Povo Munduruku, no Pará, vive luto permanente por Covid-19

Oito pessoas da etnia morreram nesta pandemia, entre eles, o cacique Vicente Saw Munduruku

Assembléia geral do povo Munduruku na aldeia Katö, no rio Kabitutu, Alto Tapajós, em 2016 (Foto: Anderson Barbosa/Fractures Collective)

Da Amazônia Real

Povo Munduruku vive luto permanente por Covid-19, no Pará

Belém (PA) – Reconhecidos como um dos povos mais guerreiros da Amazônia, capazes de demarcar o território sozinhos e levar sua luta contra as hidrelétricas até para países distantes, os indígenas Munduruku (autodenominados Wuyjuyu) têm enfrentado o lado mais devastador da pandemia do coronavírus nas regiões do Alto e Médio Tapajós, no sudoeste do Pará. O luto e a dor têm sido constantes desde o mês de abril. São oito mortes registradas pelas organizações da etnia até o momento: sete homens e uma mulher.

A indígena Francidalva Saw Munduruku, filha do cacique Suberalino Saw Munduruku, da Aldeia Sawre, no Alto Tapajós, que estava internada no Hospital Regional Público da Transamazônica desde o dia 29 de maio, morreu na quarta-feira (4) de parada cardiorrespiratória por consequência da Covid-19, em Altamira.

Ao saber da morte de Francidalva, Alessandra Korap Mundukuru, uma das grandes lideranças da etnia, desabafou em sua rede social: “Mais uma (morte), ninguém aguenta mais”. Ela também perdeu no dia 2 de junho o tio, Amâncio Ikô Munduruku, 59 anos, umas lideranças históricas pela luta da demarcação dos territórios.

O líder Amâncio Ikon Munduruku (Foto divulgação)

“É (Amâncio) para mim, um segundo pai, conselheiro, amigo, inspiração. Que não tinha tempo ruim para ele, contagiando com suas histórias, sua trajetória, até mesmo suas piadas. “Amigo de fé, irmão camarada”, era uma das músicas que sempre cantava quando em momentos quando havia um mutirão na aldeia. Palavras de mansidão, mas com sabedoria, e como uma flecha, deixava todos refletindo cada frase dita! Eu sempre serei grato por tudo que fez por mim, a nunca desistir dos meus sonhos! Sua conquista, é nossa conquista, sua luta será nossa luta! Vc deixou seu legado, e não vamos deixar de levar adiante! Amâncio Ikô Munduruku, PRESENTE!”, disse Alessandra em mensagem de homenagem ao tio.

A Associação Indígena Pariri, que representa os Munduruku do Médio Rio Tapajós, divulgou nota informando os outros falecimentos de lideranças e anciões por complicações da infecção da Covid-19: o cacique Vicente Saw, 71 anos, dia 1º de junho; Jerônimo Manhuary, de 86 anos; Angélico Yori, 76 anos, Raimundo Dace (70 anos), os dois últimos no mês de maio.

A morte de Jerônimo Manhauary Munduruku, em 9 de abril, foi confirmada pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Rio Tapajós. Ele era o único indígena da etnia, entre as vítimas, que morava em cidade, por isso sua morte – que seria a primeira entre o povo – não consta na estatística da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), subordinada ao Ministério da Saúde.

“Lá se vai mais um parente vítima da Covid19. Mais um corpo de um líder saindo no caixão do hospital JCR as 08:10 da manhã de hoje (4). Sem nenhum parente por perto dizer seu último Adeus. Descanse em paz senhor Benedito Karo”, lamentou em sua rede social  Arlisson Ikon Biatpu Munduruku, filho de Amâncio, referindo a outro óbito entre seu povo.

“Quando vamos descansar nossos corações? Meu tio Cacique Vicente Saw Munduruku, meu pai Amâncio Ikõ Munduruku, Acelino Dace Munduruku, Francidalva Saw Munduruku, Cacique e Professor Martinho Boro Munduruku. E agora mais um. Professor Bernardo Akay Munduruku. Tem sido dias difíceis para nosso povo!”, descreveu ele, em sua rede social, nesta sexta-feira (05).

