
O livro do Vargodarçajangobrizolismo
por Helid Raphael
“(…) O óbvio, é a verdade mais difícil de se enxergar”. – Clarice Lispector
Um pouco antes do início desses sombrios tempos de pandemia, meu amigo José Sérgio Rocha estampou no Facebook: “Nei Lopes é o maior intelectual brasileiro vivo”. Eu, então, pensei: “Puxa vida! Não sou o único que acha isso”. Hoje lembrei de João Saldanha. Ainda muito jovem (embora na época não achasse isso) fui entrevistá-lo. Ao falar sobre Althemar Dutra de Castilho, ex-jogador e cartola do Botafogo de Futebol e Regatas, disse: “Teté é um dos dez homens mais burros do Brasil”. Eu perguntei: “quem são os outros nove?”. Saldanha, então, disse sorrindo: “não conheço mas certamente estão por aí”.
Todo esse “nariz de cera” é porque abriria esse humilde texto afirmando que Gilberto Felisberto Vasconcellos é, para mim, o maior intelectual vivo do Brasil. Mas aí lembrei que há bem pouco tempo eu diria o mesmo de Nei Lopes e certamente devem existir mais alguns. A Gilberto Felisberto devo (embora ele não saiba) conhecer Vivian Trias, a Fundação que leva seu nome, e, principalmente, Luis Vignolo, meu irmão oriental, o homem nexo da Pátria Grande e que me apresentou aos irmãos argentinos, uruguaios e paraguaios do pensamento nacional íbero-americano. Também lhe devo o que aprendi com seus artigos na Caros Amigos, mas principalmente com seus livros e as portas que me abriram para Abelardo Ramos, Jauretche, Spilimbergo, Methol, Scalabrini Ortiz…e, principalmente, Perón.
Agora lançou um novo livro, em edição do autor disponível na Internet. O nome é “Leonel Brizola, A História, O Historiador”, obra que deveria ser lida e discutida por todos que querem um Brasil justo, soberano e feliz para seus filhos. O livro é coerente. Nele, o Gilberto defensor da oralidade não paga tributo ao academicismo, o texto se desenvolve como se fosse uma conversa no botequim ou no fundo do quintal. E tem logo no início a grande questão.
O petucanismo, monstro gerado nos laboratórios da CIA, inoculado no Brasil por Golbery e parido pela USP, que arou o terreno para a estética prenhe de ideologia da telenovela da Globo e os pastores neopentecostais que produziram Bolsonaro e seus milicianos, tornou-se possível pelo recalque de 1964. O ocultamento dos reais motivos de 1964 e seus autores, o banimento do trabalhismo getulista, com a denúncia da ditadura apenas como um ciclo autoritário e a promoção do esquecimento de seu projeto econômico, cultural, social e político, está na raiz da falta de perspectiva que hoje vivemos para a retomada do processo de construção nacional iniciado em 1930.
Página após página, o colóquio de Gilberto Felisberto chama para a discussão de cada uma das “verdades” estabelecidas no pós-64. Por que o golpe nunca foi explicado? Nicholas Spikman! Por que o tão incensado Thomas Skidmore tanto ridicularizou as acusações de participação dos EUA no golpe? E o papel de Ulisses Guimarães? Por que não se estuda(ou) o fato de Tancredo Neves nunca ter sido perseguido, preso ou exilado? Por que a historiografia chapa branca nunca se debruçou sobre essas questões?
Essas perguntas permanecem sem resposta porque: O PT no governo não exerceu hegemonia cultural e sim o PSDB; a malandragem dos barões da mídia foi a denúncia do autoritarismo da ditadura deixando encoberta a rapina das multinacionais; a USP se deu bem com a morte do ISEB; os sociólogos da USP criaram o mito do Brasil moderno x Brasil arcaico. Nessa “insurreição”, executada pelo teclado de Gilberto Felisberto, JK também é convocado para explicações enquanto o “cinismo intelectual” da USP/IUPERJ/Museu Nacional é denunciado.
Denunciadas também são as manifestações léxicas do imperialismo ideológico. Flexibilização, transparência, cidadania, sociedade civil, pluralismo, estado de direito, economia verde, sustentabilidade, capitalismo sustentável, capital natural… Segundo o autor, manifestações inconscientes (nem sempre) dos subterrâneos liberais e, portanto, imperialistas.
Outras manifestações típicas da hegemonia ideológica que originou o petucanismo, segundo Gilberto Felisberto, sempre tendo como pilar o recalque do golpe de 1964, são o abismo entre os militares e os civis, a aceitação da dependência (“defendida pelo CEBRAP bancado pela Fundação Ford”) e o “pluriculturalismo pós-modernista”.
