Pepe Escobar: BRICS fazem história – eles conseguem manter o ímpeto?
As reviravoltas não tão simples do destino sempre permitem que certas cidades deixem sua marca na história de maneiras inefáveis. Yalta. Bretton Woods. Bandung – um marco da descolonização de 1955. E agora Kazan.
A cúpula do BRICS em Kazan, capital do Tartaristão, sob a presidência russa foi histórica em mais de um sentido – seguida com atenção fascinante por toda a Maioria Global e com perplexidade por grande parte da ordem ocidental em declínio.
Não mudou o mundo – ainda não. Mas Kazan deve ser vista como a estação de partida de uma viagem de trem de alta velocidade em direção à nova ordem multinodal emergente. A metáfora também era espacial: os pavilhões na “estação” do centro de exposições de Kazan que abrigava a cúpula conectavam-se simultaneamente ao aeroporto e ao trem aeroexpresso para a cidade.
Os efeitos cascata do BRICS 2024 em Kazan serão percebidos por semanas, meses e anos à frente. Vamos começar com os avanços.
O Manifesto de Kazan
- A Declaração de Kazan. Isso é nada menos que um manifesto diplomático detalhado. No entanto, como o BRICS não é um agente revolucionário — já que seus membros não compartilham uma ideologia —, sem dúvida, a próxima melhor estratégia é propor uma reforma real, da Agenda 2030 da ONU ao FMI, Banco Mundial, OMC, OMS e G20 (cuja cúpula será no mês que vem no Rio).
O cerne da Declaração de Kazan — que foi debatida por meses — é avançar na prática em direção a mudanças institucionais profundas e rejeitar a Hegemonia. A Declaração será apresentada ao Conselho de Segurança da ONU. Não há dúvida de que o Hegemon a rejeitará.
Este parágrafo resume a iniciativa de reforma: “Condenamos as tentativas de sujeitar o desenvolvimento a práticas discriminatórias politicamente motivadas, incluindo, mas não se limitando a medidas coercitivas unilaterais que são incompatíveis com os 5 princípios da Carta da ONU, condicionalidade política explícita ou implícita de assistência ao desenvolvimento, atividades, visando comprometer a multiplicidade de provedores internacionais de assistência ao desenvolvimento.”
- A sessão de divulgação do BRICS. Isso foi Bandung 1955 sobre macroesteroides: um microcosmo de como o novo mundo realmente descolonizado e não unilateral está nascendo.
O presidente Putin abriu e passou a palavra aos líderes e chefes de delegações de outras 35 nações, a maioria no mais alto nível, incluindo a Palestina, além do Secretário-Geral da ONU. Alguns discursos foram nada menos que épicos. A sessão durou 3h25. Ele circulará por toda a Maioria Global por anos.
A sessão terminou com o anúncio dos novos 13 parceiros do BRICS: Argélia, Bielorrússia, Bolívia, Cuba, Indonésia, Cazaquistão, Malásia, Nigéria, Tailândia, Turquia, Uganda, Uzbequistão, Vietnã. Um tour de force estratégico incluindo 4 potências do Sudeste Asiático; os dois principais “stans” da Ásia Central; 3 africanos; 2 latino-americanos e a Turquia, membro da OTAN.
- A própria presidência russa do BRICS. Sem dúvida, nenhuma outra nação teria sido capaz de realizar uma cúpula tão complexa e impecavelmente organizada, realizada após mais de 200 reuniões relacionadas ao BRICS ao longo do ano em toda a Rússia, conduzidas por sherpas não identificados, membros de grupos de trabalho e do Conselho Empresarial do BRICS. A segurança era enorme – por razões óbvias, considerando as chances de um ataque terrorista/de bandeira falsa.
- Corredores de conectividade. Esse é o principal tema geoeconômico da integração da Eurásia e da integração afro-eurasiana também. Putin nomeou explicitamente, mais de uma vez, os novos motores de crescimento do futuro próximo: Sudeste Asiático e África. Ambos são parceiros-chave de vários projetos de alto nível da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI) da China. Além disso, Putin nomeou os dois principais corredores de conectividade do futuro: a Rota do Mar do Norte — que os chineses descrevem como a Rota da Seda do Ártico — e o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (INSTC), onde os três condutores são os membros do BRICS, Rússia, Irã e Índia.
Então isso se traduz como a China do BRICS cruzando a Eurásia de leste a oeste enquanto a Rússia/Irã/Índia do BRICS cruza de norte a sul, com ramificações em todas as latitudes. E com todos os complementos de energia, com o Irã se posicionando como um centro de energia crucial, abrindo a possibilidade finalmente viável de construir o gasoduto Irã-Paquistão-Índia (IPI), uma das sagas inacabadas do que descrevi no início dos anos 2000 como Pipelineistão.
O Retorno do Triângulo de Primakov
Havia imensas expectativas em toda a Maioria Global de um grande avanço em Kazan em sistemas de pagamento alternativos. Especialistas realistas em tecnologia financeira russo-chinesa comentaram que “não viram nada além de outra rodada de iniciativas sobre troca de grãos, troca de metais preciosos e plataforma de investimento. O BRICS Clear está sendo desenvolvido de alguma forma, mas o resto não funcionará sem infraestrutura soberana adequada.”
