Para quando forem viver nossas vidas, por Gustavo Gollo

Para quando forem viver nossas vidas, por Gustavo Gollo

Até pouco tempo atrás, certas elucubrações não aconteciam, ou surgiam necessariamente em contextos místicos. Muito antes da existência de computadores, espíritas e budistas já falavam em reencarnação; essas máquinas, no entanto, têm trazido várias concepções místicas para a proximidade do dia a dia. Vejamos algumas delas.

1) Cinema total – Imaginemos, em futuro breve, o surgimento de uma espécie de cinema de imersão total ultrarrealista com imagens, sons, cheiros e sabores indistinguíveis do mundo real. Poderemos, então, gravar nossas vidas em uma espécie de filme ultrarrealista. Se aceitarmos tal hipótese, bastante plausível, somos levados a considerar que agora, nesse momento, sejamos talvez apenas expectadores imersos em vidas vividas por outros, como se estivéssemos assistindo a um drama retrô. Ao final dessa vida/filme, tornaríamos a ser nós mesmos, viventes do futuro, podendo, então, recapitular a vida que tivéssemos acabado de assistir/vivenciar, analisando-a retrospectivamente, e recomendá-la a outros, como atualmente fazemos com os filmes. A hipótese corresponde a uma concepção de reencarnação tecnológica plenamente compatível com as aventadas por budistas e espíritas. (Pode-se objetar que um “filme” assim não funcionaria em virtude do livre-arbítrio, sendo necessário criar uma simulação aberta, um mundo no qual o expectador/vivente criaria seu próprio roteiro, baseado em suas próprias opções, realizadas em cada momento. A objeção imporia a criação de um videogame realista em lugar do filme, no qual apenas o cenário, mas não o roteiro, teria sido previamente traçado. É possível, no entanto, induzir em nós a própria sensação de escolha, tornando plenamente possível a imersão e vivência de uma vida/filme vivida por outro. Nesse caso, suporíamos ter sido nós mesmos os autores de cada uma das escolhas que acabaram levando ao destino traçado no filme.

2) A possibilidade aventada acima, a meu ver não só plausível como próxima, exige um ator/vivente original, criador do filme/vida vivenciado pelas pessoas, ou seres, do futuro. Naturalmente, todos acreditamos ser tais criaturas, os protagonistas de nossas vidas, seus compositores originais, que, em tais casos, teriam sido gravadas, ou recuperadas de algum modo, a exemplo do que fazemos quando recuperamos registros fósseis. A plausibilidade dessa conjectura depende do desenvolvimento de tecnologias ainda distantes, que ainda não fazem sentido para nós, assim como os filmes não fariam sentido para os que viveram cento e poucos anos atrás, antes da invenção do cinema. Embora não exista hoje tecnologia capaz de gravar nossas vidas em um filme ultrarrealista, talvez seja do interesse de seres do futuro recuperar nossas vidas e vivenciá-las de modo análogo ao que fazemos ao assistir nossos filmes. Seria possível, então, compactar nossas vidas em uma espécie de MP3 futurístico que retirasse delas todos os momentos banais, aqueles que vivemos no modo automático, incluindo-os nas vidas apenas como vagas lembranças. Os que revivessem tais vidas teriam a impressão de ter vivido tais momentos, quando apenas tê-los-iam recordado vagamente, enquanto lembranças. Nossas vidas poderiam então ser condensadas até poucas horas, incluindo apenas os melhores momentos, entremeados por lembranças automáticas dos instantes irrelevantes. Posso apostar que tal tecnologia estará disponível “em breve” – consideramos mil anos um tempo muito longo porque não o comparamos à eternidade. De qualquer forma, a emergência de uma inteligência artificial, esperada para as próximas décadas, nos aproxima tremendamente dessa possibilidade. Por vaidade, dado que somos uns pavões, a possibilidade de que sejamos o vivente original – o verdadeiro criador da vida que estamos vivendo –, nos sugere viver uma vida exemplar, magnífica, excitante, uma vida capaz de receber muitos likes, caso revivida por seres futurísticos. É possível que o que chamamos “viver” corresponda simplesmente a uma atualização em algum you tube do futuro. Desenhamos assim duas possibilidades complementares: a de ator/vivente em um filme/vida que será recuperado por tecnologias futuras, e o acesso desses filmes/vidas por espectadores/viventes que a reviverão como em um cinema. É muito difundida a ideia de que os robots serão criaturas sem emoções e sem alma, o que me parece um equívoco. De qualquer modo, me parece plausível que os seres inteligentes que estão por surgir tenham interesse em conhecer as emoções vividas por criaturas de carne e osso, como nós. Nesse caso, tratariam de desencavar vidas fossilizadas vividas, realmente, por nós, e revividas por eles sob a forma de imersão total, sendo, talvez, aquilo que está a ocorrer agora, comigo, ou com você. Talvez sejamos um robot, ou qualquer outro ser estranho, revivendo uma vida humana desencavada do passado.

