Perry Anderson: Agitação anti-sistema na Europa e nos EUA

 

do Esquerda.net

A bandeira europeia perdeu o brilho, de tal forma as políticas da União se revelaram desastrosas. Por toda a parte surgiram movimentos anti-sistema. Em alguns países eles situam-se claramente à esquerda. Mas muitos deles fazem da xenofobia a sua aposta. Artigo de Perry Anderson.

 

Há vinte e cinco anos, a expressão «movimento anti-sistema» era empregue com frequência, em particular pelos sociólogos Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi, para descrever as diversas forças de esquerda que se opunham ao capitalismo. A expressão continua a ser hoje pertinente, mas o seu significado mudou. Os movimentos contestatários que se multiplicaram durante os últimos dez anos já não se revoltam contra o capitalismo, mas contra o neoliberalismo – isto é, a desregulamentação dos fluxos financeiros, a privatização dos serviços públicos e o aprofundamento das desigualdades sociais, essa variante do reinado do capital levada à prática na Europa e nos Estados Unidos desde a década de 1980. A ordem política e económica daqui resultante foi aceite de forma quase indistinta por governos de centro-direita e de centro-esquerda, consagrando o princípio do pensamento único ilustrado pela máxima de Margaret Thatcher: «Não há alternativa» («There is no alternative», ou TINA). Em reacção a este sistema desenvolveram-se dois tipos de movimento. De direita ou de esquerda, eles foram estigmatizados pelas classes dirigentes, que os apresentam como uma ameaça única: a do populismo.

 

Não foi por acaso que estes movimentos apareceram primeiro na Europa, e não nos Estados Unidos. Sessenta anos depois do Tratado de Roma, a explicação é simples. O Mercado Comum de 1957, que prolongou a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) – concebida por Robert Schuman para evitar o regresso de um século de hostilidades franco-germânicas e, ao mesmo tempo, consolidar o crescimento económico do pós-guerra na Europa ocidental –, foi o produto de um período de pleno emprego e de aumento dos salários médios, de enraizamento da democracia representativa e de desenvolvimento dos sistemas de redistribuição. Os acordos comerciais decorrentes do mercado comum pouco usurpavam a soberania dos Estados-membros, que se viam mais reforçados do que enfraquecidos por eles. Os orçamentos e as taxas de câmbio eram decididos a nível nacional, por Parlamentos responsáveis perante os respectivos eleitores e onde eram debatidas com vigor orientações políticas muito distintas. Paris celebrizou-se, aliás, por ter travado as tentativas da Comissão de Bruxelas de estender as suas prerrogativas. A França do general De Gaulle, mas também, de forma mais discreta, a Alemanha Ocidental de Konrad Adenauer, conduziram uma política externa independente de Washington e capaz de lhe resistir.

O fim dos «trinta anos gloriosos» perturbou esta construção. Logo desde meados da década de 1970, as sociedades capitalistas desenvolvidas entraram numa longa fase de declínio, analisada pelo historiador americano Robert Brenner [1]: década após década, uma diminuição duradoura das taxas de crescimento e um abrandamento da produtividade, menos empregos e mais desigualdades, tudo isto pontuado por fortes recessões. A partir da década de 1980, em primeiro lugar no Reino Unido e nos Estados Unidos, mas depois no resto da Europa, a estratégia inverteu-se: redução das prestações sociais, privatização das indústrias e dos serviços públicos, desregulamentação dos mercados financeiros. O neoliberalismo fez a sua entrada. Na Europa, contudo, ele adquiriu com o passar do tempo uma forma institucional particularmente rígida, à medida que o número de Estados-membros do que viria a ser a União Europeia quadruplicou, englobando assim uma grande zona de mão-de-obra barata a Leste.

