A Operação Braços Abertos e os Meninos Zumbis de São Paulo

Em 1995 o prefeito Paulo Maluf conduziu uma operação higienista contra os meninos viciados em crack que perambulavam pelo centro de São Paulo. Na ocasião escrevi a coluna “Os Meninos Zumbis de São Paulo”.

Republico na esperança de que, após a Operação Braços Abertos, sepulte-se de vez as práitcas higienistas e os viciados em drogas não sejam despidos de sua condição humana.

Os Meninos Zumbis de São Paulo

LUÍS NASSIF

Eles saíram das profundezas, espalharam-se pelo início da avenida Consolação, pelas imediações da Maria Antônia, e foram ocupando espaços no velho centro bancário de São Paulo, como um exército de zumbis.

Era impossível saber se eram homens ou mulheres. Tinham a assexualidade dos cadáveres. Jovens, eram sem dúvida, vergando macabros uniformes dos condenados à morte.

Os corpos eram tomados de uma fuligem que parecia cravada na pele, própria dos habitantes das profundezas. As faces eram macilentas, os cabelos duros de sujeira e os olhares vagos. Por dentro, o crack possivelmente já tinha devorado mais da metade de seus organismos de crianças desnutridas.

A maior parte não denotava disposição para assaltos. Pareciam mais personagens de filmes de ficção classe B dos anos 50, aproximando-se lentamente dos transeuntes pedindo dinheiro e balbuciando palavras incompreensíveis.

Mendigos amadores e profissionais que frequentam a região de repente desapareceram. Consta que foram ameaçados. Mais provável é que tenham se tomado do pânico, de quem se defronta com cadáveres.

Os meninos-zumbis cometeram violências indescritíveis no cotidiano dos habitantes do centro. Muito menos pelos assaltos, muito mais por sua presença incômoda. Quando invadiam cafés bem montados do centro, atrás de moedas para financiar o crack, tinham a capacidade de deixar a todos sem fome e sem assunto. Todos sabiam, indistintamente, que à sua frente estavam não apenas jovens sem futuro, mas condenados à morte breve.

Quem teria coragem, depois, de lamber as próprias feridas, reclamar da crise, discutir demanda agregada, ISO-9000 ou persistir na crendice que está se formando uma nação moderna?

Se não fosse detido a tempo, aquele exército de cadáveres ambulantes mataria os bons sonhos burgueses que trafegavam na região.

E a cidade organizada reagiu. As associações dos amigos da rua Maria Antônia e de todas as ruas da região se organizaram e contrataram seguranças para expulsá-los das imediações.

O prefeito ordenou à guarda municipal que comandasse uma operação-arrastão, incumbida de devolver o exército de zumbis de volta para as profundezas. Nos dias seguintes, um policiamento ostensivo tomou conta do centro, fazendo com que qualquer honesto cidadão se sentisse aquecido pela proteção do poder público.

A 300 metros dali, na Câmara Municipal, vereadores situacionistas discutiam, entre si, quanto levariam do butim. Uma regional para aquele, um clube esportivo para o outro. Um pouco mais adiante, senhores vetustos do Tribunal de Contas do Município fechavam mais uma vez os olhos a licitações fraudulentas e ao esfrangalhamento das contas municipais.

E o prefeito finalmente dormia em paz, julgando que a prova do seu crime e de todos seus antecessores -os meninos-zumbis- não mais estaria ali para condená-lo com sua presença silenciosa. Assim poderia prosseguir em seu trabalho meritório de levantar pontes e viadutos, estranhas catedrais que, com seu rigor geométrico, com a solidez do cimento e do concreto, eternizariam seu dinamismo -e ajudariam a engordar os cofres do partido para as próximas eleições.

Engano seu. Os vultos dos meninos condenados jamais sairão das retinas de todos aqueles que, por algumas semanas, conheceram de perto a face macilenta da morte.

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Luis Nassif

10 Comentários

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  1. Pequeno alento

    Ainda acho que as ações são muito simplistas. Ainda estão jogando o mal para debaixo do tapede e aplicando um pouco de perfume. Falta ainda um programa mais profundo de recuperação social!

  2. Olhares roubados

    Bem, posso concordar com cada linha que Nassif escreveu pois, nos (bons) tempos de faculdade, batia ponto quase que diariamente nos botecos da zona central de SP, lá pela região da Praça da Sé, Praça João Mendes e arredores.

