Caminhos da luta – A Crise da esquerda no pós-prisão de Lula.

Confesso que escrever sobre esse tema me causa profundo desgosto. Desgosto causado por constatar uma completa perda da capacidade das lideranças de esquerda de guiar a náu e conduzir os demais tripulantes para algum destino.

Há uma frase que traduziria bem a atualidade da disputa política brasileira: “A direita se une pelos interesses e a esquerda se divide pelas idéias”. A conjuntura pós-prisão é a comprovação desse lema.

A esquerda está deixando os sentimentos guiarem a ação política. Sentimentos misturados e confusos: umas pitadas de raiva, outras de superioridade moral e muitas doses de  “pureza  revolucionária”. Para mim esse turbilhão emocional passou a pautar o discurso e a contaminar a razão e a coordenação de ações táticas e estratégicas para o mais importante enfrentamento político desde 1964.

No centro da rinha estão as escolhas sobre como prosseguir com a luta política. Optar por um denuncismo e brandar pela ilegitimidade das eleições, com o intuito de mobilizar as “massas” (pré-revolucionários). Ou realinhar as forças políticas da esquerda em torno da eleição de um candidato que paute oposição ao projeto neoliberal?

Os embates entre aqueles que defendem um ou o outro lado está intenso. Na base uns já acusam os outros de traidores, com direito a xingamentos aqui e acolá. Assim, para não realimentar  esse processo de esfacelamento da esquerda e lançar acusações sobre as intenções de A ou B, não devemos pautar a análise da situação corrente por julgamentos de caráter das partes. Acusações de traição, de fisiologismo e etc; não  levam a lugar algum.

As escolhas sob qual caminho seguir decorrem de diferentes leituras ou interpretações do momento político, de avaliações sobre as possibilidades e efetividade das escolhas, de leituras da sociedade brasileira e também de uma disputa de espaço político dentro das frações da esquerda.

Os pré-revolucionários não vêm mais possibilidade de combater as forças políticas representantes do neoliberalismo por vias institucionais. Alegam que a eleição está com vício de origem (prisão de Lula) o que a deslegitima. A leitura não é equivocada, realmente há uma subtração diária e contínua da democracia por parte dos poderes não eleitos sob o pretexto de combate da corrupção. Esses estão operando como instrumentos direto da ideologia neoliberal, a impedir, preventivamente, a possibilidade de Lula ser eleito. E não se trata de um “fato isolado”, mas de todo um processo de esfacelamento institucional e político iniciado em 2014.

Assim, diante da impossibilidade de uma nova reconciliação nacional de classes, por não haver interesse por parte dos “vencedores”, os pré-revolucionários defendem que a única saída possível seria por meio da mobilização das massas e o boicote às eleições presidenciais.

O PT eo PCO são os partidos que lideram esse movimento. Para o PCO a escolha é perfeitamente consistente com sua linha de ação política. Desde sua criação o PCO é um bastião ideológico da esquerda revolucionária, sempre defendeu que não há possibilidade de mudança que não seja por via da mobilização popular e revolucionária, nunca teve reais pretensões eleitorais, nem se dispôs a jogar o jogo da democracia burguesa.

O PT é o partido de origem do PCO, de onde seus fundadores foram expulsos por não defenderem a linha pragmática e reformista do PT. Ou seja, o PT foi o partido de esquerda que optou pelo caminho da conciliação e da “democracia burguesa”, optou por “jogar o jogo”, aceitou doações de empreiteiras, manteve as distorções econômicas favoráveis ao financismo e desmobilizou as lutas populares com o apoio das lideranças sindicais e afins (peleguismo). Resumindo, o PT só se manteve no poder por 13 anos por não mexer no vespeiro. Quando esse virou um entrave aos interesses locais e internacionais do imperialismo, foi decapitado!

O PCO segue consistente, pois sempre pautou a luta popular e revolucionária. Mas há incoerência no discurso do PT quando a direção partidária diz: ” eleição sem Lula é fraude”; ao mesmo tempo em que se articulam as candidaturas para os demais cargos (senadores, deputados e governadores). Seria uma crítica à democracia burguesa que só vale para o cargo de presidente? Como isso funciona? Confesso que não entendo!

Mas que lição podemos tirar dessa história? Que apesar de toda a “pureza revolucionária” e correta análise política  do PCO, foi o PT que efetivamente conseguiu transformar a realidade social do país! E ele o fez por explorar as brechas e contradições do próprio sistema burguês! Há também uma lição que o PT talvez não tivesse apreendido (à força) caso tivesse mantido o PCO dentro de suas linhas, de que é preciso operar na política transformadora no aspecto TÁTICO (políticas pontuais e isoladas, pacificação ocasional das lutas populares), mas também no aspecto ESTRATÉGICO (fortalecimento da mobilização popular e reestruturação dos poderes não eleitos) para enfrentar o derradeiro momento do embate, o qual é inexorável!

