ADPF 130: Doze anos do fim da Lei de Imprensa
Por Rômulo de Andrade Moreira[1]
“Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa.”
(Chico Buarque)
Em abril de 2009, em um dos julgamentos mais importantes da Suprema Corte brasileira – um verdadeiro marco na história do controle de constitucionalidade no Brasil -, decidiu-se, por maioria de votos, que a Lei nº. 5.250/67 (a Lei de Imprensa) não foi recepcionada pela nova ordem constitucional; afinal, ela tinha sido concebida sob os influxos autoritários da ditadura militar, tendo sido promulgada ainda no início do regime pelo marechal Humberto de Alencar Castello Branco, um dos líderes do golpe militar que derrubou o presidente João Goulart.
O julgamento ocorreu a partir do ajuizamento de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 130), de autoria do Partido Democrático Trabalhista, representado pelo então deputado federal Miro Teixeira. Na petição inicial, argumentou-se que a lei “havia sido imposta à sociedade pela ditadura militar e, por isso, continha dispositivos incompatíveis com o Estado Democrático de Direito inaugurado pela CF/88, como a pena de prisão para jornalistas condenados por calúnia, injúria e difamação.”
O relator da ADPF foi o ministro Carlos Ayres Britto, que já em caráter liminar suspendeu alguns dispositivos da lei. No julgamento do mérito, o relator deixou registrado que “a plena liberdade de imprensa é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloquente atestado de evolução político-cultural de todo um povo; visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados.“
Segundo ele, “o exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente, especialmente contra as autoridades e os agentes do Estado. A crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou judicialmente intentada. O Poder Público somente pode dispor sobre matérias lateral ou reflexamente de imprensa, respeitada sempre a ideia-força de que quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja. Logo, não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas.”
Acompanharam o relator os ministros Eros Grau, Menezes Direito, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Cezar Peluso e Celso de Mello; divergentemente, posicionaram-se os ministros Joaquim Barbosa, Ellen Gracie e Gilmar Mendes (que votaram pela manutenção de alguns dispositivos da lei, como os que disciplinavam o direito de resposta e a proibição de publicar mensagens racistas); e apenas o ministro Marco Aurélio defendeu que a lei continuasse em vigor.
Efetivamente, a lei continha dispositivos absurdamente incompatíveis com a ordem constitucional inaugurada a partir da promulgação da Constituição de 1988. Assim, e por exemplo, nada obstante prescrever, no art. 1º., ser “livre a manifestação do pensamento, a procura, o recebimento e a difusão de informações ou ideias, por qualquer meio, e sem dependência de censura”, fazia-se expressa ressalva aos espetáculos e diversões públicas, que ficariam sujeitos à censura.
No mesmo sentido, o art. 2º., após estabelecer que era livre a publicação e circulação, no território nacional, de livros, jornais e outros periódicos, ressalvava as publicações que atentassem contra uma suposta moral pública e contra os bons costumes, o que permitia, na prática, que o governo vedasse a circulação de qualquer meio de comunicação; neste caso, estavam sujeitos à apreensão os respectivos impressos (art. 61, II) medida que, em caso de urgência, poderia ser determinada pelo Ministro da Justiça, independentemente de mandado judicial, podendo, ainda, dependendo da natureza do exemplar apreendido, ser determinada a sua destruição pelo juiz competente (arts. 63 e 64).
A lei trazia, ademais, uma plêiade de infrações penais absolutamente inconciliáveis com as novas disposições constitucionais, e mesmo com a própria dogmática penal, como, por exemplo, a criminalização do jornalista que ofendesse, por meio da respectiva publicação, “a moral pública e os bons costumes”, crime punido com até um ano de pena privativa de liberdade (art. 17).
A partir dessa histórica decisão, as questões referentes a eventuais abusos praticados por meio da imprensa (em sentido amplo) passaram a ser discutidas judicialmente, aplicando-se as normas do Direito Civil e do Direito Penal, como, aliás, tem que ser.
Quanto ao direito de resposta – cuja previsão estava contida na lei (arts. 29 a 36) –, apenas mais tarde passou a ser legalmente disciplinado, com a promulgação da Lei nº. 13.188/15, estabelecendo-se critérios para a busca de retificação ou direito de resposta a quem se sentir ofendido em matéria divulgada, publicada ou transmitida por veículo de comunicação social.