Da União Monetária (1990) ao Pacto de Estabilidade (1997), e depois ao Acto para o Mercado Único (2011) e ao Pacto Orçamental (2012), os Parlamentos nacionais foram suplantados por uma estrutura de autoridade burocrática protegida da vontade popular, como havia previsto e reclamado o economista ultraliberal Friedrich Hayek. Uma vez implantada esta mecânica, foi possível impor uma austeridade draconiana a um eleitorado sem recursos, sob a direcção conjunta da Comissão Europeia e de uma Alemanha reunificada que se tornou o Estado mais poderoso da União e cujos pensadores dominantes anunciaram, sem precauções, a vocação hegemónica sobre o continente. Durante o mesmo período, a União e os seus membros deixaram de desempenhar um papel no mundo e de actuar no sentido contrário das directivas americanas [2]. Durante a última fase desta subordinação, estes países colocaram-se nos postos avançados políticos da nova guerra fria contra a Rússia, orquestrados por Washington e pagos pela Europa.

A partir do momento em que, desprezando os sucessivos referendos, a casta cada vez mais oligárquica da União Europeia foi desprezando a vontade popular e inscrevendo os seus diktatsorçamentais na Constituição, não é surpreendente que ela provoque tantos movimentos de contestação, de todo o tipo. Que movimentos são estes? No núcleo duro da Europa anterior ao alargamento ou, dito de outro modo, a Europa ocidental da Guerra Fria (separemos por um momento a Europa central e oriental, cuja topografia era então radicalmente diferente), os movimentos de direita dominam a oposição ao sistema em França (Frente Nacional, FN), nos Países Baixos (Partido para a Liberdade, PVV), na Áustria (Partido da Liberdade da Áustria, FPO), na Suécia (Democratas da Suécia), na Dinamarca (Partido Popular Dinamarquês, DF), na Finlândia (Verdadeiros Finlandeses), na Alemanha (Alternativa para a Alemanha, AfD) e no Reino Unido (UKIP).

Espanha, Grécia, Irlanda

Em Espanha, na Grécia e na Irlanda prevalecem, em contrapartida, movimentos de esquerda, respectivamente o Podemos, o Syriza e o Sinn Féin. Itália constitui um caso à parte, na medida em que conjuga um movimento anti-sistema claramente situado à direita, a Liga do Norte, e um partido, ainda mais forte, que ultrapassa a clivagem esquerda-direita: o Movimento 5 Estrelas (M5S). A retórica extraparlamentar deste último sobre os impostos e a imigração levaria a classificá-lo à direita, mas a sua actuação parlamentar situa-o mais à esquerda, por causa da constante oposição que manifestou ao governo de Matteo Renzi, nomeadamente sobre as questões de educação e sobre a desregulamentação do mercado do trabalho, e do seu decisivo papel na derrota do projecto de tornar a Constituição italiana mais autoritária [3]. A esta formação junta-se o Momentum, uma organização que acaba de emergir no Reino Unido na sequência da inesperada eleição de Jeremy Corbyn à frente do Labour. Com excepção do AfD, todos os movimentos de direita surgiram antes da crise de 2008, alguns até durante a década de 1970 ou mesmo mais cedo. Em contrapartida, o crescimento do Syriza e o nascimento do M5S, do Podemos e do Momentum decorrem da crise financeira mundial.

Neste cenário geral, o facto central é que, no seu conjunto, os movimentos de direita pesam mais do que os de esquerda, a julgar pelo número de países em que eles dominam e pela força eleitoral que acumularam. Esta vantagem explica-se pela estrutura do sistema neoliberal contra o qual eles se insurgem e que encontra a sua mais brutal e mais concentrada expressão naquilo em que se tornou a União Europeia. A sua ordem funda-se em três princípios: redução e privatização dos serviços públicos, revogação do controlo e da representação democráticos, desregulamentação dos factores de produção. Os três são omnipresentes ao nível nacional, tanto na Europa como noutras partes do mundo, mas manifestam-se de maneira ainda mais intensa dentro da União. Prova disso são as pressões infligidas à Grécia, a série de referendos desrespeitados e a crescente dimensão do dumping salarial. No campo político, estas orientações directoras alimentam as preocupações principais da população e motivam as suas manifestações de hostilidade ao sistema, que dizem respeito à austeridade, à perda de soberania e à imigração. Os movimentos anti-sistema diferenciam-se pela importância que atribuem a cada um destes factores, assim determinando os aspectos da paleta neoliberal que elegem como alvo prioritário.

A razão mais evidente do êxito dos movimentos de direita resulta de eles se terem imediatamente apropriado da questão da imigração. Eles apostam nas reacções xenófobas e racistas para conquistarem o apoio das camadas mais vulneráveis da população. Com excepção dos movimentos neerlandês e alemão, adeptos do liberalismo económico, esta posição está intimamente associada, não à denúncia, mas à defesa do Estado-providência, que segundo eles está a ser ameaçado pela chegada de migrantes – uma tese defendida pelos movimentos anti-sistema de direita em França, na Dinamarca, na Suécia e na Finlândia. Seria errado, contudo, atribuir o seu crescimento apenas a este argumento. Em alguns Estados importantes, como se vê pela FN, eles combatem igualmente noutras frentes, por exemplo na da união monetária. O euro e o Banco Central tal como foram concebidos em Maastricht associaram a austeridade e a negação da soberania popular num único e só sistema. Os movimentos de esquerda acusam-nos com a mesma veemência, senão mais, mas tendem a propor soluções menos radicais. A FN ou a Liga do Norte, em contrapartida, defendem remédios draconianos e incisivos contra os «flagelos» da moeda única e da imigração: sair da zona euro e encerrar as fronteiras. A esquerda, com raras excepções, não formulou exigências tão explícitas. Propõe, quando muito, fazer alguns ajustamentos técnicos à moeda única que são demasiado complexos para mobilizar um amplo eleitorado; sobre a imigração, é raro que vá para lá das boas intenções.

A imigração e a união monetária colocam problemas à esquerda por razões históricas. O Tratado de Roma assentava na promessa de uma livre circulação de capitais, bens e mão-de-obra no interior do mercado comum europeu. Enquanto este mercado estava limitado aos países da Europa ocidental, só a mobilidade dos dois primeiros factores de produção contava verdadeiramente, continuando as migrações transfronteiriças a ser em geral bastante modestas (França é uma excepção). Contudo, a partir do fim da década de 1960, a população dos trabalhadores imigrados oriundos das antigas colónias africanas, asiáticas e caribenhas, bem como das regiões semicoloniais do antigo Império Otomano, já atingia um número significativo. O alargamento à Europa central veio aumentar, em seguida, as migrações intra-europeias. Por fim, as intervenções neo-imperialistas sucessivas nas antigas colónias mediterrânicas – o ataque-relâmpago na Líbia em 2011 e a participação indirecta na guerra civil na Síria – trouxeram à Europa vagas de refugiados e um terrorismo de represálias.

Tudo isto incitou a xenofobia, que os movimentos anti-sistema de direita transformaram no elemento central do seu negócio e que a esquerda combate por fidelidade à causa do internacionalismo humanista. As mesmas inclinações conduziram uma grande parte desta última a resistir a qualquer ideia de pôr fim à união monetária, o que, segundo ela, conduziria a um nacionalismo associado às catástrofes do passado. O ideal da unidade europeia continua, na sua perspectiva, a ser um valor fundamental. Mas a Europa realmente existente da integração neoliberal constitui uma ordem mais coerente do que todas as soluções hesitantes que se lhe opuseram até agora. A terceira é indissociável da segunda: nenhum eleitor dos países europeus foi alguma vez directamente consultado sobre a chegada mais ou menos importante de mão-de-obra estrangeira à sua sociedade, a qual sempre teve lugar sem o seu conhecimento. A negação da democracia em que se tornou a estrutura da União excluiu de imediato qualquer possibilidade de ela se pronunciar sobre esta questão. A rejeição desta Europa pelos movimentos de direita é vista como mais coerente em termos políticos do que a da esquerda – uma outra razão para que os primeiros tenham mais êxito do que a segunda.