A supressão de ações estratégicas para permitir pequenas vitórias táticas foi o que levou à derrocada do PT, pois um conjunto disperso de táticas não substituem a estratégia, mas, doutro lado, uma estratégia não pode suceder sem táticas. Por isso que diante de uma súbita mudança no terreno de batalha, haja tamanha confusão por parte do PT em entender o ocorrido e conseguir redefinir suas linhas de ação.

O sucesso da empreitada neoliberal deveu-se a um longo movimento estratégico, iniciado ainda no primeiro ano de governo PT, com uso dos aparelhos de propaganda para doutrinação da classe média e por conseguinte daqueles que preencheriam os cargos dos poderes não eleitos. Contudo, a empreitada só sucedeu graças a um movimento tático, de aproveitar a recessão econômica para realização de um golpe de estado e fechamento democrático. A direita sabe muito bem jogar o jogo político de curto e longo prazo.

Retornando ao cerne, do outro lado da divisão da esquerda há aqueles que têm uma agenda eleitoral, ou seja, buscam atuar como dantes fazia o PT e explorar as contradições do sistema. São eles: Ciro, Manuela e Boulos. Desses três há especial atrito com Ciro Gomes. Manuela e Boulos acompanham o PT em sua mobilização em torno de Lula, estiveram no palanque com ele no ato no sindicato dos metalúrgicos e etc. Não há ataques agressivos contra esses dois últimos, exceto as consistentes críticas de Rui Costa Pimenta (PCO).

Mas por que a diferença no tratamento por parte do PT e por conseguinte de seus filiados a Ciro Gomes?

Manuela e Boulos têm pouca ou nenhuma chance eleitoral, não são candidatos que ameacem uma candidatura a presidência do PT que venha a substituir a de Lula. Já a candidatura de Ciro pode corroer a capacidade de Lula de transferir seus votos a um indicado de dentro do PT.

Se o PT adotar a estratégia de indicar Lula, para então ter a inscrição negada e depois indicar outro (conforme a legislação eleitoral permite) ele terá um tempo menor de campanha e precisará de preservar para si a base eleitoral de Lula para ter chances reais de ir a um segundo turno.

Outra possibilidade seria o uso da bandeira de Lula Livre como trampolim para as candidaturas de deputados e senadores do PT, PSOL e PCdoB. Cenário onde o PT não indicaria um substituto a Lula.

Para ambas as hipóteses, uma manutenção das altas intenções de voto em Lula só acirram a briga, pois o que estaria em disputa seria a herança eleitoral de Lula. Ela ficaria com Ciro? Com Manuela ou Boulos? Com o substituto de Lula?  Pulverizado entre deputados, senadores e governadores do PT?

Logo, o que vemos é a velha regra de que se há uma disputa entre os herdeiros, é por haver alguma riqueza a ser disputada. Ou escrito de outra forma: “Não haveria briga, se não houvesse pelo que brigar”.

Nessa briga por algo, iremos revestir nossos interesses por alguma construção que lhes legitimem. Quando a disputa é por espaço político, a regra é nos legitimarmos pelo achincalhar do outro e/ou pregarmos uma superioridade moral/ética/espiritual ou de pureza revolucionária. A título de exemplo, em alguns diretórios do PSOL somente os veganos podem se candidatar a cargos de direção partidária, pasmem!

Esse embate é normal e sempre ocorre em véspera eleitoral,  entretanto em uma conjuntura política menos grave. No atual cenário, ela pode ser nossa maior armadilha.

Diante do exposto, o que defendo?

Defendo que não sigamos os partidos e suas lideranças nessa rinha. Se não há clareza deles sob o real embate em curso, ou se a “picuinha” o ego ou as estratégias individuais colocam a luta sob risco de fragrante derrota, cabe à base tomar as rédeas do processo de luta, num sentido amplo e pleno. Ou seja, se o comandante conduz a náu à deriva, cabe aos demais tripulantes assumirem o seu comando.

Mas qual seria o caminho correto?

Para delineamento dos caminhos da luta, devemos ter clareza de qual é o embate político em curso. O embate é entre um projeto inclusivo de desenvolvimento econômico nacional versus um projeto excludente, de entrega da economia nacional ao financismo e ao capital transnacional. Esse último é o neoliberalismo e seus agentes políticos e para-políticos.

Os agentes para-políticos são aqueles representantes dos poderes não eleitos como o Judiciário, MP, PF, TCU e as FFAA. O farol que os guia é a ideologia liberal e a grande mídia, em especial a Rede Globo.

