O fascista comum: um pobre coitado.

Tempos atrás, escrevi sobre o fascista comum, um zé ninguém como eu, como você, mas que diferentemente de mim (e, espero, de você que me lê agora), aderiu esfuziante ao cio da cadela fascista, desumanizando quem vê como diferente e achando que o mundo será bom o dia em que a harmonia será perfeita, graças à aniquilação de qualquer diferença – de posição política, opinião, cor de pele, gosto ou corte de cabelo [http://bit.ly/2xY2e9Y]. De início, cri que meus amigos e conhecidos que aderiram ao fascismo eram pessoas dotadas de má-fé e de burrice – não cabe falar em ignorância, porque são pessoas com ensino formal, acesso a livros e internet, não podem alegar desconhecimento, é má-fé na interpretação dos fatos ou falta de capacidade de cognitiva para tanto, certamente um misto dos dois. Ainda que o movimento dos patos batedores de panela tivesse fortes tintas fascistas, evitei taxar seus adeptos como tal, uma vez que a campanha da mídia goebbelsiana havia sido feroz contra o PT. Notei, no início do ano, que muitos dos meus amigos do Fakebook que bateram panela silenciavam sobre política, ou se diziam em decepção geral – haviam se tocado que foram feitos de pato, enganados feito crianças de quatro anos.
Com a campanha presidencial, discursos de ódio voltaram a ganhar legitimidade, e a postagem de um “amigo” do Fakebook me fez notar um outro aspecto do fascista comum que eu não atentara há seis meses: além de má-fé e burrice, o fascista comum é, no fundo, um pobre coitado, alguém com baixa auto-estima e sérias dificuldades em aceitar quem é, incapaz de se enxergar de fato no espelho, e que na ânsia de seguir acreditando na mentira que criou para si próprio, adere facilmente ao líder fascista, se autoenganando que essa identificação ao líder vai alterar quem ele é.
Tomo um exemplo muito específico, mas que creio significativo: um ex-professor que tive na SP Escola de Teatro. Em 2014 aderiu contente e caninamente a Aécio, questionou a legitimidade das eleições e chamou Dilma de estelionatária (por cumprir o programa que ele defendia); em 2015 bateu panela e não teve peias em chamar Dilma de vaca; em 2016 festejou que o Brasil havia sido devolvido para ele e torcia pela prisão de Luladrão, pouco importa que apenas por convicção; no início de 2018 estava silente, nada de política, sequer da prisão de Lula: só fotos em família. E continuava morando no Brasil, sinal que não soube aproveitar a oportunidade dada pelo golpe – ou não tinha dinheiro para tanto, de modo que precisa seguir camelando pelo pão de cada dia em terras tropicais.
Pelo visto, a campanha presidencial deste ano fez esquecer a vergonha que passou ao aderir sem pensar a líderes e pautas suspeitas, e permitiu a ele se libertar para assumir seus preconceitos – sem expressá-los claramente, como bom homem cordial. Em postagem precária de raciocínio, reduziu a política brasileira a PT e Bolsonaro para declarar voto no nazista. Como em texto que corre pela internet, há 11 opções entre PSL e PT, os debates apresentam boa parte desses candidatos, muitos deles possuem boa parte dos mesmos ideais do capitão, o que impede alegar ignorância: o voto fascista não é apenas por questão de antipetismo, mas de simpatia com suas bandeiras mesmo.
Esse ex-professor é sintomático pela sua figura. Votar em Bolsonaro serve para negar a realidade mais bruta acerca de si próprio, até que um dia essa realidade seja brutalmente atirada contra seu rosto – e então ele, tardiamente, talvez perceba qual seu lugar na hierarquia fascista. Seu perfil na rede social é um desenho em que ele se apresenta como uma pessoa branca. Aqui no Brasil da cordialidade e do preconceito (mal) disfarçado, como temos um Pantone de cores para as pessoas, mil formas de alegar que alguém não é branco, ele pode ser identificado como “moreno”; nos EUA ou Europa, certamente seria “negro”, sem necessidade de qualquer discussão. De volta ao Brasil, numa batida da polícia, certamente ele seria visado enquanto eu passaria tranquilamente – a depender da situação (como já me aconteceu), eu até poderia peitar o policial enquanto ele teria que ficar com as mãos na cabeça, humilhando perante os demais. Também seria algo pela cor de pele para uma milícia fascista paraestatal. Não apenas isso. Para meu primo, membro de gangues neonazistas de Curitiba há vinte anos (apesar de ele ser negro, ou melhor, moreno), esse professor tem cara de nordestino, e seria um dos alvos preferenciais dos seus ataques (me vem à lembrança nós assistindo ao jornal televisivo e ele xingando os “baianos”, bando de “preto”, “feio”, “vagabundo”, “fedido” que “não gosta de trabalhar” e “se deixar, fica na praia e faz carnaval o ano todo”, tínhamos uns 17 anos na época; hoje ele vive basicamente de mesada dos pais, enquanto patina como professor de yoga bolsonarista). Outro “porém”: ele é casado com mulher, tem filho, mas é um homem de gestos delicados, jeitosos, muito distante de um macho alfa, e pode facilmente ser confundido com um homossexual – creio que fascistas e homofóbicos de plantão pouco se importarão em questionar se ele de fato é gay antes de começar a golpeá-la. Seu porte físico tampouco permite acreditar possibilidade de defesa – apanharia até para uma gangue mirim que tentasse abusar de sua esposa, que é negra, e que ele não deve achá-la bonita, pois não teme que ela tenha “o direito” a ser estuprada – o elogio mais eloquente que uma mulher pode ganhar de um homem fascista, ser penetrada à força -, sem falar que deve ser bem submissa, para ser do seu agrado – se acreditarmos no que ele próprio fala.
Fico a imaginar o quanto ele não sofria quando trabalhava com teatro (pelo seu Fakebook, tenho a impressão que largou a área). No meu curso, cerca de metade dos alunos era composto por mulheres; 40% eram negros, e uns 70% homossexuais. Fora do curso, nos palcos e coxias, o número de pessoas negras, de homossexuais e de mulheres também é bem elevado. Como devia controlar o nojo de ter lidar com esse tipo de gente todos os dias? E ainda parecer simpático, atencioso e muitas vezes servil (porque ele era um zé ninguém da área, assim como um professor mediano, facilmente substituível, que nunca pode, portanto, dar pitis de estrela)? Quantos anos não teve que segurar esse ódio, em nome de ter uma aparência de pessoa legal. O que nele motiva esse ódio todo?
O antipetismo é claramente um subterfúgio para não ter que encarar o desejo (interdito) que o consome por dentro, feito um câncer. Certamente o que ele odeia não é o outro, é a si próprio: o outro é um espantalho que o distrai daquilo que o perturba – e ele, como fascista comum, é um perturbado: muito mais fácil dizer que a culpa é do outro, inteiramente do outro, e ele, um inocente. E em alguma medida ele deve ser mesmo um inocente: conscientemente virgem daquilo que o oprime desde dentro e não o permite gozar a vida de modo leve e prazeroso. Não conheço nada da sua vida, o que me impede maiores conjecturas sobre seu caso particular, a não ser generalidades a partir daquilo que ele alardeia em suas postagens cheias de ódio: um pobre coitado que se gostaria de ser da elite, se nega a enxergar que não é elite, nem nunca será em um governo fascista: por ser negro, por parecer nordestino, por parecer homossexual, e por ser um classe média remediado, sem dinheiro suficiente para, quem sabe, tentar comprar seu atestado de legítimo homem branco do sul – espécie de carta alforria (falsa) destes tempos – ou uma quinta em terras lusitanas. Talvez, como é tão comum nestes Tristes Trópicos, tenha uma história de privação, de humilhações ao longo de toda a vida por causa da sua aparência e do seu jeito: mas nesse ponto, em que caberia entender que a culpa é, sim, do outro – ainda que um outro abstrato e imiscuído com o contexto e a história -, ele aceitaria que se trata de uma falha sua, e que a adesão aos valores que sempre o oprimiram, encarnado nestas eleições em Bolsonaro (com em 2014 foi em Aécio e em 2015 em Cunha) o limparia de seu pecado original: não ser branco, de ascendência europeia, classe média alta.

27 de setembro de 2018

Redação

2 Comentários

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  1. Como é que pode?
     

    Seu amigo não é crente?

    A religião tem o poder de furar os olhos do cidadão para que não veja as próprias fraquezas.

    Claro que posso laborar em erro,  mas tenha uma amiga “difícil” que exibe essas mesmas características.

    É negra, é baiana, servidora pública aposentada, acha que mulher que sofre violência sexual deu motivo, espera que Jesus vai voltar em grande glória numa nuvem um dia destes.

    Junta dinheiro para viajar para fazer turismo em Israel e trabalha em casa de judeu em Tel Aviv para ter dinheiro pra voltar, achando-se a escolhida do Senhor.

    Na verdade todos os circunstantes que me cercam parecem zumbís.

    Não têm a mínima sensibilidade social.

    E o interessante é que eles não eram assim.

     

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