que o samba-enredo para o desfile no Carnaval deve tratar temas da História do Brasil. Donde os maiores absurdos.
Uma trama complicadíssima vai pôr em cena Juscelino Kubitschek, Diamantina, a princesa Leopoldina, Chica da Silva, Tiradentes, Anchieta, D. Pedro II, e assim por diante. De absurdo em absurdo, o samba termina por celebrar a Proclamação da Escravidão, devidamente atribuída a seus autores, anteriormente mencionados, Tiradentes e Pedro II, este último o título com que Anchieta “se elegeu”:
“Da união deles dois ficou resolvida a questão
E foi proclamada a escravidão!”
Além de serem boas composições, tanto a marchinha quanto o samba são divertidíssimos, inteligentes e de balanço irresistível. Operam comentário sagaz à solenidade do samba-enredo e aprofundam os sentidos da carnavalização.
Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

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