Os poderes para-políticos são os principais agentes  de desestabilização democrática e institucional. Eles foram fator chave para a ruptura institucional do impeachment, para a relativização dos direitos e garantias fundamentais, evidenciados reiteradamente por meio de: prisões preventivas como instrumento de coerção, vazamentos, grampos de advogados, grampos de presidente, colaboração em off com FBI, supressão por via interpretativa de dispositivos constitucionais pétreos.

Agora esses poderes avocam pra si a legitimidade para “tutelar” a democracia ao prenderem o principal líder das pesquisas, após um processo surreal do início ao fim.

Assim, o bloco neoliberal está ocupando o terreno de batalha em quase todas em posições chaves. Mas há uma posição que esse ainda não ocupou, aquela da vontade popular! A narrativa neoliberal não consegue penetrar as bases populares, ela chega somente até a borda inferior da classe média. Daí pra baixo eles não têm controle (ainda!). O que evidencia essa falta de controle são pesquisas a demonstrar que Lula, mesmo preso, é o líder nas pesquisas.

Por essa razão que a estratégia de deslegitimar as eleições via boicote é péssima para a esquerda! Estaríamos abrindo mão de uma das poucas instituições que eles têm dificuldade de controlar. A evidência dessa afirmação é bem objetiva: um golpe de estado seguido  da prisão política do líder nas pesquisas. Precisamos de mais evidências da incapacidade de controle deles sob o processo eleitoral?

Logo, as “lideranças” da esquerda deveriam realizar os acalourados debates entre A e B dentro de quatro paredes, com a discrição necessária para não levar as bases ao extermínio mútuo. Também deveriam agir com prudência e adotar uma estratégia eleitoral comum ou, pelo menos, não fraticida.

Para as alegações de que não permitiriam um candidato não alinhado assumir a presidência, de que não há chances eleitorais, de que o processo está fraudado; para elas eu digo que o ônus de demonstrar que isso é verdade deve ser  do lado de lá! Pois se numa derrota eleitoral para a esquerda eles interditarem a posse do presidente, que seja um ônus deles, se eles optarem por um golpe militar, que seja um ônus deles, se eles optarem por outras medidas extremas, que seja deles o ônus.

Remover o time de campo e aceitar uma derrota por WO, não deve ser o discurso da esquerda. Pois apesar do sistema democrático não ser de fato democrático, ou seja, é uma falácia. A contradição entre a face que esse apresenta e sua verdadeira natureza deve ser explorada até o limite pela esquerda. Qual o limite? O limite é aquele que leva eles a jogarem as aparências de lado e a imporem um controle direto da sociedade por meio de uma Ditadura Explícita. Como ainda não chegamos nela, ainda há espaço pra tensionar as contradições.

Mas há apenas o caminho eleitoral?

NÃO! O caminho eleitoral é um movimento TÁTICO a explorar a principal fraqueza do lado adversário, mas a complexidade da crise impõe a adoção urgente de um caminho de mobilização popular. Ocorre que o PT operou durante 13 anos a desmobilizar as bases, e recompor essas demandará tempo, tempo que irá para além do pleito eleitoral. Mas é preciso que seja feito.

A mobilização e organização política-popular deve ser permanente e é uma ação ESTRATÉGICA, que demandará tempo, dedicação e recursos ao longo de anos.

Uma coordenação deve ser feita entre as duas ações, a eleitoral e a de formação/mobilização política das bases. A eleição seria um excelente momento para expor o eixo do debate e pautar com objetividade e clareza as diferenças entre o projeto deles e o nosso projeto, como essas diferenças impactam diretamente na vida das pessoas e para o PT utilizar a propaganda eleitoral  para  denúnciar o golpe e reconvocar  os ex-militantes  para retornarem aos núcleos de base.

A gravidade do momento urge que coloquemos a luta nessas duas frentes, para ir com tudo para um embate de importância histórica para o país! Não há contradição entre elas, tratam-se de ações complementares.

Sobre eles ainda não controlarem a base, algo que disse lá acima, o ainda refere-se a possibilidade de Bolsonaro crescer nessa base exatamente pelo vácuo que venha a ser deixado por uma equivocada estratégia de boicote as eleições por Lula e PT. Estaríamos, assim, ajudando eles a colocarem um ditador eleito, um Duterte brasileiro (ver Filipinas)

*Adendo 1: A predominância do discurso da segurança pública pelos meios de comunicação e pelo governo já indicam a adoção de uma estratégia de entrar nas classes sociais antes inalcançadas.

**Adendo 2: Ao remover Ciro do círculo da dita “esquerda”, PT está a colocar ele no colo da centro-direita. Pois ele irá lá buscar o apoio que não está obtendo do lado de cá,  para assim viabilizar sua candidatura.

À Luta!

Por Daniel Melo CopyLEFT.

 

Redação

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