Direitos Humanos como categoria jurídica: da ojeriza à salvação, a urgência de uma cultura, por Eliseu Venturi

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
[email protected]

Foto Amazonas Atual

Direitos Humanos como categoria jurídica: da ojeriza à salvação, a urgência de uma cultura

por Eliseu Raphael Venturi

Nas últimas décadas os direitos humanos ocuparam as mais diversas pautas de discussão: de um modo geral, eles foram postos – exceto um ou outro momento mais empolgado com sua plasticidade – de modo visível ao observador atento, em locais desconfortáveis.

Salvo quando nos direitos humanos se pudera calçar algum interesse político específico, eles se tornaram objeto de franca ojeriza, inclusive e, talvez, sobretudo, no meio acadêmico jurídico – posta sua pouca apelação ante o Judiciário e demais poderes.

Muito se repetiu a expressão, pouco se cuidou do seu conteúdo. Outras áreas de pesquisa, ainda presas às críticas aos direitos humanos do começo do Século XX, sequer tocam a contemporaneidade do assunto. A despeito das tentativas, não se criou um substrato efetivo de cognição e valoração por meio dos direitos humanos.

Seriam os direitos humanos ornamentais? Literários? Excessivos? Genéricos? Virados do avesso e assim largados, culpados pelos paradoxos produzidos por uma realidade indiferente aos seus preceitos normativos, afogados por discursos do estado de exceção, da anacrônica crítica obsessiva à soberania (também nos moldes do começo do Século XX) e da vida nua por todos os lados, os direitos humanos foram sendo craquelados, e martelos e facas a si lançados.

Não faltaram risos irônicos, das direitas às esquerdas, mesmo enquanto os direitos estiveram lá, cumprindo sua função de limitar o poder estatal e mercadológico, e conferir algum tipo de normatividade à barbárie.

Os direitos humanos como categoria jurídica, assim, além de desprezados e, portanto, pouco estudados, se tornaram fáceis e descartáveis diante das prateleiras de teorias estrangeiras mais interessantes e performáticas.

Sucumbiram tais direitos, facilmente, à bagagem das importações de seções fragmentadas de outros sistemas jurídicos louvados (como no caso do direito norte-americano e suas soluções pragmáticas, precedentes e balcões negociais de direitos, a nova religião). Novas gerações (de pessoas, não dimensões de direitos) foram se mostrando cada vez mais jocosas com nossas realidades.

Como a maioria dos pesquisadores, juristas, julgadores, entre outros, estivera bem atendida em seus direitos humanos, em todas as suas dimensões, desde a subsistência até viagens internacionais, a categoria perdeu força, vigor e significação social, salvo um ou outro desdobramento, por exemplo, respectivo à liberdade sexual.

Outras agendas foram setorialmente mais consideradas na ourivesaria do Direito, algo muito consentâneo, também, a uma profusão da crise do Direito como justificativa de todas as coisas. “Odiamos o Direito”, repetiram, muito embora dele tiremos nosso conforto. Criou-se mais vazio.

Ademais, altivamente se perguntariam: o que seriam os direitos humanos, esta tralha que parece confusa a uma leitura apressada e equivocada, que coliga cosmovisão cristã com fragmentos babilônicos e restolhos de modernidade para explicar tal categoria?

Repetiram-se os mesmos mantras sobre a cristandade da pessoa, os fundamentos cristãos destes direitos, ou fundamentos europeus, critiquemos os fundamentos. Insistência e teimosia, ou talvez a mais poderosa pedra de toque: história; qual história?

Muito menos, certamente, foram lembrados os fundamentos políticos, históricos e da sensibilidade e dor do pós-guerras mundiais como origem da leitura contemporânea e laica dos direitos humanos: omissão imperdoável ante os “túmulos nos ares” (Paul Célan).

Salvo pouquíssima pesquisa relevante – insuficiente por si para criar uma cultura – em um oceano de retóricas teológicas ou de juridicidade difusa, bem como medidas governamentais até então inimagináveis e ações pontuais inegavelmente frutíferas, os direitos humanos, diante da sua relevância e dimensão jurídica, foram realmente pouco explorados em seu potencial.

A infinitude da justiça, no sentido de Derrida, sempre demanda um esforço maior; no mundo do gosto pela perda e subtração de direitos, o sentido é justamente o contrário: direitos sempre são poucos, sempre uma falta, sempre necessidades a atender.

Os direitos humanos, pois, por um largo período de um tempo irresponsável, foram lançados como saco de pancada e, eventualmente, tábua de salvação, um paradoxo e uma ambiguidade, igualmente, desconfortáveis, algo próximo a um uso oportunista de uma forma jurídica. Linchemos os direitos, por um lado, aleguemos direitos, por outro: os mesmos direitos, cada vez mais enfraquecidos.

