Um breve roteiro para entender como são montadas as sentenças judiciais, por Luis Nassif

Primeiro, o julgador firma convicção. Depois, sai atrás de argumentos que justifiquem a sentença. Se não houver fatos, blefa-se.

Um parecer da procuradora da República Eugênia Gonzaga, para um habeas corpus impetrado junto ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) de um alto integrante do PCC, ainda sem condenação, mas incluído em grupo de risco – está em um presídio em Avaré, área vermelha, e padece de bronquite – mostra um vezo corrente nas sentenças judiciais. Primeiro, o julgador firma convicção. Depois, sai atrás de argumentos que justifiquem a sentença. Se não houver fatos, blefa-se.

O ponto central da história é a contaminação dos presídios pelo Covid-19.

Segundo dados levantados pela procuradora, baseados no Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça:

* até 15.06.2020 havia 5.474 casos e 95 óbitos no sistema prisional. Desse total, 2.065 infectados eram pessoas presas e 3.149 de servidores. Dentre os presos, 54 óbitos; dentre os servidores, 41.

* na última atualização, em 10.08.2020, foram contabilizados 22.477 casos de contaminação e 162 óbitos, sendo 15.569 de presos (89 óbitos) e 6.908 servidores (73 óbitos).

* em menos de dois meses, portanto, houve uma aumento de 290% no número de contaminados e de 70% no número de mortos.

Vamos conferir, então, como os nobres julgadores se comportam frente os fatos.

O caso Marco Aurélio de Mello

Ministro do STF, Marco Aurélio de Mello acata os argumentos do Instituto Brasileiro de Direito de Defesa, quanto à necessidade de desencarceramento de pessoas em situação de risco, condenadas por crimes sem violência.

Mas transforma sua (in)decisão em “conclamação”, figura jurídica sem nenhuma eficácia legal.

De imediato, conclamo os Juízos da Execução a analisarem, ante a pandemia que chega ao País – infecção pelo vírus COVID19, conhecido, em geral, como coronavírus –, as providências sugeridas, contando com o necessário apoio dos Tribunais de Justiça e Regionais Federais. A par da cautela no tocante à população carcerária, tendo em conta a orientação do Ministério da Saúde de segregação por catorze dias, eis as medidas processuais a serem, com urgência maior, examinadas: a) liberdade condicional a encarcerados com idade igual ou superior a sessenta anos, nos termos do artigo 1o da Lei no 10.741, de 1o de outubro de 2003; b) regime domiciliar aos soropositivos para HIV, diabéticos, portadores de tuberculose, câncer, doenças respiratórias, cardíacas, imunodepressoras ou outras suscetíveis de agravamento a partir do contágio pelo COVID- 19; c) regime domiciliar às gestantes e lactantes, na forma da Lei no 13.257, de 8 de março de 2016 – Estatuto da Primeira Infância; d) regime domiciliar a presos por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça; e) substituição da prisão provisória por medida alternativa em razão de delitos praticados sem violência ou grave ameaça; f) medidas alternativas a presos em flagrante ante o cometimento de crimes sem violência ou grave ameaça; g) progressão de pena a quem, atendido o critério temporal, aguarda exame criminológico; e h) progressão antecipada de pena a submetidos ao regime semiaberto. 5. Ao Tribunal Pleno, para o referendo cabível, remetendo-se cópia desta decisão ao Presidente, Ministro Dias Toffoli.

Do Ministro Felix Fischer, o maior dos punitivistas do STJ

Leia de novo os dados sobre as estatísticas do Covid-19 nos presídios antes de continua nessa conclusão de Fischer:

“[…] liberar os detentos de maneira desordenada e sem amparo em parâmetros de periculosidade desses agentes, além de facilitar o caos social, estaria caminhando em sentido contrário à proteção daqueles que obrigatoriamente deveriam permanecer acautelados nos termos da portaria supracitada (…)  Até mesmo como forma de se evitar o alastramento da epidemia da COVID-19 no interior da unidade prisional, considerando-se o fato de que os detentos, por estarem em ambiente confinado, seriam os mais resguardados de eventual contágio da doença e, ainda, que facilitar a saída desordenada de apenados ao ambiente externo provocaria efeito contrário na disseminação do vírus no ambiente prisional.” (HC 594852, de 14/08/2020 Min. Felix Fischer).

Do Ministro João Otávio Noronha, presidente do STJ.

Noronha tem histórico de negativas em HCs similares, mas concedeu prisão domiciliar a Fabrício Queiroz e sua esposa foragida.

(…) Atento a tudo isso e especialmente ao grave risco à saúde de quem tem sua liberdade afastada por prisões processuais, tem se restringido ainda mais os casos de seu cabimento. Afora crimes praticados com violência, por reincidentes ou por aqueles que não permitam adequado e regular andamento do processo, não se tem justificado o aprisionamento cautelar (HC 594.360-RJ).

Do Ministro Gilmar Mendes, apreciando o HC de Queiroz.

