CRISE: DESENVOLVENDO A TAXA DE JUROS

No contexto atual, faz sentido elevar as taxas básicas de juros?

Todas as proposições que têm sido apresentadas e discutidas em nível mundial convergem para a ideia de que políticas econômicas contracíclicas e Estado intervencionista são importantes para mitigar as instabilidades inerentes de economias monetárias decorrentes, em grande parte, dos efeitos disruptivos das atividades especulativas dos agentes econômicas e da dinâmica dos mercados cambial-financeiros. Essa ideia, é o principal legado de Keynes. Diante deste contexto, não faz sentido a proposição de algumas autoridades econômicas em quererem, de forma unilateral, elevar a taxa básica de juros para controlar o atual processo inflacionário. O artigo é de Fernando Ferrari Filho.

Será que no atual contexto de recuperação da economia mundial e de elevação dos preços das commodities faz sentido elevar as taxas básicas de juros?

Como sabemos, o processo de globalização financeira, em que mercados financeiros são integrados de tal forma a criar um “único” mercado mundial de dinheiro e crédito, tem resultado em frequentes crises de demanda efetiva, determinado fundamentalmente por “forças financeiras”. A atual crise financeira internacional, que emergiu em 2007-8 no mercado subprime dos Estados Unidos, é um exemplo da crise da globalização financeira, entendida como uma tendência à criação de um mercado financeiro global e de intensificação no fluxo de capitais entre países.

Esta dinâmica da globalização financeira é percebida, também, nos mercados de commodities, uma vez que, nos últimos anos, a economia mundial tem convivido com um processo de financeirização desses mercados, cuja consequência, entre outras, é a especulação em torno dos preços das commodities.

O comportamento especulativo com os preços das commodities, especialmente agrícolas e energéticas – por exemplo, petróleo – acabou gerando pressões inflacionárias em nível internacional em 2007 e 2008, bem como tem sido um dos responsáveis pela atual tendência de elevação da taxa de inflação mundial (1).

Se, por um lado, os desdobramentos da crise financeira internacional sobre o lado real das economias, em especial em 2009, em termos de recessão, desemprego e desaquecimento do volume de comércio, acabaram gerando um consenso entre economistas acadêmicos, analistas econômicos e policymakers em torno das ideias keynesianas, tanto para explicar a referida crise quando para remediá-la, por outro lado, em um contexto de “recrudescimento” da inflação, as Autoridades Econômicas (AE) internacionais (dentre as quais, as do Brasil) passaram a advogar a necessidade de adoção de políticas fiscal e monetária austeras para controlar a dinâmica inflacionária.

Diante do atual cenário mundial em que a crise financeira internacional está longe de ter um “final feliz” – não é demais ressaltar que a “bola da vez” continua sendo a crise fiscal-financeira dos PIIGS, acrônimo para Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha – e os choque de oferta, protagonizados pela elevação dos preços das commodities, impactam positivamente na taxa de inflação, o que fazer?

Uma vez que todos nós nos tornamos “keynesianos”, algumas das proposições de política macroeconômica apresentadas por Keynes ao longo de seus escritos, reunidos nos 30 volumes dos Collected Writings of John Maynard Keynes, publicado pela Royal Economic Society, merecem atenção para resolver “os principais problemas da sociedade econômica em que nós vivemos que são o desemprego e a arbitrária e desigual distribuição da renda e da riqueza” (John Maynard Keynes. The General Theory, of Employment, Interest and Money, New York, HBJ Book, 1964, p.372).

Nesse sentido, em termos de política econômica para assegurar a recuperação da economia mundial e uma dinâmica de estabilidade macroeconômica – entendida como crescimento econômico sustentável, inflação sob controle e equilíbrios fiscal e externo –, são necessárias as seguintes medidas:

• Política fiscal ancorada tanto na administração de gastos públicos – algo completamente diverso de déficit público – quanto na política de tributação. No que diz respeito à administração dos gastos públicos, deveria haver dois orçamentos: o corrente, para assegurar recursos à manutenção dos serviços básicos fornecidos pelo Estado à população, tais como saúde pública, educação e segurança pública, e o de capital, em que o Estado realizaria investimentos públicos complementares aos investimentos privados e fundamentais para a expansão da demanda efetiva. A ideia de Keynes com os referidos orçamentos é a de que em períodos de prosperidade o gasto público deve ser reduzido, ao passo que em períodos recessivos ele deve ser elevado. Assim, a política fiscal torna-se contracíclica e assegura o equilíbrio fiscal intertemporal do governo. A política de tributação, por sua vez, deveria concentrar-se essencialmente nos impostos sobre a renda, o capital e a herança, viabilizando, assim, uma melhora da distribuição da renda e da riqueza.