As teorias críticas dos direitos humanos, ao serem mal interpretadas e elas mesmas ao delegar todas as construções à luta política, bem como ao reduzir o direito positivo a algum monstro liberal e conservador, impuseram como efeito, desejado ou não, um desapreço dogmático que diversos pesquisadores assumiram de modo acrítico, tornando o “versus” qualquer figura estatal o “locus” de uma resistência política imperativa e irrefragável, como se não houvesse um mundo ou formas jurídicas disponíveis a promover mudanças por meio de obrigações jurídicas vigentes.

As teorias universalistas, por seu lado, ao proclamarem uma dogmática erigida pelo político em um mundo traumatizado, e ao competentemente construírem uma rede, ainda que com dificuldades proporcionais a sua dimensão, foram sufragadas por arrogâncias filosóficas indiferentes à conquista civilizacional, intolerantes a quaisquer marcos de mínimos de convivência e sem qualquer compromisso com a apresentação de soluções, então, mais viáveis. Sua adesão nos sistemas internos, mesmo que com desenhos teóricos suficientes, também é frustrante.

As ditas ciências humanas não tiveram piedade, as sociais desconfiaram no todo. Tornou-se moda fácil desprezar o humanismo, a dignidade, a humanidade, a despeito dos sentidos éticos contemporâneos que estas expressões pudessem carregar; tudo fora condenado, quanto mais considerando que o Direito, ele mesmo, tornou-se um grande objeto de desapreço.

Afinal, por nós somos autossuficientes, mas nossas dívidas, não teremos pudor em executá-las no aparato judicial. As almas mais pretensas à coerência e formalmente preparadas para tanto deflagraram suas inconsistências sem pudor; educação formal não parece mais ser a salvação quando um juiz constitucional considera que o direito ao juiz natural não seja matéria constitucional.

No campo da educação jurídica, reflexo do mundo e produtor do mundo profissional, para alguns, os direitos humanos seriam a expressão de utopia, idealismo e mesmo de um delírio coletivo. Nada mais equivocado em termos técnicos. Para outros, mais um instrumento de afirmação ideológica; trata-se de confundir usos de um objeto com o objeto em si. Outros ainda viriam nos direitos humanos belas palavras vazias, e tantos outros uma linguagem fácil, genérica e superficial que, por sua abstração, seria inútil para conhecer ou valorar o real.

Apêndice do Direito Constitucional em algum momento respectivo à história dos direitos fundamentais, ou disciplina optativa procurada por alguns afins às propedêuticas, não se teve pudor de relegar os direitos ao canto da sala: uma vaga lembrança, uma breve pincelada, um raio de luz, leitura complementar.

Nem o suposto Guardião da Constituição aproveitou para desvalorar o peso de uma solução social, em redações, que viole direitos humanos e, mais uma vez, malbarateou, “apequenou”, espezinhou o potencial destes direitos, diga-se, o fez também do alto dos seus direitos muito bem atendidos.

Esta terra nua, somada à enxurrada de críticas estapafúrdias sofridas desde os telejornais policiais até o seminário da pós-graduação (com discursos muito próximos, aliás), assim como à (in)consciência empresarial que se acha descolada das obrigações de respeito e promoção impostas por tais direitos, sem contar os olimpos das redes sociais, parece fixar um contexto no mínimo fértil a um cenário político de tamanha convulsão, desapreço e violação cotidiana de direitos, que hoje se vê límpido no despudor da pretensa liberdade pública.

O quase causal rumo ao autoritarismo totalizante parece não apenas natural como realmente esperável diante de uma cultura de direitos humanos como a nossa: debochada, ignorante e dada ao escracho, quando não cínica, contraditória, indiferente.

Hoje, diante da concretização de retrocessos há pouco inconcebíveis na história da democracia do Brasil (e alguém já objetará a não existência desta história), vê-se a retomada de alguma simpatia pelos direitos humanos, não obstante a clareza sobre a brutalidade e indiferença que a política pode proporcionar. Como este reencontro será feito, ainda muitas comicidades e contradições ilustrarão.

Salvem-nos, direitos humanos! Em nossa missão de sua conservação fomos irônicos, mas, em todo e último caso, alegaremos nossa humanidade – essa humanidade abstrata, genérica, mas que quando cortada na carne finita, dói de perto.

Estarão, porém, ainda vivos, tais direitos? Como dissera o diplomata brasileiro José Augusto Lindgren Alves: “é preciso salvar os direitos humanos do descrédito em que se encontram em todo o mundo”.

O brado aos direitos deverá ser precedido de um retorno aos direitos. A questão é: embora declarados, como subsistirão posto que ausentes nas consciências dos profissionais do Direito, dos ditos operadores, dos professores, do cidadão, dos gestores, julgadores etc.?

