A química da história, a instabilidade geopolítica e o carro de jagrená
por Ivonaldo Leite
Num livro escrito pouco tempo antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, o filósofo francês Paul Valéry afirmou que “a História é o produto mais perigoso que a química do intelecto elaborou”. E justificou a sua assertiva: Ela “faz sonhar, embriaga as pessoas, cria-lhes falsas memórias, exagera-lhes os reflexos, nutre-lhes as velhas mágoas, atormenta-as no repouso, condu-las ao delírio das grandezas ou da perseguição e torna as nações amargas, arrogantes, insuportáveis e vaidosas”.
O livro chamava-se Regards sur le monde actuel et autres essais (Considerações sobre o mundo atual e outros ensaios), e o que inquietava Valéry, na época, era a ascensão dos fascismos na Europa e a mobilização que eles promoviam das insatisfações nacionais. Designadamente no caso da Alemanha, as insatisfações assumiram um sentido de extremo ressentimento decorrente das condições impostas ao país pelas potências vencedoras da Primeira Grande Guerra, através do Tratado de Versalhes. Foi nesse contexto que a barbaridade nazista se enraizou, resultando na Segunda Guerra Mundial e no morticínio de cerca de 60 milhões de pessoas.
As velhas mágoas, das quais Valéry nos fala, geram rancor, e este tem uma natureza obsessiva, distorce fatos e atribui significados onde eles não existem. Pelo que então é próprio dos rancorosos e ressentidos estimularem a produção de versões sobre a realidade que sejam convenientes aos seus interesses. É assim que regimes autoritários e ditadores têm procedido ao longo dos tempos.
Embora as respostas a perguntas históricas não sejam simples, a indagação sobre as causas da ascensão dos fascismos no século XX e da eclosão da Segunda Guerra Mundial dificilmente terá uma resposta verossímil se não considerar as variáveis pressupostas pelos fenômenos do ressentimento e do rancor. A propósito, cabe realçar que, diante da situação decorrente do fim da Primeira Grande Guerra, todas as forças políticas na Alemanha – da extrema esquerda aos nazistas na extrema direita – mantinham um forte ressentimento quanto ao Tratado de Versalhes, considerando-o injusto e inaceitável.
Os ressentimentos, rancores e ódios – combinados com outros fatores de caráter estrutural – produziram uma era de catástrofes no período dos 31 anos entre o assassinato do arquiduque austríaco Francisco Ferdinando (1914), que desencadeou o primeiro conflito mundial do século XX, e a rendição incondicional do Japão (1945), que encerrou o segundo. Um tempo de guerra total.
Com a sua verve literária, o Prêmio Nobel Ivo Andrić apresentou um retrato do que a era das catástrofes significou para a juventude na então Jugoslávia: “Aqui [Serajevo], como em Belgrado, vejo nas ruas um considerável número de moças cujos cabelos estão ficando grisalhos, ou já o estão completamente. Têm os rostos atormentados mas ainda jovens, enquanto as formas dos corpos traem ainda mais claramente sua juventude. Parece-me ver como a mão desta última guerra passou pelas cabeças desses seres frágeis”. São anotações, em forma de diário (Signs by the roadside), feitas por Andrić do cotidiano iugoslavo relativo à Segunda Guerra. Ele conclui os seus apontamentos de modo melancólico: “Tal visão não pode ser preservada para o futuro; essas cabeças logo se tornarão mais grisalhas ainda e desaparecerão. É uma pena. Nada poderia falar tão claramente sobre nossa época às futuras gerações quanto essas jovens cabeças grisalhas, das quais se roubou a despreocupação da juventude”.
Contudo, parte significativa da segunda metade do século XX configurou-se como um tempo de relativa estabilidade, a despeito da Guerra Fria (bem como das “guerras quentes” na periferia do sistema mundial) e das mútuas ameaças entre os Estados Unidos e a então União Soviética. Por outra parte, teve lugar um significativo crescimento econômico, principalmente nos países capitalistas centrais, fenômeno este que ficou conhecido como a Era de Ouro. Pelo menos até os anos 1970.
Se é verdade que, a partir daí, emergiram tempos de incerteza e verificou-se um terremoto político com o colapso da URSS e dos países da sua esfera de influência, por outro lado, há que se realçar que o sistema internacional manteve a sua relativa estabilidade, com os diferendos entre países sendo escrutinados em suas instâncias (como a ONU), havendo, de resto, um consenso alargado quanto ao pacto civilizatório que deve reger a humanidade, principalmente em matéria de direitos humanos.
Mas, relembrando Paul Valéry, de fato, a História parece ser um produto perigoso, portadora de uma “química imprevisível”. Ela nos está a mostrar que o mencionado mundo de relativa estabilidade e de consenso a respeito dos marcos civilizatórios destinados a nortear as relações internacionais (até mesmo em situações de guerra) enfrenta uma grave crise atualmente, com a sua arquitetura política e institucional, representada pela ONU, demonstrando um evidente colapso. Está a entrar em cena um novo mundo, desequilibrado, onde as guerras da Ucrânia e de Israel-Gaza, a naturalização da retórica quanto ao uso de armas nucleares, as catástrofes humanitárias (como a dos palestinos), etc., compõem o quadro de uma geopolítica que leva, por vezes, à pronúncia de uma expressão temerosa: Terceira Guerra Mundial. O risco real do Armagedom nuclear.
Na verdade, enfim, não sabemos para onde a marcha dos acontecimentos está a nos conduzir. Mas deveríamos saber que o mundo desequilibrado em que vivemos é cada vez mais semelhante ao carro de Jagrená da divindade hindu, carro este que, ao realizar movimentos erráticos, esmaga quem ele encontra pela frente. Perigo à vista.
Ivonaldo Leite – sociólogo, professor na Universidade Federal da Paraíba
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