3) simulação/vídeogame. A hipótese de que estejamos vivendo em uma simulação foi popularizada pelo filme “The matrix”. Uns 4 outros filmes baseados na mesma hipótese estrearam no mesmo ano que esse, em 99, reconfigurando uma ideia de René Descartes oriunda de um universo mágico/místico para o universo dos computadores. De acordo com essa hipótese, estamos imersos em uma espécie de videogame altamente envolvente. (Nesse caso, ao contrário de 1), acima, compomos ativamente o roteiro de nossas vidas).

Originalmente, a ideia havia sido apresentada em meados do século XVII, por Descartes, no Discurso do método. Descartes imaginou um gênio maligno – desses que saem de lâmpadas, como nas 1001 noites –, que se divertiria em nos enganar criando um mundo irreal no qual acreditaríamos estar vivendo, quando, de fato, nada do que víssemos ao redor existiria. Em outra versão, o gênio seria substituído por um deus enganador com poderes ainda superiores ao do gênio.

Cabe ressaltar que, embora estudada em todos os cursos de filosofia, a ideia de Descartes só foi realmente levada a sério, quero dizer, considerada como uma possibilidade real, após o filme e a virada do século. Há que se destacar que Philip Dick escreveu e reescreveu, seguidamente, essa mesma história, sob várias roupagens, uma delas magnificamente transplantada para o cinema em Total recall (revejam o original, maravilhoso), apresentado no Brasil como Vingador do futuro (para faturar no rastro do Exterminador do futuro). Philip Dick teria tido a visão da outra realidade que inspiraria a maioria de suas histórias durante uma viagem lisérgica.

Foi o desenvolvimento e popularização do computador, no entanto, que conferiu plausibilidade à antiga ideia, na forma da simulação.

Creio que as duas primeiras ideias acima sejam minhas, não lembro de quem tenha imaginado a possibilidade de recuperação de vidas fossilizadas vividas anteriormente e disponibilizadas como cinema de imersão total. Há, no entanto, inúmeras variações em torno do tema, e sou fã de P.K.Dick. 

                           

Tenho vivido uma espécie de tragicomédia que a mim interessa muitíssimo, e certamente só a mim, com tal intensidade; acho que seja sempre assim. É possível, no entanto, que nossas histórias sejam revividas no futuro por outros seres, e reacessadas múltiplas vezes, caso façam sucesso. Vivamos como se estivéssemos escrevendo uma história, talvez estejamos.

 

Mil e uma noites

O núcleo comum de todas essas variações contemporâneas da reencarnação é que são histórias dentro de histórias dentro de histórias… , em todas elas, nossas vidas correspondem, de fato, a algum tipo de ficção/delírio/sonho/simulação/jogo ou qualquer outro tipo de ação que transcorra em um nível de “realidade” superior à realidade real, ou verdadeira. O aparente pleonasmo “realidade real” induz-nos, de fato, a um paradoxo, uma vez que a mesma dúvida que desmascara a realidade aparente, desmascarará a realidade subjacente, sugerindo a existência de realidade anterior mais profunda, ou verdadeira que aquela, realidade que, por sua vez, se sustentará em outra.

Como Deuses

Tendo duvidado de nossa realidade, logo duvidaremos da anterior, e daquela que lhe sustenta, fazendo isso indefinidamente, sem que encontremos qualquer uma mais plausível que aquela na qual crescemos acreditando ser real. A situação poderá nos parecer incômoda, talvez até aterrorizante, ao fazer-nos sentir como Alice no país das maravilhas caindo, caindo, para realidades cada vez mais abaixo das anteriores.