Aliás, este ponto – o direito de resposta – foi um dos que mais provocaram debates durante aquele julgamento; o ministro Gilmar Mendes, à época presidente da Corte, argumentou que “a desigualdade de armas entre a mídia e o indivíduo é patente. O direito de resposta é uma tentativa de estabelecer um mínimo de igualdade de armas. Vamos criar um vácuo jurídico numa matéria dessa sensibilidade? É a única forma de defesa do cidadão!”
Porém, este entendimento acabou não prevalecendo, muito em razão dos argumentos trazidos pelo ministro Cezar Peluso, defendendo que o Poder Judiciário teria condições de garantir esse direito, mesmo sem legislação específica, tendo em vista o art. 5º., V, da Constituição, segundo o qual “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”.
De toda maneira, é importante ressaltar que, nada obstante o fim da antiga Lei de Imprensa, o certo é que os ataques ao jornalismo brasileiro continuam sendo praticados de maneira absurdamente cotidiana; neste sentido, há três anos, o Conselho Nacional de Justiça lançou o “Relatório Estatístico: Liberdade de Imprensa”, visando a identificar e tipificar os processos que versam sobre liberdade de imprensa, a partir de uma demanda da Comissão Executiva do Fórum Nacional do Poder Judiciário e Liberdade de Imprensa, instaurada por determinação da ministra Cármen Lúcia, então presidente do Conselho Nacional de Justiça.
No relatório, concluiu-se, dentre outras coisas, que: a) as ações de liberdade de imprensa estão fundamentalmente relacionadas a casos de danos morais e de propaganda eleitoral; b) no Rio de Janeiro está a maior incidência de processos, com o dobro da média nacional em casos por cem mil habitantes; e nas capitais brasileiras a demanda corresponde ao quádruplo da verificada nos demais municípios; c) mesmo nas ações penais, os processos versam sobretudo sobre difamação e/ou calúnia; d) a Justiça Eleitoral é responsável por 25% dos processos, compreendo cerca de 36,9%; e) os processos baixados nos últimos dois anos duraram uma média de 1 ano e 4 meses; entretanto, os ainda não solucionados, estão na Justiça há, em média, 3 anos e 2 meses, ou seja, mais do dobro do tempo; f) há um problema sério de consistência dos dados, pois, enquanto as informações provenientes das associações constituíram um universo de análise com 2.373 processos, na base de dados do CNJ foram localizados 13.359; se for considerado que a base de dados do CNJ é subregistrada, em razão da falta de cadastramento adequado dos assuntos segundo as tabelas processuais unificadas, e se observado o percentual de cadastramento correto verificado na base das associações (4,5%), há um significativo volume de registros ocultos não passíveis de identificação pelos dados, por ora, disponíveis; estima-se a existência de aproximadamente 300 mil processos que versem sobre liberdade de imprensa no país.[2]
Portanto, lembrar agora desse julgamento, mais do que nunca!, é fundamental, especialmente quando a imprensa em nosso país – e também em outros de feição igual e nitidamente autoritária, cuja intolerância e inapetência frente à liberdade de expressão e de informação são marcas características[3] -, encontra-se sob ataque direto, inclusive de setores do próprio Poder Judiciário.[4]
Enfim, espera-se que este julgamento – que completa agora doze anos – também sirva de paradigma no julgamento de duas ADPFs (797 e 799), nas quais se questiona a compatibilidade constitucional de alguns dispositivos da Lei nº. 7.170/83 (a Lei de Segurança Nacional), um dos últimos entulhos autoritários ainda em vigor no Brasil.[5]
[1] Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.
[2] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2018/06/fe4133ad3d044846ba3b8ff5594bb7a7.pdf. Acesso em 10 de abril de 2021. Nesse trabalho, o CNJ contou com a colaboração da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV e a Associação Nacional de Jornais, que encaminharam a relação de processos cadastrados nas respectivas associações. Ao todo, foram 2.373 processos relacionados à liberdade de imprensa.