Nossas habilidades de negociantes, pensadores, comerciantes, trabalhadores, todo nosso talento irá nos salvar, agora, diante desse vazio que se criou coletivamente? Quando não se compreende o sentido da normatividade e da diretividade, parecem ainda mais obscuras as respostas a estes questionamentos.

Resta esperar, ao menos, que tal reaproximação, ainda tímida e materialmente raquítica, não seja apenas uma nova onda, moda passageira, meio de afirmação pessoal sem qualquer efeito prático no político, no coletivo, no jurídico. Talvez a recuperação de termos como vontade compromisso e fidelidade constitucional sejam um começo de alguma renovação democrática e republicana, condizente com a construção de uma efetiva cultura de direitos humanos.

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Texto fraco e confuso.

    Mas que em suma pode-se ser resumido ao paradoxo insolúvel dos DH:

    – Universalidade transnacional que desconsidera o contexto local de cada país e suas culturas, ou subordinado às relatividades pragmáticas?

    Para dizer só isso, nem precisava dizer tanto.

    A tentativa de colar nas ciências humanas ou nos setores à esquerda uma possível relativização dos DH, como moeda de troca nos supostos pragmáticos impostos por agendas políticas e as lutas delas decorrentes, é sofrível.

    É como dizer: esquerda e direita violam os DH e ambos se igualam nisso!

    É de chorar assistir alguém dizer que estuda há tanto tempo, que assina com tantas referências acadêmicas para escerever uma m#rda dessas!

    Como se existisse uma categoria de DH acima os pós-humana.

    Não há, pois todo Direito e sua concepção é humana.

    Tal concepção equivocada de dá, porque na verdade, os “juristas” como o autor do texto, consideram haver direito (ou de forma mais ampla, justiça e seus estamentos normativos) quando ele se destina restringir direitos ou melhor dizendo, porque contemplam o direito mesmo quando sabem que os sistemas normativos jurídicos no mundo capitalista só existem para negar o avanço da Humanidade e seus progressos, existem pois para, em última instância, negar direitos e manter as bases da desigualdade!

    De certa forma, toda norma (mormente as de natureza penal) positiva é restritiva e negativa a um comportamento.

    O autor reinvidica um estado da condição humana que não existe, que é a solidariedade e o respeito ao próximo como um “estado natural”.

    No máximo respeitamos aqueles que consideramos similares, aqueles que identificamos algum traço de humanidade que  nos é comum.

    A tentativa (infrutífera) de estabelecer uma categoria universal (Humanidade) só serve ao escamoteamento de violações que acontecem enquanto acreditamos ser possível que tal categoria por si só dê conta dos conflitos e hierarquias de “humanidades” que existem e que lutam entre si.

    O texto, no máximo, serve para material de propaganda de alguma ong dessas que enchem nosso saco e enchem os bolsos com subvenções de governos.

    A existência de uma concepção de DH só é possível em ambiente justo e de dignidade social, de distribuição de riquezas, na prevalência dos interesses chamados coletivos e públicos sobre os particularistas e privatistas.

    Isto é, como resultado de um movimento político específico, ainda que leve em conta a meta de dignificar o relacionamento humano e a garantia de condições mínimas de respeito à dignidade humana.

    Em suma, não há DH possível no mundo capitalista, porque DH só existem em ambientes democráticos e sabemos todos, Democracia e Capitalismo nunca casaram, no máximo viveram em concubinato.

    Quanto mais desigual a sociedade, menos direitos humanos ela respeita!

    É isso, e ponto final!

  2. Compras

    Primeiro entrei num shopping bacana, de riquinho, cheios de lojas chics e cujo acesso só se dá por automóvel. Olhei a todas as vitrines, em todos os andares, na praça de alimentação e nada, não encontrei o que procurava.

    Depois fui a um shopping de bairro bom, menor, exclusivo mas um pouco mais acessível. Olhei a todas as vitrines, quiosques, parques, cinemas, praça de alimentação e também, nada, não encontrei o que procurava.

    Fui a um shopping mais popular, de município adjacente, e também não encontrei o que procurava. Somente achei as lojinhas simpáticas, vazias e vendedores ansiosos .

    Desisti, fui a uma lojinha de bairro, dessas que as vendedoras ficam de pé o dia todo sorrindo pra não chorar, e como não tinha vitrines arrumadas, só as banquinhas de liquidação, antes mesmo de entrar na loja a mocinha já gritou lá de dentro: – “Pois não, bem!”

    Perguntei-lhe – ” Você tem direitos humanos?”

    Ela respondeu-me rápida e  sorridente : ” Tem sim  (e antes que eu pedisse um, continuou)  mas está em falta”

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador