Entenda: Congresso da Argentina pode invalidar ‘megadecreto’ de Javier Milei

Renato Santana
Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.
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Decreto poderá ter validade curta se na Câmara e no Senado o documento não for aprovado por maioria absoluta

Anúncio de megadecreto foi feito por Milei direto da Casa Rosada, ao lado de sua equipe ministerial. Foto: Presidência da Argentina

O presidente da Argentina, Javier Milei, explicou nesta quarta-feira (20), em rede nacional de rádio e televisão, o alcance do Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) que visa a desregulamentação da economia no âmbito do seu programa de ajustes para o país.

Seguindo à risca os métodos atrapalhados inerentes às experiências de grupos de extrema-direita que chegam ao poder sem vivência política, o governo esqueceu de colocar a data no decreto e ele deverá ser republicado nesta quinta-feira (21). 

Do contrário, conforme o Código Civil e Comercial da Argentina, o regulamento entrará automaticamente em vigor no prazo de 8 dias – 29 de dezembro. 

Ocorre que o Congresso pode decidir invalidá-lo, mas o decreto precisa ser rechaçado pelas duas casas legislativas, Câmara e Senado, tornando curta sua vigência sem garanti-lo com maioria absoluta. 

Conforme o Pagina 12 noticiou, o Chefe da Casa Civil, Nicolás Posse, tem o prazo de dez dias para enviar o DNU à Comissão Permanente Bicameral de Processo Legislativo do Congresso Nacional. 

Este órgão tem outro prazo de dez dias úteis – a partir do momento em que recebe — para emitir parecer sobre a validade ou invalidade do decreto e enviá-lo ao Senado e à Câmara dos Deputados para discussão.

Caso a comissão não o faça no prazo estabelecido, ambas as câmaras deverão discutir o assunto ex-officio. Portanto, nos casos mais longos, a validade do DNU seria definida até 15 de janeiro de 2024, embora também pudesse ocorrer mais cedo se os diferentes atores envolvidos no processo cumprissem os seus compromissos institucionais antes do final dos prazos estabelecidos.

Quanto ao tratamento em si, a verdade é que a Constituição só permite a utilização do DNU em “circunstâncias excepcionais” em que o Congresso seria impedido de continuar com os seus “procedimentos ordinários” para a promulgação de leis. Além disso, é vedada a sua utilização em matéria penal, tributária, eleitoral e de regime partidário.

Aprovação só com maioria absoluta

Ambas as câmaras só poderão validar ou invalidar o decreto com base na votação por maioria absoluta – metade mais um dos presentes, obviamente após obtenção do quórum necessário para se reunirem. 

Ao mesmo tempo, os parlamentares não estão autorizados a introduzir alterações, modificações ou acréscimos ao documento.

Caso nenhuma das câmaras decida tratá-lo ou se o documento for aprovado por uma delas e rejeitado pela outra, o DNU permanece em vigor. Por outro lado, para que o decreto caia e perca validade, ele deverá ser rejeitado pelas duas casas.

Conforme assinalou o Pagina 12, o presidente afirmou que o que foi anunciado “não é um pacote pró-negócios, mas sim um pacote pró-mercado, ou seja, pró-liberdade” e esclareceu que as medidas “já estão em vigor”. Disse ainda que os argentinos sofrem da “síndrome de Estocolmo” e “são abraçados e apaixonados pelo modelo que os empobrece”.

O anúncio e os protestos

Milei anunciou, direto da Casa Rosada, ladeado por todos os seus ministros e ministras, 30 revogações de leis atuais e a criação de novos dispositivos legais, afirmando que existem mais de 300 no DNU (leia mais abaixo) que beneficiam o mercado para evitar “a pior crise da história”, em sua justificativa.  

Não por coincidência, mas como uma forma de provocar seus opositores, Milei escolheu o 20 de dezembro para o anúncio das medidas. O pronunciamento estava inicialmente marcado para a hora do almoço, mas por conta dos protestos acabou transferido para o início da noite.  