[3] Segundo aponta um outro relatório, esse divulgado pela Federação Nacional dos Jornalistas, “o Brasil foi novamente palco de uma intensa campanha de ataques à liberdade de imprensa em 2020; ao todo, foram 428 ataques contra jornalistas, veículos e a imprensa em geral. Entre os ataques estão agressões verbais, físicas e virtuais, censura, intimidações, ameaças, assédio judicial, atos de descredibilização da imprensa e até assassinatos. O número é 105,77% superior ao registrado em 2019, quando a entidade listou 208 ocorrências.” Segundo a entidade, “tal como ocorreu em 2019, o presidente Jair Bolsonaro foi mais uma vez o principal ator dos ataques, sendo responsável por 175 casos (40,89% do total).” Aponta-se, ainda, que “o comportamento e as políticas de Bolsonaro também continuam a incentivar em 2020 que seus auxiliares e apoiadores adotassem a violência contra jornalistas como prática.” A entidade também lista 32 casos de agressões físicas a jornalistas, destacando casos de repórteres agredidos por apoiadores de Bolsonaro nos atos golpistas que ocorreram no primeiro semestre de 2020. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/brasil-teve-recorde-de-ataques-%C3%A0-imprensa-em-2020-diz-relat%C3%B3rio/a-56354093. Acesso em 10 de abril de 2021.
[4] Por todos, veja-se o caso do jornalista Luis Nassif, “vítima de uma arbitrária e inadmissível perseguição jurídica”, conforme relatou com detalhes em seu espaço no Jornal GGN (leia aqui: https://jornalggn.com.br/editoria/justica/estou-juridicamente-marcado-para-morrer-por-luis-nassif/), um verdadeiro, “sofisticado e preocupante processo de opressão judicial.” Conforme denunciou Luis Nassif, “não há mais limites para a atuação de juízes militantes, fazendo do seu poder uma arma política, não apenas para inviabilizar a liberdade de expressão, mas para a própria destruição dos ‘inimigos’. Estou juridicamente marcado para morrer.” Sem dúvidas, “o rebuscado processo de perseguição jurídica imposto a Luis Nassif impacta não só o próprio profissional diretamente atingido por ele, mas, principalmente, a democracia e a livre circulação de informações e de ideias, restringindo o direito da população à informação como um todo. Questionar a imprensa ou discordar dela são atitudes legítimas, tentar silenciá-la com ataques, processos e outras formas de intimidação é uma evidente e extremamente grave violação à Constituição e ao Estado democrático de Direito.” Disponível em: https://vladimirherzog.org/solidariedade-a-luis-nassif/. Acesso em 10 de abril de 2021.
[5] As ADPFs foram ajuizadas pelo Partido Trabalhista Brasileiro e pelo Partido Socialista Brasileiro, e têm como relator o ministro Gilmar Mendes; em ambas, sustenta-se a incompatibilidade da norma com o Estado Democrático de Direito, ressalvando-se que, nada obstante, “há dispositivos compatíveis com a Constituição que devem ser mantidos, para não prejudicar a defesa da ordem democrática pelo Poder Judiciário, especialmente no momento em que sofre ´graves ataques`.” Nota-se, na ADPF de iniciativa do PTB, que “a lei é incompatível com a nova ordem constitucional instaurada a partir de 1988, pois o texto constitucional sequer menciona a existência de crime contra a segurança nacional, limitando-se a penalizar ações de grupos armados contra a ordem constitucional e que tenham como objetivo alterar à força a atual configuração do Estado”, não podendo ser confundida “essa situação com atuações individuais, que têm como único instrumento a palavra.” Para o partido, “a lei tem vocação autoritária, incompatível com o regime democrático, e tem sido invocada e aplicada em diversas ocasiões que, a seu ver, resultam na violação da liberdade de expressão, de manifestação e de imprensa e em prisões arbitrárias.” Já para o PSB, “alguns dispositivos da lei ameaçam a liberdade de expressão, na medida em que podem permitir a perseguição de opositores e críticos do governo”, afirmando-se que, “até pouco tempo, a LSN não era muito utilizada porque, após a redemocratização, havia um certo tabu na invocação da norma, tamanha a sua associação ao regime de exceção, que a sociedade justamente repudiava”; ressalta-se, no entanto, que “é importante preservar a vigência e a eficácia de normas que criminalizem graves comportamentos que ameacem a democracia, especialmente no atual contexto que o país atravessa.” Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=461753&ori=1. Acesso em 10 de abril de 2021.
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