o Brasil & o Brasil (4)

“Uma vez ela me disse que toda a história de Besźel e Ul Qoma era a história da guerra entre Orciny e a Brecha. Besźel e Ul Qoma estavam dispostas como movimentos de xadrez nessa guerra.”

“A cidade & a cidade”, China Miéville

com o Brasil em transe, a política rompeu o cativeiro parlamentar e institucional e ganhou as ruas, ocupou as praças. a política se reconcilia com sua raiz: o poder instituinte em disputa no cotidiano.

corações, mentes e corpos se convulsionam sob a vertigem da intensidade do momento histórico. o público e o privado se entrelaçam tragicamente, impondo-se aos mesquinhos dramas individuais.

os incapazes de catarse libertadora, já não podem conter a volúpia pela castração: controle, repressão, punição. as massas não foram enganadas, as massas desejaram o fascismo. o interesse pode ser traído, mas não o desejo. debaixo da pele, o corpo ferve, enquanto por fora o indivíduo reluz com um brilho opaco, através dos poros estilhaçados.

com o crepúsculo, acometidos de distúrbios mentais crônicos experimentam uma sensação de melancolia e inquietação. confusos, sem entender ao certo o motivo, vagam dentro de si mesmos, numa agitação mórbida, tomados pela fúria e desorientação.

a realidade se liquefaz e a sociedade experimenta a História enquanto acontecimento do agora. com o público e o privado entrelaçados no cotidiano e a História se construindo à vista de todos, a intensidade do momento leva os indivíduos a delirarem o campo social. os surtos se tornam endêmicos.

como um delírio começa? o campo social é sempre anterior ao círculo familiar. a libido alucina a história e delira as civilizações.

o inconsciente é órfão. conhece apenas o desejo e o campo social, e nada mais. somos nosso filho, nosso pai, nossa mãe  e nós mesmos. o delírio sempre percorre o campo social histórico, como um campo de batalha, tomado pelas guerras de libertação, e não um palco de teatro burguês, com a tediosa encenação do triângulo edipiano. o Édipo antes de ser um sentimento infantil de neurótico, é uma idéia de paranóico adulto.

porque é que os homens combatem pela sua servidão como se fosse a sua salvação? como é possível clamar: mais repressão! como se chega ao ponto de querer a repressão não só para os outros, mas também para si próprio?

os afetados pelo distúrbio da síndrome do crepúsculo sentem-se inseguros e anseiam voltar para casa. mas já não há retorno. a demência é uma viagem definitiva. também pode ser a abertura de uma passagem.

ser louco não é necessariamente ser doente. a loucura é um produto de uma destruição imposta e auto assumida. uma loucura é um grosseiro disfarce, uma caricatura grotesca do que poderia ser a cura natural. a autêntica saúde mental implica, seja de que modo for, a dissolução do ego denominado de “normal”…

quantas pessoas conseguem suportar a incerteza e perplexidade de um momento histórico enquanto ele se desenrola? vivemos todos este crepúsculo. este momento em que os velhos personagens se debatem ao serem tragados pelo colapso de um sistema de poder. nenhum de nós sairá impune. nenhum de nós será poupado. esta é a crise de todos nós.

estamos sendo arrastados pelo rio revolto da política, já não mais comprimida entre as margens da conciliação e do golpismo. é o próprio rio que nos acena, vindo ao nosso encontro, atendendo ao nosso chamado. o que faremos, nós que uma vez ousamos nos chamar de Brasileiros? correremos, fugiremos, arrepiados de pavor? ou nos colocaremos em nossa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras?

eu vou! por que não? e, nós, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.  

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Redação

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