• Redução da política monetária para dinamizar os níveis de consumo e investimento e afetar a preferência pela liquidez dos agentes econômicos. Não é demais enfatizar que, devido à relação entre os diversos ativos e a própria moeda, a política monetária possui um papel importante na dinâmica econômica: o efeito dela sobre a demanda efetiva é indireto, impactando inicialmente sobre as condições de liquidez do mercado monetário para, em seguida, motivar diferentes decisões nos agentes. Assim, caso o interesse do Estado seja promover a ampliação do volume de capital da sociedade, é necessária a redução da taxa de juros para estimular consumo e investimentos produtivos. Ademais, a manutenção da taxa de juros em patamares compatíveis com a eliminação da escassez de capital significa, ainda, a eutanásia do rentier, classe que não é remunerada pelos seus “riscos e o exercício da habilidade e do julgamento”, mas por “explorar o valor da escassez do capital” (Keynes, 1964: 375-376).

• Política cambial para assegurar a manutenção da taxa real efetiva de câmbio de equilíbrio (TRECE) e não gerar pressões inflacionárias. Indo nessa direção, a administração da taxa de câmbio, visando à manutenção da TRECE, parece ser o regime cambial ideal para que as AE atinjam os objetivos de estabilidade econômica, conforme definida anteriormente. Para tanto, a adoção de um regime cambial baseado em uma banda de monitoramento (ou em uma taxa de referência) tem como preocupação evitar desalinhamentos cambiais mais prolongados e, portanto, objetivam influenciar a trajetória intertemporal da taxa de câmbio. No que diz respeito ao monitoramento da taxa de câmbio por um mecanismo de banda, a banda cambial tem a função de cristalizar as expectativas dos agentes econômicos que atuam no mercado de divisas para estabelecer uma taxa de equilíbrio. Por sua vez, levando em conta as intervenções e sinais dos bancos centrais ao redor de uma taxa de referência, as forças de mercado tendem a estabilizar o câmbio ao redor da taxa de referência. Dessa maneira, sabendo que o mercado cambial se comporta como um mercado de ativos, em que as decisões de compra e venda de divisas são baseadas em convenções, a banda de monitoramento ou a taxa de referência proveria informação ao mercado de divisas de qual taxa de câmbio as AE acreditam ser consistente com os fundamentos de longo prazo. Ademais, a adoção de regulamentação sobre o fluxo de capitais é essencial tanto para prover a política monetária de uma maior autonomia, visando objetivos domésticos sem a preocupação de afetar a taxa de câmbio, quanto para ajudar a manter a estabilidade na taxa de câmbio no curto prazo e reduzir as pressões derivadas de uma excessiva entrada de capitais. Mecanismos de controle de capitais podem ocorrer de três maneiras: “(i) controles diretos ou administrativos, ou seja, restrição quantitativa de fluxos de capitais conforme suas origens, maturidades e destinações; (ii) controles indiretos ou baseados em preços, que são estabelecidos pela cobrança de impostos sobre fluxos de capitais entre países e/ou pela imposição de depósitos compulsórios incidentes sobre os fluxos de capitais ingressantes; e (iii) regulações financeiras, isto é, imposição de limites sobre posições cambiais de residentes” (Ferrari Filho e Paula, 2006, p.190) (2).

Por sua vez, em relação à financeirização dos mercados de commodities e, por conseguinte, a especulação dos agentes econômicos com os preços dessas, no A Treatise on Money, publicado em 1930, Keynes, ao propor no Capítulo 38 a reestruturação do sistema monetário internacional (SMI), sinalizava sua preocupação com a necessidade de se estabilizar os preços de 62 commodities como condição fundamental para evitar processos inflacionário e deflacionário na economia mundial, cujas repercussões seriam volatilidade das taxas de câmbio, políticas protecionistas e instabilidade do valor da moeda de reserva internacional (3).