Este é um dia especial para os argentinos, um dia de manifestações públicas em memória do 22º aniversário de um protesto em 2001, que desdobrou-se entre os dias 19 e 20 de dezembro, contra o governo do então presidente Fernando de la Rua. Foram dezenas de mortos devido à repressão policial.  

Nesta quarta-feira (20) as manifestações marcaram ainda o primeiro grande protesto contra o governo Milei e o seu “Plano Motosserra”, contando com  confrontos entre manifestantes e policiais na capital Buenos Aires. 

As tensões aumentaram quando os oficiais tentaram levar os manifestantes para a calçada, desobstruindo uma das vias da cidade. A ação policial aconteceu dias após Milei anunciar um protocolo antipiquetes e ameaçar cortar os benefícios sociais de manifestantes que bloqueiem vias e pontes durante protestos. 

Um telefone para denúncias anônimas foi criado pelo Ministério do Capital Humano com o objetivo de fazer com que pessoas possam avisar as autoridades sobre outras que estejam “infringindo” a lei e realizando protestos nas ruas. Beneficiários de programas sociais podem deixar de receber os benefícios se forem pegos nos piquetes. 

Tendência de mais protestos 

O secretário-geral da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), Héctor Daer, afirmou em seu perfil na rede social X que “rejeitamos o DNU decretado pelo governo (…) subverte a ordem republicana democrática e altera a divisão de poderes. A sua inconstitucionalidade é manifesta. Não vamos tolerar o ataque aos direitos laborais, sociais e à segurança social”.

Para Daer, “as emergências ditadas” são baseadas por um “diagnóstico intencionalmente falacioso” feito pelo governo Milei para destruir os direitos sociais. O sindicalista é enfático ao afirmar que as medidas do governo vão aprofundar ainda mais a crise da Argentina, levando caos à sociedade.

Em vista do conteúdo do decreto, de completa desregulamentação do Estado em benefício do mercado, preceito fundamental da perspectiva chamada de “anarcocapitalista”, fazendo com que Milei se autodefina como “libertário”, a assistência social, os direitos trabalhistas, os salários, aluguéis e aposentadorias serão diretamente afetados. 

O que levará a mais protestos, piquetes, manifestações e convulsões sociais generalizadas com o agravamento do quadro econômico e social, previsto até pelo próprio governo Milei e seus seguidores, justificando, assim, a “Lei Antipiquete”, que já começou a funcionar nesta quarta (20). 

Segundo o sociólogo Eric Calcagno, ex-senador e ex-embaixador da Argentina na França, este é o anúncio da transferência do poder real para as grandes empresas, que já administram a economia argentina. 

Além disso, Calcagno comparou as iniciativas do novo presidente com as políticas da década de 1990.

“Já foi tentado, já foi implementado e não funcionou”, sublinhou Calcagno acrescentando que por isso a pobreza no país aprofundou-se.

O que disse Milei 

“Hoje é um dia histórico para o nosso país. Depois de anos de declínio, iniciamos o caminho da reconstrução”, disse Milei antes de detalhar o DNU. 

“Este país exige uma mudança urgente de rumo para evitar o colapso”, disse o presidente depois de questionar a “expansão do Estado” e o fracasso das receitas aplicadas “durante décadas”.

O presidente insistiu que o DNU procura “desmantelar o quadro jurídico opressivo que trouxe a decadência” ao país. E começar a trilhar o caminho para “tornar-se novamente uma potência mundial”. 

Milei questionou o nível de inflação, um “imposto oculto” que atribuiu aos gastos públicos do Estado e às regulamentações de preços e comércio.

O que está no DNU 

O DNU  é composto por cerca de 600 artigos e inclui uma série de modificações nas regulamentações no domínio do trabalho e da produção, da saúde e da reforma do Estado, principalmente no que diz respeito às contratações e gastos públicos.

