Conversas ao pé do fogo com FHC

A afirmação de FHC a Sonia Racy, de que nunca se deslumbrou com o poder, é piada.

No primeiro governo, havia um velho personagem carioca, muito influente, que trabalhara com Augusto Frederico Schmidit, era amigo de Roberto Marinho e fora incumbido por FHC de levar grandes empresários ao Alvorada, para jantares com o presidente.

O deslumbramento de FHC era motivo de pilhérias.

Certa vez, contou-me ele, caminhávamos pelo Alvorada quando um empresário viu um piano. Perguntou quem tocava piano. Imediatamente FHC foi ao piano e mostrou uma música que compusera em homenagem ao Brasil lembrando que, depois de Pedro I, ela fora o primeiro governante a cometer um hino. Pelo visto, ficou inédito.

Ele gostava muito de conversar com Jorge Serpa, o superlobista que foi conselheiro de praticamente todos os presidentes da República desde Café Filho.

Serpa ía para Brasília de táxi – tinha medo de avião. E, nas conversas, FHC indagava:

– Jorge, quem foi maior: Juscelino ou eu?

– Claro que foi você, Fernando.

Com base nessa cena hilária, escrevi a seguinte coluna em 27 de setembro de 1998. Só o primeiro parágrafo aconteceu.

Conversas ao pé do fogo

-Jorge, quem foi maior, Juscelino ou eu?

-É claro que você, Fernando. Juscelino tinha seus méritos, mas era um mero intuitivo. Você tem a intuição e o conhecimento.

-Mas padeci da solidão dos grandes homens, Jorge. A mesma solidão que deve ter martirizado Cristo, Lênin, Gandhi, Freud e o nosso José Bonifácio.

-Tem razão, Fernando, e eu sei o que é essa solidão, pois conheço o Brasil. Assessorei Bonifácio e Juscelino, Pedro 1º e Café Filho, Deodoro e Jango, assessorei os grandes cientistas e os empreiteiros mais ladravazes, os conservadores mais empedernidos e os populistas mais irresponsáveis. Eu sou a história e lhe digo do fundo do coração: não houve ninguém mais brilhante que você. Sua solidão foi a dos grandes homens.

-Não me confunda com essas figuras, Jorge. Com exceção de Bonifácio, no máximo eles tinham a visão de Brasil. Eu tinha o sentimento do mundo.

-Blair, Clinton, todos se curvaram a você, Fernando.

-Sérgio não me entendia. Antes de morrer, vivia me atazanando, querendo que eu me ocupasse de coisas banais do dia-a-dia, que decidisse, decidisse, decidisse, um inferno, Jorge. Não nasci para decidir, mas para especular, no sentido filosófico do termo. Minha missão era entender e explicar o mundo, definir em torno das grandes idéias, não me desgastar administrando conflitos menores.

-Decidir é coisa de gerente, não de intelectual.

-O mesmo acontecia com José, que me tirava a concentração cada vez que me ligava reclamando que as concessões que eu fazia a aliados políticos iriam estourar o déficit público. Poucos entendiam que eu precisava de tranquilidade, tempo para poder pensar. Pedro não me incomodava, nem Gustavo. Não tinham essa visão estreita de meus amigos pragmáticos. Sabiam que eu precisava de tranquilidade para pensar.

-Os outros só enxergavam a árvore, e não a floresta, Fernando.

-Justamente, justamente, é o que eu dizia. E como podia perder o sono com o que Eduardo, de Minas, Mário, de São Paulo, Tasso, do Ceará, podiam estar dizendo? Em Minas, eu disse que não votava em ninguém, pois era eleitor em São Paulo. Em São Paulo, Mário que se virasse, pois tinha o Paulo. Meu papel era ser o aglutinador, a unanimidade.

-Você nasceu com a sabedoria dos grandes políticos, Fernando.

-Admito que esse estilo podia ter contra-indicações, mas a política é a arte das opções. Perdi Sérgio, José ficou agastado, perdi Luiz Carlos e José Roberto, perdi André, que me encantava com suas preocupações com o mundo e com o modo carinhoso com que se referia a seus cavalos de corrida. Meu partido falava mal de mim pelas costas. Também os conservadores, que, no final, me acharam um nome pesado demais e abandonaram o barco. Disseram que o Brasil quebrou externamente, mas essa quebra me permitiu fechar o melhor acordo que um país quebrado já assinou na história. Diziam que quebrou internamente, mas me permitiu um discurso histórico, propondo sangue, suor e lágrimas aos brasileiros, do mesmo modo que Churchill. Cada episódio que os adversários reputavam de desastroso era um motivo para eu conseguir mais um grande momento.

-Era pouco pretender ser o maior presidente brasileiro da história, Fernando. Você era para ser um dos maiores da história.

-E por que não fui? Por que não fui? Eu era esmagado pelas críticas que me apontavam como indeciso, como contemporizador. O preço de não decidir me custava muito. Tinha que ouvir o Delfim dizendo “o Fernando é assim mesmo”, com aquele ar irônico e anticientífico de quem era dotado de todas as certezas do mundo. Agora, é meu vizinho aqui. Amigos queridos me acusavam de traição, por não saber decidir em seu favor, nos momentos cruciais.

-Fazia parte da sua natureza, Fernando. Não podemos ser bons em tudo.

-Não pense que a indecisão era uma postura conveniente, voluntária, Jorge. Ó, quanta inveja do estilo inescrupuloso do meu xará, Fernando, da falta de limites de JK. A mim me acusaram de quebrar o Brasil por não fazer. Juscelino pelo menos quebrou fazendo.

-Com distanciamento histórico, as avaliações melhoram, Fernando.

-Onde foi que eu errei, Jorge? Deixei o país quebrado, sem estatais e com uma dívida interna enorme, só porque não superei o medo da decisão, na hora de enfrentar o desafio do câmbio. Meu segundo mandato foram quatro anos de recessão e desemprego, porque continuei empurrando com a barriga. Mas o país tinha de ganhar tempo para amadurecer, não acha?

-De fato, amadureceu, mas não desenvolveu.

-Disseram que perdeu o bonde da história por culpa de minhas indecisões. Mas o que podia fazer, sinceramente? No dia em que meus três amigos deixaram o governo, disse para mim e para meu povo: a partir de hoje, não faço mais concessões. Mas no dia seguinte tinha um café da manhã com os líderes da minha aliança e não quis me comportar como intransigente. Aceitei a idéia de criar mais um imposto para financiar um novo ministério e entregá-lo a partidos amigos. Sei que não estava certo, em meio a um ajuste fiscal profundo. Mas tinha outra maneira de recuperar a tranquilidade? E um presidente necessita de tranquilidade. No entanto posso dizer do fundo da alma: fiz tudo na melhor das intenções.

-Tá certo, Fernando, tá certo. Você foi indeciso, mas de uma maneira extremamente brilhante.

-Uma última pergunta Jorge: quem foi melhor, Juscelino ou eu?

-Você, Fernando. Mas Juscelino não era mesmo grande coisa. Agora vamos ficar quietos que o capeta está chegando para acender o fogo das seis da tarde. E ele tem uma capacidade de decisão extraordinária.

Luis Nassif

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