    Tá certo que o “reduto” dos meninos-zumbis ficava nas imediações da Praça Júlio Prestes, Metrô Luz, vulgarmente conhecida como “Cracolândia”. Mas é certo que, tal qual ocorre no seriado “The Walking Dead”, existem ovelhas desgarradas de todo tipo, que acabam perambulando, claro que em menor número, pelo centro de SP inteiro.

    Sempre era a mesma coisa: o sujeito percebia a sua presença, andava arrastando até sua mesa e estendia a mão, sem proferir palavra. A desumanização era tanta que pareciam cachorros, que docilmente sentam do lado a espera de uma migalha. 

    O aspecto que mais me chamava atenção nestes garotos era seu olhar, ou a falta de. Eu já perdi as contas de quantos destes meninos vieram me pedir algum trocado, ou um pedaço de pão, e não lembro de nenhum deles, repito, nenhum deles mantendo contato ocular comigo ou com qualquer pessoa presente.

    Não sei se por vergonha, impaciência, ou por estarem despidos de qualquer resquício de humanidade, o que se via era sempre um olhar vago, perdido, desesperançado, enfim, morto. Não se pode nem dizer que são zumbis porque zumbis te olham no olho. Pelo menos é o que ocorre nos filmes, seriados e HQ’s. Só que realmente balbuciavam como eles, não conseguindo proferir palavra, apenas sons estranhos, como se estivessem em algum tipo de prece.

    Quando por fim entregava-os algumas moedas, ou a coxinha que estava em cima da mesa, eles pegavam minha esmola e, sem cerimônia nenhuma, continuavam sua peregrinação rumo a sua Meca Cracolândia, atrás de algum tipo de alívio para a alma.

    É muito bom que Haddad lance um programa voltado a eles, que não têm lobby algum, nem organização, nem voto. A m$#%@, na verdade, é a total descontinuidade das políticas públicas em SP. A Marta tinha planos interessantes para o Centro de SP, abrigando os sem-tetos em prédios abandonados, o que foi interrompido nas gestões Serra/Kassab.

    A Prefeitura tem que direcionar políticas públicas que livrem do Centro de SP a pecha de local mal assombrado, mas não pela via da exclusão/especulação imobiliária, mas sim incluindo, com programas voltadas a população de rua e desapropriando prédios abandonados para os Sem-Teto serem abrigados lá.

  3. “Um pouco mais adiante,

    “Um pouco mais adiante, senhores vetustos do Tribunal de Contas do Município fechavam mais uma vez os olhos a licitações fraudulentas e ao esfrangalhamento das contas municipais.”

    Bom, aparentemente, vinte anos depois, isso está mudando:

    Kassab recebeu ‘fortuna’ da Controlar, diz testemunha da máfia do ISS Dinheiro teria ficado guardado no apartamento do ex-prefeito até que a empresa passou a ser investigada pelo MPE SÃO PAULO – Uma testemunha protegida afirmou em depoimento ao Ministério Público Estadual (MPE) que o ex-prefeito paulistano Gilberto Kassab (PSD) recebeu “uma verdadeira fortuna” da empresa Controlar, responsável pela inspeção veicular na capital, e que o dinheiro ficou guardado em seu apartamento até que a empresa passou a ser investigada pelo MPE. Quando isso ocorreu, ainda segundo a testemunha, Kassab pediu ajuda ao empresário Marco Aurélio Garcia, irmão do secretário de Estado de Desenvolvimento Econômico, Rodrigo Garcia, para levar o dinheiro até uma fazenda no Mato Grosso, de avião.

    http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,kassab-recebeu-fortuna-da-controlar-diz-testemunha-da-mafia-do-iss,1119320,0.htm

  4. Problema profundo

    A questão da droga, especialmente o crack, é mais profundo do que se pensa.

    Começa com a falta de educação dos pais, que se extende as crianças e adolescentes, o que faz com que eles não tenham nenhuma perpectiva de futuro.  Acostumados a usar cola e maconha desde bem cedo, o crack é somente um degrau a descer na escada da substistência humana. Os ” zumbis” a qual o Nassif se referiu é somente um dos vários tipos de viciados, existem aqueles que ainda conseguem se portar mais adequadamente na sociedade, e estes causam males a si próprios e aos que passam por seu caminho. 

     

  5. Parabéns Novamente.

    Segunda vez este ano. Belo texto. Mas esta operação merecia uma descrição assim. Parabéns também ao Haddad e aos que estão tentando sair da droga.

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