Isso se tornou possível com a onda dos “brazilianists” que invadiu a academia no pós-64. Regiamente financiados pelos dólares de tio Sam, colonizaram a Universidade. O efeito foi a desqualificação progressiva do nacionalismo na cultura brasileira. Com isso, esse conceito conectado à defesa dos recursos naturais e estratégicos “do maior território tropical do planeta”, foi abandonado.
O objetivo do golpe de 1964, sustenta Gilberto Felisberto, foi “o de cortar as canecas do nacionalismo trabalhista”. E o conhecimento desse objetivo imperialista, na medida em que a academia recalcou e passou a reescrever a história defendendo com isso os interesses dos patrocinadores do golpe antinacional, foi ocultado da população e particularmente das juventudes que cursaram as universidades brasileiras nas últimas cinco décadas.
O regime oriundo do golpe submeteu o país às corporações multinacionais, desnacionalizando a economia e a cultura. A reabertura democrática com a chamada Nova República deixou esse esquema intacto e o radicalizou. Nas palavras de Gilberto Felisberto, “a confluência petucana concedeu ao imperialismo norte-americano o perdão por ter derrubado João Goulart, os milicos golpistas juram de pés juntos que a orientação não veio da CIA” e a “sociologia acadêmica” defende a tese de que o golpe foi culpa do “populismo”.
O livro transcreve trechos da entrevista que Leonel Brizola concedeu à Montthly Review, publicação destinada à divulgação de pensadores marxistas como Leo Huberman, Paul Baran, Paul Sweezy e os irmãos Harry e Fred Magdoff. Nessa entrevista, concedida dois meses antes do golpe de 1964, além de falar da “bomba de sucção imperialista” e da necessidade da Revolução, Brizola elogia Francisco Julião e afirma que o problema latino-americano tem de ser concebido como de libertação nacional. Sem libertação nacional, afirma ele, não podem existir reformas de base porque não se resolve o problema da pobreza.
Aí, além de afirmar que os problemas da América Latina só se solucionam conjuntamente, Brizola frisa que “somente soluções socialistas permitem a defesa dos povos contra o imperialismo”. Foi com base nessa visão de que a integração é necessária para a libertação que Brizola articulou com Jânio Quadros para que este assinasse com o argentino Frondizi o Tratado de Uruguaiana, que os golpistas de 1964 transformaram em letra morta.
Característica marcante em “Leonel Brizola, A História, O Historiador”, que mais que uma biografia do líder gaúcho (e porque não também carioca), é uma aula sobre a história do país de 1945 até os dias de hoje, é a crítica contundente ao papel desempenhado por Lula e o PT. O livro afirma que o PT nasceu dos sindicalistas das multinacionais de São Paulo, com apoio da Igreja e dos meios de comunicação de massa. Surgiu da crença que o Brasil podia progredir com o capital multinacional. O berço ideológico que gerou o PT (o mesmo do PSDB) ignora completamente que na América latina o nacionalismo é a força revolucionária; que as mesmas forças que derrubaram Vargas em 1954, derrubaram Perón em 1955; e/ou que a II Guerra Mundial não foi exatamente um confronto entre fascismo e democracia mas uma disputa pela repartição colonial do mundo.
Seria consequência dessas limitações o fato da presença multinacional consolidada de 1964 até hoje “não ter sofrido nenhum arranhão” com Lula no poder. Segundo o PT, o bem-estar do povo pode ser obtido sem que se contrariem os lucros dos bancos e das grandes corporações. Brizola denunciou o PT como sendo a “UDN de macacão”, Gilberto Felisberto aponta na mesma direção: “É UDN de macacão pela subordinação ao liberalismo ocultando o papel do imperialismo. (…) Lula é uma projeção sindical de um proletariado burguês. (…) Lula e Dilma não quiseram desagradar o poder mundial. Para Dilma o imperialismo não atrapalha a humanidade. (…) O surgimento do PT dividiu a esquerda e impediu a união das forças democráticas e populares. (…)Os líderes do ABC paulista foram formados no preconceito e na desinformação histórica sobre Leonel Brizola.”
E, tocando em questões muito atuais, lembra que ignorar as profundas contradições políticas existentes entre Lula e Brizola é forma de falsificação da história. Sobre isso lembra fatos como o conhecido (deveria ser mais) “chá de cadeira” que o emergente sindicalista deu em Brizola que foi visitá-lo logo depois da Anistia e pergunta: “a quem serviu o PT?”. Cita a nomeação de Henrique Meireles (funcionário do Banco de Boston) para dirigir a política econômica e o fato de Lula nunca ter tomado medidas contra a “privataria tucana” e ter administrado com “assistencialismo voltado para o subproletariado com o bolsa família” num “amálgama entre latifúndios multinacionais e política assistencialista”.