No último boletim epidemiológico, a Sesai diz que 23 indígenas atendidos pelo Distrito Sanitário Especial Indígenas (Dsei) Rio Tapajós testarem positivo para o novo coronavírus e quatro morreram, mas o órgão não cita as etnias. Outros 67 casos são investigados. Entre os que estão doentes, 16 têm a “infecção ativa, que ainda não completou 14 dias em isolamento domiciliar, a contar da data de início dos sintomas, ou, em caso de internação hospitalar, que ainda não recebeu alta médica”, diz a Sesai.

Já a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que realiza um monitoramento diário da pandemia, afirma que 35 indígenas do estado do Pará morreram de Covid-19.

A Associação Indígena Pariri afirma que seis Munduruku estão internados em estado grave nos hospitais dos municípios de Jacareacanga e Itaituba.

O Dsei Rio Tapajós atende 13.279 indígenas de 10 etnias e que vivem em 157 aldeias de sua área de jurisprudência e atendidas pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Na região há 25 Unidades Básicas de Saúde Indígena, 11 Polos Base e quatro Casas de Saúde Indígena (Casai).

A Sesai não informa quantos indígenas Munduruku atende pelo Dsei. A população da etnia é estimada em mais de 13,7 mil pessoas. (Leia texto abaixo)

O adeus ao fundador da Pariri

Uma das grandes lideranças vítima de Covid-19, Amâncio Ikon Munduruku foi um dos fundadores da Associação Indígena Pariri, em 1998. Ele nasceu na aldeia Ūrūbuda, no Alto Tapajós, mas a família mudou para o Médio Tapajós, onde fundou a aldeia Praia do Mangue.

“Junto dos familiares de Amâncio Ikon, sofremos por sua partida inesperada desse mundo. Nosso choro também vem trazer a memória de uma vida de muita luta, sempre com serenidade e alegria. Também uma vida de dedicação e ensinamentos a seus filhos, familiares, parentes e amigos”, lamentou a Associação Indígena Pariri em nota oficial.

A morte de Amâncio foi marcada por uma comoção entre os Munduruku. Um dia antes, 1º de junho, tinha falecido outra liderança importante: o cacique Vicente Saw Munduruku, de 71 anos, da aldeia Cinza.

Amâncio, que primeiro recebeu atendimento no hospital em Itaituba, chegou a ser transferido para uma unidade em Belém, após uma grande mobilização que envolveu a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). “A cidade de Itaituba não tem uma estrutura de UTI minimamente capaz de atender os casos graves. O descaso do Governo com a saúde pública e a precariedade de atendimento na saúde indígena não são por acaso. Todos os que sempre se omitiram e ignoraram nossas reivindicações pela saúde e os que agora se omitem diante dessa situação emergencial e descontrolada são responsáveis”, denuncia a Associação Pariri.

Cacique Vicente Saw Munduruku (de óculos) durante a assembléia geral do povo Munduruku, em 2016 (Foto: Anderson Barbosa/Fractures Collective)

A organização também divulgou uma nota lamentando a morte do cacique Vicente Saw Munduruku, da aldeia Sai Cinza. “Perdemos um grande líder, grande guerreiro, que lutou muito pelos direitos dos povos indígenas e pelo povo Munduruku, um pai, sempre alegre, mesmo nas dificuldades, como nós Munduruku fazemos. Temos que resistir, tentar ser ainda mais forte, mesmo quando paramos e observamos que tem muitas estradas ou rios para caminhar e que não devemos perder as esperanças”, destacou a nota de pesar.

A subnotificação de indígena da cidade

A morte de Jerônimo Munduruku, que morava há mais de 40 anos na cidade de Jacareacanga, não consta na estatística da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, que contabiliza apenas óbitos dos povos que vivem em territórios demarcados ou reconhecidos pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e que recebem cobertura da Polícia de Saúde do Governo Federal através dos Distritos Sanitários de Saúde Indígena (Dsei). Por esta razão, para Sesai o primeiro caso de coronavírus na etnia é de um ancião que faleceu em maio.

Mestre. Assim era chamado Jerônimo Manhauary Munduruku. Garimpeiro, ele se casou com uma cearense que veio ao Pará acompanhada dos pais em busca de minério. O ancião tinha um violão e gostava de cantar para os filhos e netos. Apesar de não ser um exímio tocador, segundo sua família, era muito apegado ao instrumento musical. Ele ficou internado no Hospital Municipal de Jacareacanga por cerca de uma semana. Na unidade de saúde, apresentava um quadro estável – se alimentava sozinho, conversava com as pessoas – contudo, sentia um pouco de falta de ar e dor nas costas.

Segundo um dos filhos, Genildo Manhauary Munduruku, o pai estava com febre, sentia dor no corpo, falta de ar e dor nas costas. Como já tinha sofrido duas quedas em casa, suspeitava que essa era a possível causa para a dor nas costas. “Ele chegou a realizar o teste rápido para Covid-19 ainda na casa dele, mas deu negativo”, contou o filho.

Genildo disse que demorou ainda uma semana para o pai ser atendido. “No sábado (9 de abril), foi comunicado que o meu pai deveria ficar isolado, pois eles tinham refeito o teste para Covid-19 e deu positivo. Sendo assim, ele não poderia mais ficar com acompanhante”, contou.

Nos exames, tinham constatado que Mestre estava com um problema no pulmão e infecção urinária. “Depois, nessa mesma noite, já recebemos a notícia que o nosso pai tinha vindo a óbito. Ainda não tivemos acesso ao laudo da morte dele, pois, como alegam ter sido pelo coronavírus, estamos isolados”, disse o filho de Jerônimo. Sua morte repercutiu na cidade, uma vez que ele era bastante conhecido por ser garimpeiro e também por ser dono de um comércio, na região.

Temor do vírus nas aldeias

Profissionais da Saúde no combate ao novo coronavírus em aldeia Munduruku (Foto: Reprodução Facebook Carlos Alexandre)

Os Munduruku da Aldeia Caroçal Rio das Tropas, na Bacia do Tapajós, estão apreensivos. Os cerca de 330 indígenas da comunidade foram diagnosticados com “sintomas de viroses gripais”.

“Antes da chegada da equipe médica, a comunidade de Caroçal ficou com bastante medo de que seus moradores tivessem contraído Covid-19, já que apresentarem sintomas que correspondem com os do coronavírus, como dor de cabeça, dor de barriga, fraqueza, dor de garganta, febre alta, espirro e tosse”, disse à Amazônia Real a liderança Jair Boro Munduruku.

Segundo ele, os indígenas foram consultados por médicos e enfermeira. “Eles disseram que esses sintomas são resultado de ‘mudanças climáticas na região’. Os médicos começaram a monitorar todas as pessoas que estão com gripe na aldeia. Vão passar quatro dias ou mais monitorando todas elas”, disse Jair Boro Munduruku.

O que diz o Dsei Rio Tapajós?

Equipe de saúde na Terra Indígena Munduruku no Pólo Base Restinga (Foto: Reprodução Facebook Carlos Alexandre)

A reportagem entrevistou coordenadora do Dsei Rio Tapajós, Cleidiane Carvalho Ribeiro, sobre a disseminação do novo coronavírus entre os indígenas Munduruku, e a exclusão da morte de Gerônimo Manhauary Munduruku na contagem da Sesai.

“Apesar do seu Gerônimo Munduruku não ser aldeado, nós estamos buscando informações por se tratar de um indígena. Embora não estivesse mais no território, ele não deixa de ser indígena, não perde o direito de ser indígena. Alguns familiares dele residem nas aldeias e já fizemos o mapeamento das pessoas que tiveram contato com ele. Todas elas estão em isolamento”, afirmou Cleidiane Carvalho Ribeiro.