Rejeição da UE, fraco peso dos movimentos anti-sistema

A chegada do M5S, do Syriza, do Podemos e da AfD marcou um salto em frente no descontentamento popular na Europa. As sondagens actuais mostram níveis recorde de rejeição da União. Mas, tanto à esquerda como à direita, o peso parlamentar dos movimentos anti-sistema continua a ser limitado. Ao nível europeu, aquando dos últimos momentos eleitorais, os três melhores resultados obtidos pela direita anti-sistema – conseguidos pelo UKIP, pela FN e pelo Partido Popular Dinamarquês – situaram-se à volta de um quarto dos votos. A nível nacional, na Europa ocidental, o resultado médio de todas estas forças – misturando as de esquerda e as de direita – atinge um valor próximo dos 15%. Um sexto do eleitorado não representa uma ameaça séria para o sistema. Um quarto pode colocar problemas, mas o «perigo populista» com que a comunicação social se tem alarmado continua a ser muito relativo. As únicas vezes em que um movimento anti-sistema acedeu ao poder (ou pareceu prestes a conseguir fazê-lo) foi por causa de um modo de escrutínio que deveria favorecer partidos maioritários e que se voltou contra estes últimos, como na Grécia, ou que esteve quase a fazê-lo, como em Itália.

Existe na realidade uma grande distância entre o grau de desilusão popular contra a União Europeia neoliberal dos nossos dias [4] e o apoio às forças que pretendem opor-se-lhe. Há já algum tempo que a indignação e a desilusão se tornaram correntes, mas o voto dos europeus é (e continua a ser) determinado pelo medo. O statu quo socioeconómico é largamente detestado. O que não o impede de ser regularmente reafirmado nas urnas, com a recondução dos partidos que são por ele responsáveis, por medo de se assustarem os mercados, e mesmo correndo o risco de se aumentar a miséria. A moeda única não permitiu qualquer aceleração do crescimento na Europa e colocou em dificuldade os países do Sul mais frágeis. No entanto, a perspectiva de uma saída do euro assusta mesmo os que agora sabem o quanto este é responsável pelos seus males. O medo sobrepõe-se à cólera. Daí a aceitação pelos eleitores gregos da capitulação do Syriza face a Bruxelas, o recuo do Podemos em Espanha ou as tergiversações do Partido de Esquerda em França. A lógica é a mesma em toda a parte: este sistema é mau mas, afrontando-o, expomo-nos a represálias.

Como explicar então o «Brexit»? A imigração de massas, um receio muito disseminado na Europa, foi estigmatizada constantemente durante a campanha pela saída da União Europeia por Nigel Farage, dirigente do UKIP, notório porta-voz desta opção ao lado das grandes figuras do Partido Conservador. Mas, aqui como noutros lugares, a xenofobia pesa menos do que o medo do colapso económico. No Reino Unido, a hostilidade em relação aos estrangeiros cresceu à medida que os governos sucessivos mentiram sobre a dimensão da imigração. No entanto, se o referendo não tivesse sido jogado apenas entre estes dois medos, como desejava a classe política, o campo que militava para que o país ficasse na União teria, sem dúvida, vencido com uma larga maioria – testemunho disso é o referendo sobre a independência escocesa em 2014. Três outros factores determinaram o resultado do escrutínio. Depois de Maastricht, a classe política britânica recusou a camisola do euro para melhor levar à prática a sua própria visão do neoliberalismo, ainda mais drástica do que todas as do continente. Os excessos financeiros do New Labour precipitaram o Reino Unido na crise bancária antes dos outros países europeus, e a austeridade draconiana do governo conservador-liberal não teve equivalente endógeno no continente. Em termos económicos, o resultado desta política britânica falam por si mesmos. Nenhum outro país europeu sofre uma tão grande clivagem política entre uma metrópole favorecida autónoma, em Londres e no Sudeste, e uma região desindustrializada e empobrecida no Norte e no Nordeste. Em muitas zonas, os eleitores consideraram, portanto, que não tinham grande coisa a perder em caso de saída da União – uma perspectiva mais abstracta do que a de renunciar ao euro –, acontecesse o que acontecesse à City e aos investimentos estrangeiros. O desespero ultrapassou o medo.

Também em termos políticos, nenhum país europeu falseou de maneira tão flagrante o sistema eleitoral como o Reino Unido. Em 2014, o UKIP tornou-se o maior partido britânico no Parlamento Europeu graças à representação proporcional, mas no ano seguinte este partido só conseguiu um assento em Westminster, depois de ter recolhido 13% dos votos, enquanto o Scottish National Party (SNP), com 5% dos votos à escala do país, obteve 55 lugares. Enquanto o Partido Trabalhista e o Partido Conservador, beneficiários deste sistema, se alternavam no poder para levar a cabo políticas semelhantes, os eleitores da base da pirâmide dos salários viravam as costas às urnas de forma maciça. Quando perceberam que o referendo nacional era a oportunidade para fazerem uma verdadeira escolha, afluíram em grande número; nas regiões mais desfavorecidas a participação subiu de repente, proferindo o veredicto que se conhece sobre os balanços esmagadores de Tony Blair, Gordon Brown e David Cameron.

Último factor, e não de somenos: a diferença histórica que separa o Reino Unido do continente. Culturalmente, não só a Grã-Bretanha foi um império muito mais poderoso do que os seus rivais europeus durante séculos, como, além disso, contrariamente à França, à Alemanha, a Itália e à maior parte dos Estados da União, o país não sofreu uma derrota, uma invasão nem uma ocupação durante as duas guerras mundiais. Num tal contexto, a captação dos poderes locais em benefício de uma burocracia estabelecida na Bélgica só podia ser mais rejeitada do que noutras paragens: por que haveria de se submeter a Bruxelas ou ao Luxemburgo um Estado que por duas vezes colocou Berlim no seu lugar? A questão da identidade podia, portanto, suplantar aqui a do interesse material mais facilmente do que no continente. Foi por isso que a ideia de que o medo das consequências económicas se sobrepusesse ao da imigração não funcionou, devido a uma mistura de desespero económico e de orgulho nacional.

Do «Brexit» a Trump

Foi em condições similares que, nos Estados Unidos, um número suficiente de operários brancos das regiões industriais decadentes e abandonadas conseguiu levar à presidência um candidato republicano com um percurso e um temperamento inéditos, execrado pelos fazedores de opinião pública dos dois partidos e, ao mesmo tempo, mal visto por muitos dos seus próprios eleitores. Ali, como no Reino Unido, o desespero das regiões desindustrializadas falou mais alto do que a apreensão perante este salto no desconhecido. Ainda que de maneira mais crua e explícita, por causa da longa história do racismo nos Estados Unidos, a imigração foi ali igualmente denunciada, tendo sido erigidas barreiras – físicas e legais – para a travar. Por fim, e sobretudo, para os americanos a grandeza imperial não é uma recordação longínqua mas uma dimensão bem real e uma reivindicação natural para o futuro, apesar de abandonada pelos detentores do poder em benefício de uma globalização considerada responsável pela miséria do povo e pela humilhação do país. «Tornar a América grande outra vez» («Make America great again»), depois de renunciar aos fetiches da livre circulação dos bens e da mão-de-obra e de ter varrido os entraves ao multilateralismo: Donald Trump não se enganou quando proclamou que a sua vitória representava um «Brexit» a grande escala. Esta revolta foi bem mais espectacular do que a outra: não se limitou a uma única questão – muito simbólica aos olhos dos britânicos – e foi desprovida de qualquer verniz de respeitabilidade institucional ou de aprovação dos comentadores.