Tudo isso, destaca, porque a ideologia que gerou o PT recalca também que a luta de classes passa pelas contradições entre nações oprimidas e nações opressoras. Não se pode compactuar com uma política agrícola que deixe a lavoura nas mãos de multinacionais monopolistas como Cargil, Cibas, Monsanto e Dupont. O “agrobusiness” elimina a agricultura familiar e a pequena propriedade com tudo o que isso representa.
Sobre a questão da agricultura, que também só pode ser compreendida de forma ampla num contexto de luta anti-imperialista, lembra que a vitória contra o imperialismo passa pela unidade dos países latino-americanos. Isso porque o projeto da Pátria Grande na perspectiva da construção do socialismo foi/é a espinha dorsal da trajetória de Leonel Brizola. Nesse aspecto chama atenção para o papel destacado desempenhado por Paulo Schilling como assessor de Brizola. Para Gilberto Felisberto, o rompimento de Schilling com Brizola, a quem assessorou do governo no Rio Grande do Sul até o golpe de 1964, nunca teve explicação e foi uma tragédia política. Schilling era marxista, escreveu um livro citado por Gilberto Felisberto: “Como se Coloca a Direita no Poder”, foi um estudioso (e ativista) dos pequenos produtores de trigo do Rio Grande do Sul, da Reforma Agrária, da unidade continental e da luta anti-imperialista. Para ele “o Império brasileiro foi o capataz da Inglaterra”.
Outro destaque no livro de Gilberto Felisberto que despertará polêmica e abre um debate mais que necessário para que se entenda a história real da luta de classes no Brasil é a afirmação do caráter positivo do Estado Novo. Ele critica a “esquerda liberal pró-imperialista”, enfatiza o aspecto policial daquele regime e cita Guerreiro Ramos para quem “o Estado Novo fortaleceu a classe operária”. Ainda nos pontos polêmicos dessa obra que vale a pena ser lida e debatida justamente por isso, está a colocação de que “por mais necessário e inventivo que seja, o CIEP não é na verdade o que caracteriza o trabalhismo de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, e sim a luta pela libertação nacional, que é uma luta anti-imperialista”.
Nessa linha, em que a busca da desmistificação da “história chapa-branca” que recalca a derrota de 1964 torna necessária a iconoclastia, Gilberto Felisberto mostra destemor. Assume a defesa de Oswald de Andrade contra o incensado Mário; afirma ser Antônio Cândido socialista-liberal; fustiga Sérgio Buarque de Holanda, Mário Pedrosa, Florestan Fernandes (todos fundadores do PT) e bate duro em Juscelino “que acionou o Plano de Metas que colocou o Estado ao serviço do capital estrangeiro”, Celso Furtado e Raul Prebisch.
Além de Oswald, elogia Gilberto Freyre, Álvaro Vieira pinto, Guerreiro Ramos, Rui Mauro Marini, Nélson Wernek Sodré, Edmundo Muniz, Bautista Vidal e Glauber Rocha. Sobre Ulisses Gumarães (“apoiador do golpe”), afirma ter tentado excluir Brizola da anistia. Getúlio Vargas cumpriu o papel descrito por Oswald de Andrade: “1930 foi a volta do Jesuíta das Missões do Sul para combater o Bandeirante”. Getúlio, mesmo depois de morto, foi o grande conselheiro e orientador de Brizola em sua luta sem trégua pela libertação nacional e unidade continental.
Se a crítica a Celso Furtado, Santiago Dantas, Tancredo Neves, PSDB e PT é dura, Gunder Frank, assim como Glauber Rocha, é apontado como figura-chave na busca da estratégia anti-imperialista. O Império Globo (o neopentecostalismo e as milícias) é o poderoso instrumento do imperialismo e dos sipaios da classe hegemônica subimperialista de São Paulo.
“O petucanismo é a manifestação político-partidária do projeto de despedaçamento do Brasil. Brizola denunciou o abafamento do escândalo do Banestado pelo PT. O capital internacional se adona do sistema de comunicação. O imperialismo é uma estrutura insuprimível do sistema capitalista; é uma ilusão supor que ele muda de acordo com a personalidade de quem está no governo, como faz crer o “jornalismo” chapa-branca. É simplismo dizer que o golpe de 1964 foi fruto da Guerra Fria. Um afrodescendente no governo não muda nada. O “big negócio” internacional financia a sociologia, os institutos de pesquisa; a análise em termos de democracia, sociedade civil, autoritarismo são um embuste, pois a forma política pode mudar, mas a base da exploração econômica multinacional e o regime social permanecem.” Essas afirmações feitas por Gilberto Felisberto ao longo do livro deveriam funcionar como um repto.