Cleidiane disse que o Dsei do Rio Tapajós está agindo para que a pandemia não chegue até as aldeias Munduruku. “Nossas equipes estão acompanhando desde o início do pico da doença. Inclusive, já temos profissionais dentro do território há praticamente dois meses. Mudamos a nossa escala que era de 30 para 40 dias. Abastecemos todos os polos-base para jurisdicionar os atendimentos onde fossem necessários e estamos bem atuantes em termos de recomendações do Ministério da Saúde”.

Ela disse que os Munduruku recebem orientações diárias das equipes que são compostas por um enfermeiro, um técnico de enfermagem, um Agente Indígena de Saúde (AIS), um microscopista, entre outros profissionais da área. Mesmo com essa proteção os indígenas decidiram criar barreiras mais próximas da área urbana de Jacareacanga.

“Têm localidades que só entram mesmo as equipes de saúde, mediante a solicitação de autorização. A gente informa quem está indo e o que estamos mandando. Nós deixamos na pista e depois a equipe vai lá, faz toda a desinfecção do material e recolhe para distribuição”, disse Cleidiane Carvalho Ribeiro.

O povo Munduruku fala uma língua do tronco Tupi. Historicamente, habitava um território que abrangia do rio Madeira, no Amazonas, ao Tapajós, no Pará. Eles se autodenominavam Wuy jugu (“Nós, as pessoas”). O nome “Munduruku”, que significa formiga vermelha, como são conhecidos desde fins do século 18, foi dado pelos índios Parintintin, um povo inimigo que ocupava a margem direita do rio Tapajós e Madeira.

Depois de um período de declínio, a população Munduruku vem passando por um resgate demográfico. A Sesai diz que a população era de 13.755, em 2014. A maioria reside nas aldeias do Alto Tapajós, nas Terras Indígenas Munduruku e Sai-Cinza.

No Médio Tapajós, os Munduruku estão nas terras Sawré Muybu, Sawré Juybu e Sawré Apompu (estas três em processo de demarcação) e Praia do Mangue, Praia do Índio e Tucunaré.

No baixo Tapajós, há presença Munduruku nas TIs Escrivão (em estudo), Munduruku-Taquara e Bragança-Marituba (delimitadas).

Os territórios estão situados nos estados do Pará (sudoeste, calha e afluentes do rio Tapajós, nos municípios de Santarém, Itaituba, Jacareacanga), Amazonas (leste, rio Canumã, município de Nova Olinda; e próximo a Transamazônica, município de Borba), Mato Grosso (Norte, região do rio dos Peixes, município e Juara), segundo o Instituto Socioambiental.

Protesto interrompe garimpos

Garimpo desativado na Terra Munduruku, no Pará, em 2017 (Foto: Ibama)

O garimpo ilegal nos territórios Munduruku pode ser o vetor para a entrada do novo coronavírus nas aldeias. As barreiras de controle, para entrada e saída de pessoas, foram montadas desde o mês de abril, quando a pandemia ainda não registrada casos da doença.

Com as barreiras, os Munduruku conseguiram interromper as atividades garimpeiras na região, mas não sem protesto.

No dia 8 de maio, cerca de 20 indígenas pediram suspensão dos garimpos em ato em frente à Prefeitura de Jacareacanga. Foi necessária a presença de agentes de segurança pública para conter os ânimos. O vice-prefeito Hans Amancio Caetano Kaba Munduruku (PSC) disse à Amazônia Real que conversou com as lideranças.

“Eles queriam ter direitos também de impedir a entrada de indígenas na cidade. Expliquei que não existem leis que proíbem indígenas sair das aldeias para ir até a cidade. Disse que, historicamente, eles são os primeiros povos do Brasil. Onde hoje são as grandes cidades já foram parte das aldeias. Falei que os indígenas não pisam de graça nas cidades, pois eles pagam os impostos nas compras de cada objeto, enquanto que os brancos, só invadem os territórios”, relatou o vice-prefeito.

Técnico do Dsei Rio Tapajós higieniza embarcações para atender povos nas aldeias (Foto: Sesai)

Matéria atualizada neste sábado para incluir os óbitos de outras lideranças Munduruku mencionados por Arlisson Ikon Munduruku

Redação

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