Penso que, em um cenário de pandemia mundial que atingiu de forma significativamente grave o Brasil, o Estado deve adotar uma postura proativa para impedir a ocorrência de danos à vida e à saúde de sua população.  (…) Portanto, no contexto delineado, deve-se ir além da mera verificação da legalidade ou não de decisões que decretam a prisão provisória dos indivíduos, cabendo analisar casos que, por suas características concretas, possam ser convertidos para prisão domiciliar, de modo a impedir as mortes que estão ocorrendo e que certamente ocorrerão nas prisões brasileiras, caso não sejam adotadas as providências cabíveis (…) No Estado de São Paulo, 47% dos detentos do Centro de Detenção Provisória II, no Pinheiros, encontram-se infectados. Em um mês, houve o aumento de 160% dos casos em todo o Estado. A situação não é diferente no Rio de Janeiro, conforme notícias trazidas aos autos pela defesa .

De qualquer modo, sua decisão de baseou também em outros argumentos. Gilmar mostra uma enorme lista de medidas alternativas à prisão, critica a sua não utilização nas sentenças em geral. Mas apenas Queiroz foi beneficiado.

Do Tribunal de Justiça de São Paulo, analisando o HC em questão

Com efeito, em relação ao pretenso risco de contágio pelo COVID-19, a que o paciente estaria exposto na cadeia, verifico que não há nenhuma informação de que, no presídio onde MÁRIO está recluso, haja alguém infectado, e é fato notório que as Secretarias de Segurança Pública e de Saúde do Estado de São Paulo têm tomado medidas para evitar a contaminação e propagação do coronavírus nas penitenciárias.

A defesa do réu informou que a Unidade Prisional só dá informações mediante ordem judicial. E nem o juiz de 1a instância, nem o desembargador relator do caso, solicitaram as informações.

E in casu, pelo que se extrai dos autos, nem a D. Magistrada de 1a instância, nem o Douto Desembargador Relator, data vênia, solicitaram informações junto a Unidade Prisional Dr. Luciano de Campos –Avaré I, ou mesmo, junto a Secretaria de Segurança Pública e de Saúde do Estado de São Paulo, sobre as medidas que estariam sendo tomadas para controlar a propagação do vírus ou se teria ou não presos e agentes penitenciários contaminados pelo covid-19, para se pudesse afirmar estar a situação sobre controle.

Luis Nassif

11 Comentários

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  1. “…Primeiro, o julgador firma convicção. Depois, sai atrás de argumentos que justifiquem a sentença. Se não houver fatos, blefa-se…” 40 anos de Redemocracia. 30 anos de Constituição Cidadã. Constituição Cidadã?! Esta aberração da Matéria é o Judiciário das Elites. No Brasil real é apenas o ‘Sanguessuga Parasita’ agarrado à jugular da Sociedade Brasileira. Tribunal que existe e funciona é apenas das Facções Criminosas. As outras. Que não recebem vultosos salários, aposentadorias e pensões da Miséria Tupiniquim. Duas faces da mesma moeda do Crime Organizado Brasileiro. Como Fracassados fizeram fracassar uma Nação? E não é que não sabemos?!!!!!!! Pobre país rico. ‘Aqui na Terra de Trump é tão organizado e funciona tudo’. Ainda bem que Nosso Futuro AntiCapitalista está garantido em Bolsa de Valores de NY, High Schools, Harvard’s .

  2. É bem mais do que “firmar uma convicção e buscar argumentos”: a tal “convicção” é firmada em função da CARA do freguês e das conveniências.

  3. Já no cnmpf não há necessidade nem de firmar convicções: é só empurrar de barriga até a prescrição. Mais nojentos, impossível. Crime sobre crime, como sempre.

  4. O pior inimigo é o que não se vê. Sejamos realistas. A regra é clara: se for de direita, se se alinhar com o capital, empresário ou político (geralmente são um e outro ao mesmo tempo, ainda que usando nome do cônjuge), não vai preso. Sendo cupincha de algum político de direita, só fica preso se não tiver a quem chantagear, se puder entregar outros do clube. Caso contrário, fica solto, por mais evidências e provas que haja. Paulo Maluf, José Serra são exemplos.

    “Mas Maluf… não está preso?”

    Só o prenderam depois que a diretoria do clube mudou.

  5. O corporativismo impediu q a Lei de abuso pudesse punir “interpretações” atípicas.
    Mas a LINDB obriga o magistrado a apontar e fundamentar as consequências de sua decisão.

    Mas, advogados andam tão descrentes, q sabem q está alegação não terá êxito. Parece q quando a Lei eu para enquadrar maus feitos de juízes, ela “não pega”.

  6. Reina a hipocrisia ancorada em um sistema judicial positivista que interpreta o direito como instrumento de manutenção dos privilégios das elites. Cesare Beccaria continua atualíssimo!.