E isso nos traz de volta ao projeto UNIT – uma forma de “dinheiro apolítico”, ancorado em ouro e moedas BRICS+, que foi exaustivamente discutido pelos grupos de trabalho e chegou ao Ministério das Finanças da Rússia. O próximo passo necessário é um teste executado por um grande conglomerado empresarial. Isso pode acontecer em breve e, se for bem-sucedido, estimulará outras grandes empresas em países BRICS a acompanhá-lo.
Quanto à plataforma de investimento digital BRICS, ela já está em andamento. Junto com o NDB – o banco BRICS, e Putin encorajou a ex-presidente brasileira Dilma Rousseff a permanecer no comando – isso facilitará o acesso do Sul Global ao financiamento sem as temidas condicionalidades de “ajuste estrutural” do FMI/Banco Mundial. A bolsa de grãos BRICS, estabelecendo regras claras e transparentes, será essencial para garantir a segurança alimentar do Sul Global.
O BRICS deixou claro que o complexo impulso em direção a uma nova infraestrutura de liquidação/pagamento é inevitável, mas um longo trabalho em andamento, especialmente quando o G7 — que para todos os efeitos práticos está sequestrando a agenda do G20 no mês que vem no Rio — quer financiar pelo menos US$ 20 bilhões de um pacote de US$ 50 bilhões para a Ucrânia com recursos de ativos russos roubados.
E isso nos leva aos problemas mais gritantes do BRICS. Chegar a um consenso sobre dossiês difíceis é extremamente difícil — e pode levar, a longo prazo, o BRICS a se mover em direção a um mecanismo de maioria absoluta para fazer as coisas.
O caso brasileiro — vetar a Venezuela como parceira do BRICS — não foi bem recebido entre os membros, entre os parceiros e em todo o Sul Global. O atual governo Lula pode estar sob tremenda pressão do establishment democrata do Hegemon, mas isso por si só não explica a decisão.
Há um lobby anti-BRICS massivo dentro dos mais altos níveis do governo brasileiro, “facilitado”, como sempre, por ONGs americanas, bem como pela Comissão Europeia (CE), fortemente infiltrado entre as elites compradoras proverbiais. Brasília este ano privilegiou o G20 em detrimento do BRICS. Isso prevê problemas para o ano que vem, quando o Brasil assumir a presidência do BRICS.
As perspectivas não são exatamente brilhantes. A cúpula do BRICS do ano que vem está marcada para julho — e a decisão parece ser final. Isso não faz sentido — fazer a recapitulação de uma agenda de trabalho no meio do ano. A desculpa oficial é que o Brasil também precisa organizar a conferência climática Cop-30 em novembro. Então, uma sugestão será lançada pelo principal economista brasileiro Paulo Nogueira Batista Jr. para realizar uma sessão paralela de encerramento do BRICS durante a cúpula do G20 de 2025, que será realizada na África do Sul, membro do BRICS.
O presidente Putin tem sido muito complacente — até mesmo propondo que Dilma Rousseff permaneça no comando do NDB. No entanto, a presidência russa do NDB começa tecnicamente no ano que vem; um candidato mais adequado para chefe do NDB seria Aleksei Mozhin, até recentemente o representante russo no FMI.
Há uma grande lição a tirar de tudo isso. Kazan provou que a força motriz do BRICS é, na verdade, o famoso triângulo de Primakov – ou RIC (Rússia, Índia, China). Agora é possível adicionar o Irã, e isso o tornaria RIIC. Tudo de substancial nos processos interconectados de integração do BRICS e integração da Afro-Eurásia depende do RIIC.
A Arábia Saudita continua sendo uma proposta em aberto. Nem mesmo Putin respondeu se Riad está dentro, fora ou sobre o muro. Fontes diplomáticas sugerem que MbS está esperando o resultado das eleições presidenciais dos EUA. Por mais que a riqueza da Arábia Saudita seja investida na esfera anglo-americana – e possa ser roubada em pouco tempo – as relações com a parceria estratégica Rússia-China no mais alto nível são excelentes.
O RIC fez um grande sucesso logo antes da cúpula de Kazan com Pequim e Nova Déli anunciando sua normalização de Ladakh. Isso foi alcançado pela mediação russa. Depois, há Turkiye; Erdogan foi inflexível em enfatizar seu entusiasmo pelo BRICS nas poucas horas que passou em Kazan. Mais tarde, em Istambul, acadêmicos confirmaram que ele leva muito a sério o status de parceiro do Turkiye e sua eventual admissão como membro pleno.
Na linguagem dos símbolos, os minaretes da mesquita Kul Sharif no Kremlin de Kazan foram a marca registrada de fato da cúpula: multipolaridade gráfica em vigor. As terras do Islã receberam a mensagem — com repercussões sérias e auspiciosas pela frente. Quanto aos condutores, quando o trem multinodal de alta velocidade deixar a estação, toda a atenção deve estar voltada para o RIIC. Que todo o Sul Global tenha uma viagem segura.
Pepe Escobar – Analista geopolítico independente, escritor e jornalista
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