A vitória de Trump suscitou a indignação dos dirigentes políticos europeus, tanto de centro-direita como de centro-esquerda. Em primeiro lugar, por causa da sua notória transgressão das conveniências habituais sobre a imigração. A União Europeia não mostra, ela própria, quaisquer escrúpulos quando se trata de conter os refugiados na Turquia de Recep Tayyip Erdogan, com as suas dezenas de milhares de prisioneiros políticos, tortura policial e suspensão geral do Estado de direito, ou de desviar o olhar perante as barricadas de arame farpado erguidas no Norte da Grécia para que os refugiados permaneçam encerrados nas ilhas do mar Egeu. No entanto, preocupada com a decência diplomática, a Europa nunca se congratulou abertamente com estas exclusões. Na realidade, o que a preocupa verdadeiramente não é tanto a brutalidade de Trump na matéria quanto a sua rejeição da ideologia do comércio livre, o seu visível desdém pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a sua disposição para adoptar uma atitude menos bélica em relação à Rússia. Só o tempo dirá se estas não são apenas observações provocatórias da parte de Trump, votadas a caírem no esquecimento, como já aconteceu com vários dos seus compromissos de política interna. Em todo o caso, a sua eleição tornou visível uma diferença significativa entre vários movimentos anti-sistema de direita (ou vagamente centristas) e a esquerda tradicional, seja ela rosa ou verde. Em França e em Itália, os primeiros rejeitaram as políticas de nova guerra fria e as operações militares aplaudidas pelos segundos, em particular a intervenção na Líbia e as sanções infligidas à Rússia.

As convulsões anti-sistema de direita, como o referendo britânico e as eleições americanas, fizeram-se acompanhar por um crescimento da esquerda – Bernie Sanders nos Estados Unidos, o fenómeno Jeremy Corbyn no Reino Unido –, a uma escala mais modesta mas mais inesperada. Contudo, as consequências da eleição de Trump e do «Brexit» vão provavelmente mostrar-se mais reduzidas do que o anunciado. Nos dois países, a ordem estabelecida está longe de ter sido desfeita, e bem se viu na Grécia como ela é capaz de absorver e neutralizar com uma rapidez impressionante as revoltas, de onde quer que elas venham. Aliás, esta ordem já desenvolveu anticorpos – expressos por jovens quadros dinâmicos que exibem um pretenso simulacro de contestação contra os impasses e a corrupção, que prometem políticas mais transparentes, mais dinâmicas, assim transcendendo os partidos actuais em declínio. É o caso de Albert Rivera do Ciudadanos em Espanha ou de Emmanuel Macron em França. Mas, para as correntes anti-sistema de esquerda, a lição a tirar destes últimos anos é clara. Se não quiserem ser eclipsados pelos seus homólogos de direita, não podem continuar a permitir-se ser menos radicais e menos coerentes do que eles na oposição ao sistema. Dito de outro modo, o futuro da União Europeia depende de tal forma das decisões que a moldaram que já não podemos limitar-nos a reformá-la: temos de sair dela ou de a desfazer, de modo a podermos construir, no seu lugar, algo melhor, assente noutras fundações, o que implica acabar com Maastricht.

* Historiador, professor na Universidade da Califórnia em Los Angeles. Autor, entre outras obras, de The New Old World, Verso Books, Londres/Nova Iorque, 2011.

Artigo publicado no Le Monde Diplomatique – edição portuguesa.(link is external)

Notas

[1] Robert Brenner, The Economics of Global Turbulence: the Advanced Capitalist Economies from Long Boom to Long Downturn, 1945-2005, Verso Books, Nova Iorque, 2006.

[2] A oposição da França e da Alemanha à Guerra do Iraque em 2003 deve ser relativizada: Jacques Chirac aceitou que os aviões de guerra americanos sobrevoassem o espaço aéreo francês; agentes especiais alemães estacionados em Bagdade comunicaram as suas informações aos instigadores da invasão. E, dois meses depois de esta ter acontecido, a 22 de Maio de 2003, os dois países votaram a favor da Resolução 1483 do Conselho de Segurança das Nações Unidas que homologou a ocupação americana do Iraque.

[3] Ler Raffaele Laudani, «Matteo Renzi sonhou renascer», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Janeiro de 2017.

[4] No Verão passado, a maioria dos franceses e dos espanhóis exprimiam aversão em relação à União Europeia e, até na Alemanha, só cerca de metade dos sondados tinham uma opinião positiva sobre ela.

http://www.esquerda.net/artigo/perry-anderson-agitacao-anti-sistema-na-europa-e-nos-eua/48772

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https://www.youtube.com/watch?v=62UYw1Zs28s align:center

 

 

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