Entre as principais iniciativas do DNU estão as alterações ao sistema laboral, a simplificação de alguns procedimentos burocráticos para modernizar o Estado e a revogação da lei do arrendamento, que Milei já tinha prometido eliminar.

O decreto presidencial é um instrumento constitucional do Executivo que tem força de lei. Embora não seja necessária a aprovação no Congresso, o DNU pode ser invalidado com a rejeição do Senado e da Câmara.

Milei está preparando uma série de políticas que requerem a aprovação do Poder Legislativo, por isso serão apresentadas como projetos de lei, antecipou o Clarín. 

Entre essas questões, o presidente aponta uma reforma tributária, modificação da fórmula de aposentadoria, uma reforma política e outras medidas centrais do seu anunciado ‘Plano Motosserra’.

Veja os principais pontos do decreto:

  1. Revogação da Lei do Arrendamento;
  2. Revogação da Lei de Fornecimento;
  3. Revogação da Lei das Gôndolas;
  4. Revogação da Lei Nacional de Compras;
  5. Revogação do Observatório de Preços do Ministério da Economia;
  6. Revogação da Lei de Promoção Industrial;
  7. Revogação da Lei de Promoção Comercial;
  8. Revogação da regulamentação que impede a privatização de empresas públicas;
  9. Revogação do regime das empresas estatais;
  10. Transformação de todas as empresas do Estado em sociedades anônimas para posterior privatização;
  11. Modernização do regime laboral para facilitar o processo de geração de emprego genuíno;
  12. Reforma do Código Aduaneiro para facilitar o comércio internacional;
  13. Revogação da Lei de Terras para promoção de investimentos;
  14. Modificação da Lei de Combate ao Fogo;
  15. Revogação das obrigações que as usinas têm em relação à produção de açúcar;
  16. Liberação do regime jurídico aplicável ao setor vitivinícola;
  17. Revogação do sistema nacional de comércio mineiro e do Banco de Informação Mineira;
  18. Autorização para transferência do pacote total ou parcial de ações da Aerolíneas Argentina;
  19. Implementação da política de céu aberto;
  20. Alteração do Código Civil e Comercial para reforçar o princípio da liberdade contratual entre as partes;
  21. Modificação do Código Civil e Comercial para garantir que as obrigações contraídas em moeda estrangeira sejam pagas na moeda acordada;
  22. Alteração do quadro regulamentar da medicina pré-paga e das obras sociais;
  23. Eliminação das restrições de preços na indústria pré-paga;
  24. Incorporação das empresas de medicamentos pré-pagos no regime de assistência social;
  25. Estabelecimento de prescrição eletrônica para agilizar o atendimento e minimizar custos;
  26. Alterações ao regime das empresas farmacêuticas para promover a concorrência e reduzir custos;
  27. Alteração da Lei das Sociedades Comerciais para que os clubes de futebol possam se tornar sociedades anônimas se assim o desejarem;
  28. Desregulamentação dos serviços de Internet via satélite;
  29. Desregulamentação do setor do turismo, eliminando o monopólio das agências de turismo;
  30. Incorporação de ferramentas digitais para procedimentos de registro automotivo. 

Sessões extraordinárias no Congresso

Milei anunciou que vai convocar sessões extraordinárias no Congresso, que entra em recesso durante o mês de janeiro, para discutir um pacote de leis que “permitirá avançar no processo de mudança que a sociedade escolheu, num contexto de crise que exige ações imediatas”, indicou.

E alertou: “os deputados e senadores da Nação terão que enfrentar a responsabilidade histórica de escolher entre fazer parte da mudança ou obstruir o mais ambicioso projeto de reforma dos últimos 40 anos”.

Com informações do Pagina 12, Clarín, TeleSur e Agência RT

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3 Comentários

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  1. Milei acha que foi coroado imperador…

    Ou será o papo do “eutenteimasELESnãodeixaram” …

    Esta “MP” portenha é por maioria simples (metade mais um) ou “absoluta” ?

    Continuo com pena da crise tendo de morar na Argentina …

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