Quando estiver caindo na real – uma vez que os cálculos sugerem fortemente que a probabilidade de estarmos vivendo na única e real realidade é zero –, não se desespere (acabo de lembrar que meu livro de cálculo 1 dava, exatamente, essa recomendação). Não se desespere, e mergulhe nas realidades subsequentes como em um mergulho de paraquedas. Note que o pior que pode acontecer é encontrar exatamente aquilo que desejam os desesperados, a realidade real, definitiva. Deliremos alegremente, pois.

Depois suponha-se, a si mesmo, o Deus original, criador do céu e da terra. Imagine-se, então, imerso na solidão angustiante do nada, boiando absurdamente na vastidão tediosa da eternidade – haverá pior maldição que a eternidade?

Sendo um Deus imortal, nada lhe restará, a não ser resistir ao tédio insuperável da noite eterna composta apenas pelo nada que o rodeia. E resistirá a tal maldição apenas por não ter outra opção, em meio ao nada.

Haverá, então, que construí-la. Ser-te-á compulsório construir um mundo, e te bastará pensá-lo. Pensará, então, em coisas que o rodeiem – e assim elas serão criadas, como nas histórias e nos sonhos –, e em criaturas animadas que também se materializarão nesse mundo, dando-lhes vida. Depois imaginará seres que, à sua imagem e semelhança, também se entediarão, vendo-se forçados a criar seus próprios mundos, povoados por criaturas vivas e outras que, como Deuses, se empenharão em criar seus próprios mundos.       

ADENDO: caraminholas computacionais

Breve lição de computação – computadores humanos

As máquinas computadoras são constituídas por circuitos elementares extremamente simples. Vejamos alguns desses circuitos elementares chamados operadores lógicos.

Um operador consiste em um circuito eletrônico, ou de qualquer outro tipo, que atribui um sinal de saída em resposta a sinais de entrada. Acompanhe comigo a construção de “operadores humanos”:

Operador OU

Disponha duas pessoas lado a lado, e uma terceira, que fará o papel de um operador OU, à distância de um braço, em frente a elas, todas 2 voltadas para o mesmo ponto. Atribua à pessoa da frente, o operador OU, a seguinte especificação: se sentir uma das mãos tocar em seu ombro, erga seu braço (de maneira que sua mão iria repousar no ombro de alguém que estivesse à sua frente).

(A composição descrita acima corresponde a um operador OU, dado que, caso um dos ombros da pessoa seja tocado, OU, caso o outro ombro o seja, a pessoa/operador erguerá seu braço).

Operador E

Com a mesma disposição descrita acima (duas pessoas lado a lado, e uma terceira a uma distância de um braço, em frente a elas, todas voltadas para o mesmo ponto), atribua à pessoa da frente, o operador E, a seguinte especificação: se seu ombro esquerdo E seu ombro direito forem ambos tocados por mãos, erga seu braço como se fosse tocar em um ombro que esteja à sua frente.

(A composição descrita acima corresponde a um operador E, dado que, caso um dos ombros da pessoa esteja sendo tocado, E o outro ombro também esteja sendo tocado, a pessoa/operador erguerá seu braço).

Operador NÃO (inversor)

Disponha uma pessoa em frente a outra, a uma distância de um braço; caso a pessoa de trás apoie sua mão no ombro da pessoa da frente, essa pessoa não ergue seu braço. Caso a pessoa de trás não apoie as mão no ombro da da frente, essa mantém seu braço erguido, como se para apoiar sua mão em alguém que lhe estivesse em frente. Ou seja, a pessoa da frente inverte o sinal enviado pela pessoa de trás, fazendo exatamente o oposto que ela, erguendo o braço se, e somente se, a outra não o faz.

Operadores NOR (not-or, em inglês [não-ou]) e NAND (not-and, em inlês [não-e]) podem ser criados conectando-se um operador NÃO à saída de um operador OU, ou E, respectivamente, ou seja, permitindo que a mão dos operadores humanos OU e E, descritos acima, repouse no ombro do operador não.