  7. Estamos falando de justiça?
    Por favor me definam este termo já que não estou entendendo nada. Parece, parece ser o contrário do que sempre achei.
    Poder judiciário é fácil entender, principalmente a parte “poder”. Já o resto…
    Se nem o que seria justiça suprema (que nome mal escolhido; pior que isto só o tal “palácio da justiça”) deixa de ser rasteira.

  8. É notório que no Brasil os poderes legislativo e executivo estão infestados de bandidos. Todavia, por piores que sejam, periodicamente passam pelo escrutínio da população através do voto, enquanto o nosso poder judiciário é uma caixa preta constituída por uma casta corporativista que sobrevive de conchavos entre os seus integrantes. Desta forma, o contribuinte que banca com seu suado trabalho essa desordem, permanece órfão de justiça.

  9. Luis Nassif não é advogado, mas acertou na mosca quando disse que as vezes os juízes preferem decidir com base em convicção. Sou advogado desde 1990 e já vi isso ocorrer.
    Por volta de 1992 fui intimado a comparecer a audiência de justificação designada numa Medida Cautelar. O caso envolvia uma disputa sindical.
    O presidente do Sindicato em que eu trabalhava teve seu mandato revogado porque havia desviado uma quantia elevada do caixa da entidade. Ele contratou um advogado e o mesmo ajuizou a Medida Cautelar para tentar suspender os efeitos da assembléia e reintegrar seu cliente no cargo.
    A ação ajuizada tinha um defeito processual relevante: ela havia sido ajuizada contra os diretores que patrocinaram a assembléia e não contra a entidade Sindical. Os diretores eram obviamente parte ilegítimas para figurar no polo passivo da ação principal e, por via de consequência, não poderiam ser réus na Medida Cautelar.
    O ato impugnado era a assembléia, portanto, quem deveria figurar no polo passivo era o Sindicato. Não sendo parte no processo a entidade obviamente não poderia ser obrigada a cumprir a decisão judicial eventualmente proferida contra os diretores. Pois bem…
    No dia da audiência compareci ao Fórum com os diretores e levei defesa escrita. A jurisprudência admitia então como admite nos dias de hoje a prática do ato (juntada da defesa) antes do prazo. O juiz se recusou a aceitar a juntada da defesa. Após a oitiva das testemunhas pedi a palavra e tentei explicar ao magistrado que os réus eram parte ilegítima para figurar no polo passivo da ação principal (e da cautelar). Afirmei que ele não poderia em hipótese alguma impor uma obrigação ao Sindicato, pois a entidade não era parte no processo. O juiz simplesmente ignorou minhas alegações e proferiu a decisão determinando a reintegração do diretor no Sindicato.
    Em razão do adiantado da hora a decisão somente poderia ser cumprida no dia seguinte, o que de fato ocorreu. Providenciei um Agravo de Instrumento em que o Sindicato (terceiro interessado que sofreria a constrição judicial) se insurgia contra a liminar dada na Medida Cautelar e fui com uma colega despachar o recurso no Fórum no dia seguinte.
    Após analisar com calma a questão o juiz disse que revogaria a decisão que havia dado. Nós estávamos cobertos de razão. Ele pediu encarecidamente para o caso não voltar a ser noticiado nos jornais locais. Prometemos a ele que isso não seria feito. Minha colega saiu do Fórum com o mandado para restabelecer a situação anterior e eu fui ao jornal local com uma cópia da decisão.
    No dia seguinte a manchete foi espalhafatosa. Um amigo que trabalhava no Fórum me disse que o juiz ficou uma fera, esmurrou a mesa me chamando de moleque, etc… E eu feliz da vida, pois ele realmente merecia ser esculhambado. Se não tivesse proferido uma decisão por convicção no dia da audiência nada teria ocorrido, nem a reintegração indevida no cargo do presidente do Sindicato nem a revogação da ordem e, é claro, nem a espetacularização do processo.
    Nassif não tem a menor noção da carga emocional que este tipo de situação causa num advogado. É realmente frustrante ver um juiz cometer um abuso porque ele quer fazer isso. As vezes o abuso pode ser remediado, as vezes não.

    1. Fabio de Oliveira Ribeiro: Advogados são o tripé das Garantias Constitucionais, da Liberdade e da Justiça. É a Sociedade se defendendo. O Estado acusa e julga. Mas quem se defende é a Soberania da Sociedade Civil representada por Advogados. Então como Advogados podem aceitar esta estrutura e aberração dos acontecimentos, decisões, sentenças e desvios das Decisões Judiciais? Como OAB pode se calar tanto? Como ser subordinado (ditatorialmente) à Instituição que permite tais transgressões? Que Justiça pode sair deste tipo de Judiciário? Deste tipo de Estado Deformado e Arbitrário? Revelando uma Justiça Fascista que nada representa, mostrou também que a Instituição da OAB e a subordinação dos Advogados estão sujeitas a este tipo de ‘Máscara de Flandres’, a este tipo de cabresto. O Brasil é muito óbvio. Pobre país rico.

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