Para ele é necessário que compreendamos finalmente que para nós, íbero-americanos, o motor da história é a contradição entre metrópole e colônia e não, como querem nos fazer crer (e tem feito com sucesso), entre democracia e totalitarismo. “A contradição entre democracia e autoritarismo deu força para a direita”.
Com tudo isso pode-se afirmar sem exagero que “Leonel Brizola, A História, o Historiador” não é apenas mais uma grande contribuição de Gilberto Felisberto Vasconcellos para o pensamento nacional no Brasil. Ao pregar que se faça uma abordagem analítica da trajetória de Leonel Brizola “abandonando a costumeira exortação de sua personalidade e examinando seu pensamento e atuação durante meio século de história”, ele nos indica um roteiro para superarmos o muro que os vitoriosos de 1964 ergueram para impedir que o trem da história continuasse no caminho que nos levaria à Nação.
“E aquilo que nesse momento se revelará aos povos, surpreenderá a todos não por ser exótico. Mas pelo fato de ter sempre estado oculto quando terá sido óbvio”. Caetano veloso
H. Raphael de Carvalho – Professor colaborador e Pesquisador associado do Inst. de Estudos Estratégicos (INEST/UFF) e Laboratório de Política Internacional (LEPIN/UFF). Mestre em Política pela PUC/RJ. Doutor em Política pela UFF.
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.
Parei no “petucanismo”. Inventa outra. E vá roçar as costas nas ostras!
“petucanismo”: isso me lembra a afirmação de um correspondente da DW no Brasil quando dizia que “era uma pena que, no Brasil, a socialdemocracia estava dividida em sua ala direita (PSDB) e sua ala esquerda (PT) em dois partidos”. Se pensarmos sob esse enfoque, “petucanismo” não é uma má definição.
Sobre o “consórcio PTucano”:
https://www.youtube.com/watch?v=Cvi_Jxijcw8
Não é novidade, amigo. Essa associação ideológica social-democrata já está incrustado em amplos setores da esquerda brasileira.
Quando aluno na USP GFV fazia obras abjetamente marxistas, como sua tese de doutorado. Não conseguindo ser contratado, assumiu um ódio figadal contra o grupo da USP, ao qual antes seguia caninamente, contra os partidos originados em SP e contra o próprio estado. Suas críticas são coloridas por esse ódio, e não merecem ser levadas a sério, como artigos e livros depois de levar o chega-prá-lá uspiano.
Os filhos da USP, inimiga do NACIONLISMO GETULISTA, sempre inventaram que o problemA éo EStado…FHC E CAMARILHA bando de vendidos. O PT é filho também dessa intelectualidade….ajudaram adestruir a INDUSTRIA BRASILEIRA
“…Mestre em Política pela PUC/RJ…” O pilar central do Neoliberalismo e Entreguismo de Lesa-Pátria de Eugênio Gudin, o cérebro econômico de Getúlio Vargas, que foi sendo expandido por Juscelino Kubischeck, Maílson, Mala, Franco, Fraga, Meirelles, Goldfakn, Tombini,… Mais um ‘Brizolista’ endeusando um Ditador Caudilho Assassino Fascista vangloriando Democracia? É a Pátria da Surrealidade !!! O nada Leonel Brizola, aparece para o Brasil, quando dá o ‘golpe de beú’ para entrar na fortuna e influência dos Latifundiários Dornelles, Goulart, Vargas… O mesmo Fascista que inventa a USP? Que inventa MEC? Que inventa OAB? Quanta coincidência?! Familiar de Tancredo Neves, assim como era Familiar de João Goulart e Leonel Brizola? O Ditador do Trabalhismo e Sindicalismo Pelego que faz surgir Lula? Por que será que Tancredo não foi perseguido? Como chegamos até aqui depois de 90 anos? A culpa deve ser do Trump. Ou do Bolsonaro. Pobre país rico. É sério que alguém ainda acredita nestas fantasias? Mas de muito fácil explicação. (P.S. O que Brizola, Jango, Tancredo faziam enquanto FILINTO MULLER pratica em suas Prisões e Masmorras Políticas e Cemitérios Clandestinos? Ou continuarão a esconder a História Brasileira num medíocre Revisionismo Histórico e Censura)
E agora PT? Destroçado pelo servilismo às oligarquias e pulverizador de migalhas aos famintos da Nação. PT no governo instaurou o retrocesso social e popular. Resultado: seitas neopentecostais e milícias dominando as periferias.