Em termos práticos, desde abril de 2009, os países membros do G-20, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Bank for International Settlements (BIS) têm apresentado algumas propostas para reestruturar o SMI, regular o sistema financeiro e dinamizar as relações de cooperação econômico-financeira internacional. Nesse sentido, (i) foi aprovado a criação de uma linha de crédito emergencial de US$ 1,1 trilhão para o FMI e outras instituições multilaterais, visando o bailout de instituições financeiras, (ii) o Banco Popular da China propôs a substituição do dólar como moeda de conversibilidade universal, (iii) o BIS encaminhou algumas sugestões de novos mecanismos prudenciais para o sistema financeiro que vão na direção de Basileia III, (iv) o FMI propôs que o SMI expanda o volume de Direito Especial de Saque, incluindo, inclusive, moedas de países emergentes, dentre as quais o yuan e o real, bem como apresentou uma proposta de “regras para a entrada” de fluxos de capitais e (V) o G-20 discutiu a necessidade de se regular as commodities, principalmente a partir da regulamentação das transações de produtos derivativos financeiros de commodities.

Em suma, todas as proposições que têm sido apresentadas e discutidas em nível mundial convergem para a ideia de que políticas econômicas contracíclicas e Estado intervencionista são importantes para mitigar as instabilidades inerentes de economias monetárias decorrentes, em grande parte, dos efeitos disruptivos das atividades especulativas dos agentes econômicas e da dinâmica dos mercados cambial-financeiros. Essa ideia, é o principal legado de Keynes.

Diante deste contexto, não faz sentido a proposição de algumas AE em quererem, de forma unilateral, elevar a taxa básica de juros para controlar o atual processo inflacionário. Essa situação, por exemplo, tem sido observada no Brasil. Mais especificamente, recentemente as AE reiniciaram a trajetória de elevação da Selic, visando, com isso, fazer com que a taxa de inflação retorne para a sua meta, qual seja, 4,5%. Tal estratégia merece algumas considerações:

• A inflação brasileira, assim como a inflação, mundial, não é predominantemente de demanda, justificando, assim, a elevação da Selic. Se excesso de demanda fosse o componente principal de nosso processo inflacionário, elevação da taxa de juros e aperto do crédito seriam eficazes. Observando, contudo, a atual tendência de elevação dos principais índices de preços do País, IPCA, IGP-DI e IPC-FIPE, os preços de alimentação e de derivados de commodities minerais, bem como os preços administrados têm subido acima dos preços livres;

• Devido, por um lado, ao fato da liquidez internacional estar muito elevada em função das políticas adotadas nos países desenvolvidos para superar a crise financeira e, por outro lado, as taxas de juros internacionais encontrarem-se muito baixas – por exemplo, as taxas básicas de juros dos bancos centrais dos Estados Unidos, da Inglaterra, do Japão e da Zona do Euro são, respectivamente, 0,25% ao ano, 0,5% ao ano, 0,1% ao ano e 1,0% ao ano –, logo o Brasil, com uma Selic de 11,2%5 ao ano é o principal destino para as operações de carry trade. Assim sendo, o influxo de capitais para a economia brasileira acaba contribuindo para a apreciação cambial, cujo reflexo direto é a deterioração das contas externas;

• Selic em elevação faz com que o custo de rolagem da dívida pública se eleva – cerca de 40,0% dos títulos públicos da referida dívida são indexados à Selic –, comprometendo, assim, qualquer esforço fiscal do Governo para equlibrar as contas públicas;

• Por fim, expectativas de elevação da taxa básica de juros têm impacto sobre a preferência pela liquidez dos agentes econômicos e, por conseguinte, suas ações especulativas e, ao mesmo tempo, posterga as decisões de consumo e investimento da economia.

Para finalizar, se as AE brasileiras, passado os efeitos da crise financeira internacional sobre a economia brasileira, não encantarem-se com o “canto das sereias” dos arautos do Estado mínimo, das políticas de austeridade fiscal, de metas para a inflação, da livre mobilidade de capitais etc. e, muito pelo contrário, adotarem políticas econômicas de cunho keynesiano (política fiscal contracíclica – mais especificamente, em tempos de recessão, política fiscal expansionista e redução do superávit fiscal, enquanto em tempos de prosperidade austeridade fiscal e, por conseguinte, elevação do superávit público –, política monetária em conformidade com àquelas praticadas pelos bancos centrais internacionais e política cambial semelhante aos dos regimes de “administração” da taxa de câmbio, inclusive com adoção de mecanismos eficazes de controle de capitais), a estabilidade macroeconômica estará assegurada.

(*) Professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador do CNPq.

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