Não demonstrarei isso, mas tanto os operadores NOR, quanto os NAND são operadores universais, capazes de construir qualquer circuito; quero dizer: qualquer circuito pode ser construído utilizando-se apenas operadores NAND, ou apenas operadores NOR; isso inclui os computadores. Assim sendo, computadores humanos podem ser construídos dispondo-se pessoas, umas atrás das outras, como nas descrições acima.

Quero dizer exatamente o que foi dito! Pessoas colocadas umas atrás das outras, apoiando, ou não, seus braços nos ombros de pessoas à sua frente, conforme as instruções descritas acima, podem compor um computador, executando em conjunto, ao levantar e abaixar seus braços, exatamente as mesmas instruções que um computador. Colocadas sob a mesma disposição que circuitos análogos em um computador, as pessoas executariam exatamente tudo o que os computadores executam. (De fato, será necessário uma multidão fazendo isso, e tais pessoas precisarão de um longo tempo para executar funções que os computadores executam em milionésimos de segundos, mas circuitos humanos análogos aos que compõem qualquer computador podem, em princípio, ser construídos desse modo).

Desse modo, copiando-se a arquitetura de um computador, transpondo-se seus circuitos eletrônicos para circuitos humanos, pode-se construir um computador humano análogo a um computador eletrônico. Exceto pela velocidade e desempenho, o funcionamento de computadores humanos construídos de tal modo seria idêntico ao dos computadores eletrônicos, executando exatamente as mesmas funções uns que outros.

Note que as pessoas que estivessem participando de tal experiência, levando seus braços ao ombro de pessoas à sua frente, conforme indicado por apoios em seus ombros dos que lhes estão atrás, não teriam nenhuma ideia do que estariam computando ao erguer e abaixar seus braços, embora possam estar participando de algum cálculo extremamente complexo. Tais pessoas estariam agindo de maneira análoga a neurônios em nossos cérebros, executando, conjuntamente, funções muito além de sua capacidade de compreensão, capacidade que, aliás, os neurônios nem possuem.

Ao que tudo indica, computadores inteligentes, ou melhor, softwares inteligentes, estão prestes a emergir, sendo esperado o surgimento de tais criaturas em poucas décadas. Também se espera que tais mentes, brilhantíssimas, sejam capazes de aperfeiçoar computadores e softwares já existentes, criando, elas mesmas, máquinas ainda mais inteligentes que elas próprias que, por seu turno criarão outras ainda mais aperfeiçoadas, fato que levará a um desenvolvimento verdadeiramente explosivo, e a uma torrente criativa brutal e nunca vista.

Tais criaturas, espera-se, desenvolverão tecnologias espantosas, incompreensíveis para nossa parca inteligência, a uma velocidade estonteante. Poderão, então, desenvolver tecnologias capazes de gravar vidas passadas, e revivê-las, conforme aventado acima.

Note que pessoas dispostas conforme descrito acima, tocando os ombros, umas das outras, conforme instruções determinadas, poderia executar, se comandadas pelas mesmas instruções, exatamente, as mesmas ações realizadas pela máquina inteligente – ainda que, individualmente, nada compreendessem.

Nesse caso, o conjunto das pessoas estaria compondo uma entidade coletiva, o computador humano inteligente, criatura capaz de compreensão e discernimento além de nossa imaginação. Ou seja, do mesmo modo que neurônios em um cérebro, ou que circuitos eletrônicos em um computador executando um software inteligente, as pessoas da experiência imaginada acima comporiam uma entidade capaz de pensamentos próprios e emoções muito além das concebíveis por nós.

Redação

3 Comentários

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  1. tremendo esquenta cuca, adorei, parabéns e tudo mais…

    penetro no inacessível da minha e substituo futuro por passado próximo………………………………..

    quanto então a reencarnação virá de um aplicativo portátil e sem fio, ou sem passado?, e será o presente mais desejado em todo casamento

     

    adorei por acreditar que não pode haver futuro sem que a sua história já tenha sido contada

    adoro narrativas ficcionais novas, inspiradoras e “encucantes”

    (  fio ou  via de migração de uma consciência “vazia”, aspas porque corrigida e perfeitamente adaptada ou muito mais aberta para acolher dados que virão dos limites da imaginação e além? )

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