Diário da Peste 31, por Fábio de Oliveira Ribeiro

A distância tem sido o principal tema explorado pela poesia ocidental e, em tempos de coronavírus, ela ganha outros contornos

Diário da Peste 31

por Fábio de Oliveira Ribeiro

 

O isolamento tem um efeito colateral interessante. Nossos sentidos ficam mais aguçados, pequenos acontecimentos ganham grandes proporções sentimentais. Menos embriagada pela normalidade, nossa inteligência viaja do “ente” (aparência) ao “ser” (essência) como se entre ambos não existisse um abismo.

A obturação do meu dente incisivo superior frontal caiu. Não posso ir ao dentista, pois ele também está isolado. O risco do exercício da profissão dele é maior do que o normal. O perigo do paciente ser contaminado durante um procedimento odontológico não é menor. Entretanto, a perda de um dente frontal superior fragilizado me parece tão próxima e insuportável quando sou obrigado a ficar distante do dentista.

Abro o Facebook e vejo a foto de uma jovem norte-americana. Eu a conheci quando ela era adolescente. Em apenas alguns anos, Benny se transformou numa magnífica mulher adulta cheia de autoconfiança e determinação. A distância entre nós é grande e, no entanto, tão pequena. Comentei a foto com um poema:

“You look fantastic, Benny. Stay at home. The pandemic makes no political, gender or age distinction.
Primum vivere… as the Romans said.

Poetic and subtle
My love for you
It’s harmless
Immune to sex
Perfect in shape
Eternal in the distance”

Desde a Ilíada e a Odisseia, a distância tem sido o principal tema da poesia ocidental. Páris se aproxima de Helena e coloca o mar oceano entre ambos e Menelau. Agamemnon usa o rapto como um pretexto para a guerra. O interesse dele é um, o do irmão ultrajado é outro. Mas a distância entre a cobiça agressiva e o amor frustrado pode ser eclipsada quando a unidade de propósitos se torna possível.

Os deuses não favorecem a guerra. A frota de Agamemnon aguarda ventos favoráveis. Um sacrifício é necessário, mas para realiza-lo o líder da expedição tem que se distanciar do amor que sente pela filha Ifigênia.

Ao chegar em Troia acompanhado de Helena, Páris colocou uma distância entre seu país e a paz. A guerra se aproxima. Mas a vitória está distante. Uma década depois de chegarem no litoral os gregos estão cansados e desmotivados. A abismo entre o desejo e sua concretização se tornou um fardo.

O filho de Peleu deseja uma glória imortal. Agamemnon exige a submissão total dos seus subordinados. A distância entre eles aumenta à medida que o fracasso da guerra evidência a incompetência militar de ambos.

Antes da guerra chegar ao fim, o espaço entre os troianos e seu rei aumenta. Priamo é obrigado a se despedir do filho após ver o cadáver dele ser humilhado por Aquiles. Antes de combater seu inimigo, Heitor é confrontado pela esposa, mas ele é incapaz de ver qualquer distância entre o amor que sente pelo filho e a obrigação imposta pelo dever cívico de defender sua cidade.

Aquiles derrota Heitor, mas a glória do rei dos mirmidões anda de mãos dadas com a morte. Ele não conseguirá invadir Troia nem voltar para sua terra natal. Ulisses oferece uma solução para o impasse. Impossível de ser obtida através de combates honrados, a vitória é obtida mediante um ardil inescrupuloso.

Agamemnon invadiu e saqueou Troia, mas não pode desfrutar a glória e os lucros obtidos com a vitória. O sacrifício de Ifigênia o distanciou da esposa. E Clitemnestra não está disposta a perdoar o assassino da filha que ela amava.

O tema da distância também é evidente na Odisseia. Por mais que tente, Ulisses não consegue voltar para Itaca. Distante do marido, Penélope tenta de todas as maneiras aumentar a distância entre ela e aqueles que pretendem se casar com ela.

Ulisses quer ouvir o canto das sereias e pede para ser amarrado no mastro do barco. Distanciando-se da liberdade de agir ele pode realizar seu desejo. Com os ouvidos entupidos de cera os marujos não ouvem nem as sereias nem os berros de Ulisses querendo ser solto. Eles estão próximos do rei justamente porque permanecem distantes dos comandos dele.

A distância entre nós e os gregos que atacaram Troia é abissal. No entanto, ela deixa de existir por causa da poesia épica. Apesar de perigosa e irritante, essa pandemia nos permite manter uma proximidade maior com a Ilíada e a Odisseia.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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