Belzebu, um visionário
por Felipe Bueno
No cumprimento de suas funções, ou seja, observando tudo ao redor com o objetivo de elaborar um relatório e entregá-lo a Lúcifer, Dinato e Belzebu, então numa distante Portugal do século XVI, observam o diálogo que entrou para a História entre o rico, Todo o Mundo, e o pobre, Ninguém.
A genialidade de Gil Vicente atravessou os séculos e a famosa observação do visionário Belzebu, de que “Todo o Mundo é mentiroso e Ninguém diz a verdade” tornou-se uma espécie de máxima popular, daquelas cuja origem frequentemente desconhecemos.
A linhagem de Todo o Mundo, homem de altos desejos e baixos valores, deixou a Ibéria quinhentista e se espalhou pelo planeta, ignorando barreiras geográficas e idiomáticas. Chegou, por exemplo, à campanha eleitoral à Prefeitura de São Paulo, tendo sido um de seus descendentes frequentemente visto como ventríloquo.
Escusado dizer que tal verve atualmente não se frui apenas no hemisfério sul. Para além da linha do Equador, claro, a dinastia atua vividamente, fazendo com que nos perguntemos, de tempos em tempos, se a sinceridade é um ônus ou um bônus – e para quem.
Dias atrás a candidata à Presidência dos Estados Unidos Kamala Harris concedeu entrevista à Fox News e, provocada pelo interlocutor, evitou a oportunidade de chamar de idiotas os cidadãos que apoiam e pretendem votar no opositor Donald Trump. Elegante, a democrata rebateu que é o seu adversário republicano que “diminui os eleitores”.
A resposta polida não vem de graça, está em linha com uma estratégia de evitar conflitos – como se isso fosse possível – e se apresentar como a futura presidente de todos os cidadãos e cidadãs, e não de um só lado, como faz Trump.
Corte rápido. As agressões verbais do candidato republicano e apoiadores continuam ao longo dos dias seguintes de acordo com um fluxo, digamos, normal. A bola da vez é Porto Rico, simbolizada como “ilha de lixo flutuante” por Tony Hinchcliffe num evento republicano no Madison Square Garden.
Novo corte. O presidente dos Estados Unidos, como sabemos, ainda é Joe Biden, de quem Kamala Harris é a vice. Mas, pelo menos nessa específica ocasião, duas semanas após a fala sofisticada da candidata, o atual ocupante do trono resolveu ser menos polido, afirmando que “o único lixo” que vê flutuando por aí “são os apoiadores dele” (Trump).
É difícil projetar que tipo de resultados tal sinceridade pode produzir. Antecedentes houve, por exemplo, em declarações de Hillary Clinton quando esteve em campanha. Mas até que ponto a abordagem beligerante, nivelada por baixo, já não é normalizada também pelo eleitor democrata? A campanha azul e seus apoiadores podem escolher a posição de paladinos da sobriedade, correndo o risco de ver o lado vermelho vencer com um sorriso zombeteiro no rosto. Pode ser, por outro lado, que o eleitor médio seja menos vazio que nos façam crer as caricaturas disponíveis.
Felipe Bueno é jornalista desde 1995 com experiência em rádio, TV, jornal, agência de notícias, digital e podcast. Tem graduação em Jornalismo e História, com especializações em Política Contemporânea, Ética na Administração Pública, Introdução ao Orçamento Público, LAI, Marketing Digital, Relações Internacionais e História da Arte.
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